Edição 286 | 22 Dezembro 2008

A ciência antes e depois de Darwin

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Márcia Junges

Naturalista inglês é divisor de águas na ciência, analisam Lilian Al-Chueyr Pereira Martins e Roberto de Andrade Martins. Para eles, a Teoria da Evolução não é incompatível com a religião e que devemos falar em duas ciências dos seres vivos, uma antes, e outra depois da Teoria da Evolução, tamanha é a importância do livro A origem das espécies através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida.

“Mesmo que daqui a 500 anos nossas idéias sejam completamente diferentes, ainda se falará em Darwin”, avalia o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins, na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line junto com a pesquisadora Lilian Al-Chueyr Pereira Martins. Para eles, devemos falar em duas ciências dos seres vivos, uma antes, e outra depois da Teoria da Evolução, tamanha é a importância do livro A origem das espécies através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida. Sobre a pretensa incompatibilidade entre a Teoria da Evolução e o criacionismo, Roberto explica que há vários tipos de criacionismo, e que “Darwin foi muito cuidadoso ao colocar como uma possibilidade que Deus tivesse criado a vida, os primeiros seres vivos, e depois eles foram evoluindo, se transformando. Então, Darwin não estava querendo introduzir uma teoria materialista, oposta à religião”. Por outro lado, Lilian acentua que, sem Lamarck, Darwin não teria chegado às conclusões expostas em A origem das espécies. Mesmo criticando-o fortemente a princípio, Darwin admite na sexta edição de sua obra o mérito lamarckiano como primeira tentativa de explicar a evolução. “Darwin seria impensável sem Lamarck”, resume a pesquisadora. A entrevista pode ser conferida na íntegra, a seguir, e desperta desde já para o debate que o Simpósio Internacional Ecos de Darwin, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 9 a 12 de setembro de 2009 pretende estabelecer.

Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Lilian é graduada em História Natural pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), especialista em História da Ciência, mestre e doutora em Genética pela Unicamp com a tese histórica A teoria cromossômica da hereditariedade proposta: fundamentação, crítica e aceitação. É pós-doutora pela Unicamp, autora de A teoria da progressão dos animais, de Lamarck (Rio de Janeiro: Booklink; FAPESP; GHTC, 2007) e uma das organizadoras de Filosofia e História da Biologia (São Paulo: MackPesquisa, 2007) e Ciências da Vida: Estudos filosóficos e históricos (Campinas: AFHIC, 2006). Também é presidente da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB).

Roberto é físico graduado, pela Universidade de São Paulo (USP), e doutor em Lógica e Filosofia da Ciência, pela Unicamp, com a tese Sobre o papel dos desiderata na ciência. Na Universidade de Cambridge, Inglaterra, realizou estágio de pós-doutorado. Leciona no Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, onde é chefe do Grupo de História e Teoria da Ciência. De sua produção bibliográfica, destacamos O universo: teorias sobre sua origem e evolução (São Paulo, SP: Moderna, 1994), Commentariolus. Pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes (2. ed. São Paulo: Livraria da Física, 2003) e Os “raios N” de René Blondlot: uma anomalia na história da física (Rio de Janeiro: Booklink; FAPESP; GHTC, 2007).

Roberto de Andrade Martins e Lilian Al-Chueyr Pereira, entre outros, compõem a comissão técnico-científica do IX Simpósio Internacional IHU Ecos de Darwin.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra fundamental de Darwin, A origem das espécies, 150 anos após seu lançamento?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Normalmente vemos nos livros didáticos descrições históricas dizendo que atualmente se aceitam todos os pressupostos da teoria de Darwin conforme ele apresentou em A origem das espécies. Mas na verdade não é bem assim. Aceitamos algumas de suas idéias, com adaptações, e rejeitamos outras. Por exemplo: não se aceita a herança de caracteres adquiridos por uso e desuso – que ele aceitava – nem a hipótese de hereditariedade de Darwin (hipótese da pangênese). O que se aceita hoje é a seleção natural aplicada à freqüência gênica, completada pelo desenvolvimento da genética clássica, que ocorreu algumas décadas depois da morte de Darwin.

