Edição 287 | 30 Março 2009

Invenção - Pádua Fernandes

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André Dick

O poeta e ensaísta Pádua Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, em 1971. O primeiro livro que publicou, O palco e o mundo (Lisboa: & etc/Edições Culturais do Subterrâneo, 2002), desenvolve, em suas entrelinhas, um pensamento antropofágico. O segundo, Cinco lugares da fúria(São Paulo: Hedra, 2008), tem um tom maior de contestação social. No poema inédito que enviou à IHU On-Line, Pádua procura analogias com o animal do título: A vaca

O poeta e ensaísta Pádua Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, em 1971. O primeiro livro que publicou, O palco e o mundo (Lisboa: & etc/Edições Culturais do Subterrâneo, 2002), desenvolve, em suas entrelinhas, um pensamento antropofágico. O segundo, Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), tem um tom maior de contestação social. Torna-se imprescindível, a partir disso, destacar a dedicatória de seu livro de estreia, em que o autor ignora a ‘escola poética’ Desvairismo, criada por Mário de Andrade em seu “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e se diz a favor do inconformismo, com letra minúscula. Movimento semelhante se dá em relação à uma possível tradição na qual o livro se insere. Pádua Fernandes utiliza um hibridismo entre prosa e poesia que se insere em uma linhagem de autores que tentaram, pelo menos de forma mais visível, esse caminho. Para não falarmos nos conhecidos clássicos (franceses, sobretudo, a exemplo de Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire), só aqui no Brasil teríamos, nesse campo, os exemplos de Oswald, Guimarães, Haroldo de Campos, Leminski e Hilda Hilst, destacando-se Fluxo-floema. O palco e o mundo possui um ritmo controlado, mas, ao mesmo tempo, foge ao convencional. Seu trabalho possui um “domínio de pensamento sobre as palavras”, característica que Octavio Paz, em O arco e a lira, vislumbra na prosa. Em seu segundo livro, Pádua procura um diálogo mais forte com o universo contemporâneo, com todos os seus problemas, mas sem esquecer de um discurso enviesado.

A ligação da literatura com outras artes (a pintura, a música e a dança, principalmente) extraliterárias está presente sobretudo em O mundo e o palco. Não há, por meio disso, o sentido de procurar a mera representação ingênua da realidade, mas sim a desorganização (para reconstruir) do retrato que a vida real nos dá, por meio de fragmentos, sensações, sentimentos dúbios, desintegradores da linguagem – o que se marca presença também em Cinco lugares da fúria. Como Pádua escreve, “arte não é uma imitação da natureza, mas uma natureza ela mesma”, daí uma explicação de o palco vir antes do mundo na ordem do título. Trata-se de um movimento pensado sem excessos de linguagem, o que poderia acontecer, ainda mais que o livro adota um “exercício de liberdade de pensamento” (sem querer, consequentemente, dominar o acaso), como observa o poeta português Alberto Pimenta no prefácio.

O livro da modernidade

A figura do pintor é corrente em O palco e o mundo, pois ele, mais do que os personagens que encenam o texto que é escrito, para ser lido ou silenciado, por Fernandes, representa uma determinada solidão diante da cena. Ou, sob outro ângulo, de passagem a ser ainda realizada e (lembre-se a calcografia), construída em forma de Livre aleatório. Este, claro, contém uma presença de Mallarmé, como no poema dedicado a Waltercio Caldas, um dos mais criativos de O palco e o mundo: “um livro com todas as páginas iguais / não: um livro com todas as páginas iguais, porém apagadas / isto é: um livro com todas as páginas iguais, todas apagadas, mas em diferentes graus de esvaecimento”, cuja negatividade é representativa da consciência moderna, caracteriza-se também pelo distanciamento espacial entre os versos, pela busca aleatória de uma página diferente num livro com páginas iguais, num confronto entre esquecimento e lembrança. Deste, resta “uma só” e enriquece ainda mais a chamada literatura, cuja configuração não pode ser reduzida à tese de um professor caracterizando o palco em que é encenada, acabando por não se prender apenas à palavra escrita. O poeta, em busca de uma dicção que possa ressaltar suas ideias, parece saber que o “grau da página” não seria bem o “grau zero da escritura”, de Roland Barthes, se assemelharia mais quanto à decomposição da origem textual. Esta sempre seria feita de resíduos, com a consciência de seu desaparecimento, do desgaste destrutivo da linguagem moderna, em que o livro busca se sintetizar por meio de uma única página. Recordando talvez Borges da premissa sugerida pelo Livro de areia, já em outro poema, há uma perda da referida totalidade do enunciador, desse “grau da página”, quando Pádua, através de “palavras impossíveis”, distribui alguns versos como grãos, entre a fala (o “dizer”) e o silêncio (“não se diz”), querendo o leitor que pode dar sentido à obra. No poema inédito que enviou à IHU On-Line, Pádua procura analogias sociais com o animal do título.

A vaca

Nos olhos da vaca,
o céu vermelho.

A vaca está morta.
Os chifres não.

O céu vermelho.
A vaca poderia lambê-lo,
sorver todo o sangue
e salvar o céu.

Mas a vaca está morta.

Seria uma solução,
não houvera chifres.


II

O vermelho pinga
dos olhos da vaca
e abre um rio
que afoga as ruas.

Cinzas eram os prédios,
calçadas e becos,
mas não depois
da morte da vaca.

A vaca era uma vaca,
ameaçava a sociedade.

Prédios e esquinas
erguem-se contra o rio.

Alguém ergueu o punhal
quando a vaca foi assassinada?
Ou a morte foi mera
consequência da arquitetura?


III

Jujubas são feitas da vaca.
Crianças comem-nas.

A vaca
replicava as proteínas,
girava as hélices duplas,
retorcia o nada.

As crianças giram,
retorcem-se, replicam
os antropófagos
lambuzando-se
do nada.

Você é o que come,
dizem os vegetarianos.


IV

No campo o cadáver improdutivo da vaca.

Retalhá-lo, para que os vermes beijem o sol?
Queimá-lo, para que as cinzas esterilizem o território?
Abrir-lhe buracos para penetrar na podridão imensa,
nela fundar colônias, devastar florestas
chegar ao útero
e descobrir que estava grávida do labirinto?

Saíram de dentro da vaca.
Olharam os campos. Nenhum espaço
que já não fosse o labirinto.


V

O jogador enrola-se na bandeira do país,
deita na grama
e promete faminto a vitória.

O jogador empanturra-se de grama
verde como a bandeira de seu país
e descobre que a vitória é uma vaca.

Ele muge. Assim
declama corretamente
os dizeres da bandeira do país

enquanto abre as pernas
para os dez touros;
lambe a vitória nos vinte chifres.


VI

Réquiem para a vaca.
Quem o cantaria?
Mozart mugia mal.
Lacrymosa

Repousai em paz
com o sêmen dos necrófilos,
com a pá dos profanadores.
Quid sum miser

Réquiem para a vaca.
Ninguém o cantaria.
Verdi não ruminava,
não sabia imitar as mandíbulas da terra
que recebe os corpos amorosa.
Kyrie eleison

Repousai ainda em paz;
o ventre visitado pelos necrófilos
será aberto pela pá dos profanadores.
Nasceremos todos de vós.
Rex tremendae

A ira de deus.
Mas no túmulo da vaca
é dele o corpo que apodrece.
Libera me


VII

Morta,
a vaca está de volta.
Procura vítimas.

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