Roberto de Andrade Martins – De um modo geral, há uma confusão entre pesquisadores que foram extremamente importantes e aquilo que aceitamos hoje. Isso acontece em todas as áreas. A teoria astronômica que aceitamos não é a de Copérnico,  mas completamente diferente daquilo que ele pensava. A mecânica clássica não é a de Galileu,  e assim por diante. Há determinados nomes em todas as áreas que são conhecidos e valorizados, mas o que eles propuseram não é exatamente o que aceitamos em nossos dias. O que acontece é que esses pesquisadores deram um grande passo, uma grande contribuição. Mesmo que daqui a 500 anos nossas idéias sejam completamente diferentes, ainda se falará em Darwin.

IHU On-Line - Quais são os principais aspectos sobre os quais esse livro jogou luz quando de sua publicação?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins - A origem das espécies trouxe uma série de evidências favoráveis à evolução através de um processo lento e gradual pelo acúmulo de pequenas modificações. É interessante como Darwin argumenta nesse livro, apresentando claramente suas propostas, colocando as evidências contrárias àquilo que ele queria defender, e depois oferecendo as evidências favoráveis e lidando com as objeções. Foi uma obra muito importante e que continua objeto de estudo até hoje.

Roberto de Andrade Martins – O impacto na época se deu principalmente pela seriedade e volume de informações coletadas por Darwin para defender suas idéias. Havia ali um conhecimento profundo dos prós e contras de todos os aspectos, bem como a proposta de um mecanismo plausível para a transformação das espécies. Isso porque havia pesquisadores como Thomas Huxley,  por exemplo, que estava convencido de que deveria haver alguma modificação das espécies. Contudo, ele não entendia como. Faltava a proposta de um bom mecanismo para a transformação das espécies, a seleção natural. Assim, A origem das espécies produziu grande impacto, rápido, e de repercussão intensa. O livro vendeu depressa e todos começaram a discuti-lo.

IHU On-Line - Como foi a recepção da obra por parte da comunidade científica e por parte da Igreja?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – A comunidade científica reagiu de diferentes maneiras. Podemos dizer que alguns estudiosos aceitaram determinados aspectos da teoria darwiniana, outros não. Quando Darwin escreveu A origem das espécies, propôs outros tipos de estudo que poderiam trazer esclarecimentos a respeito do processo evolutivo. Ali ele mencionou, também, que a seleção natural era o principal meio de modificação das espécies, mas não era o único. Isso estimulou uma série de estudos, como os dos que procuravam, através da morfologia, reconstruir a filogenia. Exemplo disso é o grupo de Cambridge, de Frank Balfour, que trabalhava nessa linha. Darwin inspirou vários estudiosos, mesmo aqueles que tinham restrições a alguns aspectos de suas idéias, como Spencer.  Esse pesquisador acreditava que a herança de caracteres adquiridos por uso e desuso era mais importante do que a própria seleção. É importante notar que a teoria de Darwin foi aceita, mas não como um pacote fechado. Ela teve grande repercussão, mas alguns estudiosos aceitavam apenas certos aspectos, introduzindo outros.

Roberto de Andrade Martins – A recepção foi diferente em cada país. Na Alemanha, a aceitação foi muito fácil. Os pesquisadores alemães aceitaram com rapidez a idéia tanto de evolução, quanto do mecanismo de seleção, enquanto que na França houve uma resistência muito grande contra Darwin. Isso dependia do ambiente filosófico e outras problemáticas como a postura religiosa.
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Não podemos esquecer que, no próprio meio universitário de Darwin, composto por anglicanos, geralmente se aceitava que as espécies eram fixas. Vários de seus professores pensavam assim. Isso, de certo modo, era uma barreira para a aceitação de sua teoria.

IHU On-Line - Até que ponto é correto contrapor criacionismo e darwinismo? São incompatíveis? Por quê?

Roberto de Andrade Martins – Há muitos criacionismos diferentes. Essa é a grande questão. Darwin foi muito cuidadoso ao colocar como uma possibilidade que Deus tivesse criado a vida, os primeiros seres vivos, e depois eles foram evoluindo, se transformando. Então, Darwin não estava querendo introduzir uma teoria materialista, oposta à religião. Na Alemanha, por exemplo, que mencionei como um local que acolheu bem suas idéias, a interpretação recebida foi de cunho materialista, como aquele dado por Häckel, naturalista autodeclarado ateu. Para ele tudo provinha da matéria, e era preciso esquecer Deus e as coisas do espírito. Para Darwin, havia a possibilidade de compatibilizar Deus como criador do universo e da vida, e depois o processo evoluiria por fenômenos naturais, sem a intervenção divina. Atualmente, a discussão depende muito do tipo de criacionismo que se propõe. Uma coisa é dizer que todas as espécies foram criadas separadamente por Deus. Isso não pode ser concebido em nossos dias. Outra coisa é discutir a possibilidade de que, em algum momento primordial Deus tenha tido uma interferência no Universo. Isso poderia ser aceito e não colide com os conhecimentos científicos.

IHU On-Line - Como você avalia os usos extracientíficos que foram feitos do darwinismo (metáforas e modelos explicativos a várias áreas da ciência, ao conhecimento em geral e revolução antropológica)? Nesse sentido de usos extracientíficos, como compreender o conceito de darwinismo social?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Não percebo em Darwin muitas das coisas que são-lhe imputadas, como o darwinismo social.

Roberto de Andrade Martins – Darwin não gostaria de ter seu nome associado ao darwinismo social, certamente. As propostas científicas escapam ao controle de seu criador e depois são aproveitadas com modificações profundas. A teoria de Darwin não estabelece uma proposta de que se deve agir socialmente aplicando idéias da teoria da evolução à sociedade. Não existia na obra darwiniana essa proposta, que usa uma analogia com a teoria da seleção natural, mas que não é uma conseqüência da teoria da evolução. Devemos dizer, ainda, que essa não é uma proposta cientificamente fundamentada. O darwinismo social extrapola o que Darwin pensou.

IHU On-Line - Além do aniversário duplo de Darwin em 2009, a Filosofia Zoológica de Lamarck  também está prestes a completar 200 anos. Como Darwin dialoga com o legado de Lamarck? Por que ele não teve tanta repercussão quanto Darwin?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – A obra mais conhecida de Lamarck  é a Philosophie Zoologique, de 1809, mas essa não foi a primeira nem a última de suas obras sobre o assunto. A versão mais madura de sua teoria evolutiva aparece em outros de seus livros, como na introdução do tratado de invertebrados, História natural dos animais sem vértebras, e também no seu Sistema analítico dos conhecimentos humanos. A teoria de Lamarck não incluía a idéia de seleção natural, mas tinha vários elementos que depois aparecem na teoria de Darwin, como a idéia de um processo evolutivo lento e gradual e a questão da herança de caracteres adquiridos por uso e desuso. Entretanto, Darwin e Lamarck explicam a evolução por mecanismos diferentes. Lamarck enfatiza mais a ação do meio, e Darwin prima pela seleção natural.

Críticas

Darwin criticou bastante Lamarck num primeiro momento. Ele chegou mesmo a dizer que a obra de Lamarck era miserável, absurda. Depois, no esboço histórico da sexta edição de A origem das espécies, creditou a Lamarck o mérito de tentar explicar a evolução, o surgimento dos diferentes seres a partir de leis naturais, e não da intervenção divina. Pessoalmente, acredito que as dimensões enormes da proposta de Darwin não seriam possíveis se não houvesse um Lamarck antes. Isso porque as poucas propostas anteriores a Lamarck, em termos de evolução, não formavam um todo coerente; mas a partir das idéias lamarckianas, foi possível avançar. Darwin seria impensável sem Lamarck.

É bom lembrarmos que Darwin tomou todos os cuidados para argumentar em favor de sua teoria, fundamentando-a da melhor forma para não receber as críticas que Lamarck recebeu. A teoria de Lamarck não foi discutida em âmbito acadêmico, não chegou sequer a ser discutida, exceto por poucos colegas de modo informal. Existem muitas especulações sobre o motivo pelo qual a teoria lamarckiana teve essa recepção e impacto tão baixo.

IHU On-Line - Diz-se, inclusive, que Lamarck teria ido mais longe do que Darwin quando intui que a origem da vida é uma “sopa primitiva”. Qual é o seu ponto de vista?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins - Essa afirmação faz parte de uma série de informações históricas equivocadas. Quando analisamos suas diferentes obras, não encontramos a menção a uma “sopa primitiva”. No entanto, diferentemente de Darwin, Lamarck lida bastante com a origem da vida – um ponto do qual Darwin fugiu, em função do contexto em que vivia. Lamarck explica a origem da vida a partir da geração espontânea dos primeiros seres, que teriam sido criados por forças físicas que eram conhecidas na época – forças de atração como a gravitação universal de Newton, forças de repulsão como calórico e eletricidade. Ele procurou explicar como, através dessas forças, se formariam alguns seres vivos muito simples, microscópicos. A partir deles, alguns se transformariam e produziriam animais e vegetais cada vez mais complexos; outros permaneceriam com uma estrutura simples. A geração espontânea continuaria existindo até os dias atuais, segundo ele. Há, portanto, a idéia de que a vida se originaria a partir de líquidos, por processos naturais. Lamarck, entretanto, não fala em “sopa primitiva”. Isso é bem posterior e aparece em outros autores.

IHU On-Line - Podemos comparar o darwinismo à revolução copernicana em termos de importância e mudança de perspectivas na ciência? Por quê?

Roberto de Andrade Martins – Certamente. Isso porque todo o estudo dos seres vivos passa a ser enfocado de um modo completamente diferente, a partir da aceitação da teoria da evolução. Estudamos a fisiologia pensando para que servem os órgãos, como se formaram, como se adaptaram às condições de vida. Estudamos a classificação dos animais pensando sobre como surgiram, qual é seu parentesco histórico. Todo o estudo sobre os seres vivos se torna completamente diferente quando olhamos para os animais e plantas com os olhos da evolução. É preciso pensar em duas ciências dos seres vivos, uma antes, e outra depois da teoria da evolução.

Leia mais...

O Instituto Humanitas Unisinos – IHU já repercutiu outras entrevistas e artigos sobre as teorias darwinianas. Acesse o endereço www.unisinos.br.ihu.

Conteúdos publicados na página eletrônica:

- Tataraneto de Darwin refaz rota do ancestral no Brasil – conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 30-11-2008;

- Atirem no pai do evolucionismo – conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 4-11-2008;

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- A fé e a ciência: as vias paralelas em busca da verdade – conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 01-10-2008;

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- O naturalismo científico. As falhas e as falácias do ‘novo ateísmo’. Entrevista especial com John F. Haught - conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 25-11-2007;

- Ciência e fé: Hans Küng mostra essa relação de respeito recíproco - conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 24-10-2007;

- O Papa se distancia dos criacionistas e dos darwinistas - conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 19-04-2007;

- Ciência não exclui Deus. Entrevista com Francis Collins, biólogo que desvendou o genoma humano - conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 21-01-2007;

- A substituição do astrônomo do Vaticano. "Darwinista demais?" - conteúdo publicado nas Notícias do Dia em 26-0-2006.

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