Edição 286 | 22 Dezembro 2008

O Evangelho de Natal, hoje

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin | Tradução Walter Schlupp

Para o teólogo e exegeta alemão, Rudolf Pesch, o Evangelho não pode continuar criando um espírito natalino sentimental. Ele precisa ser entendido como mensagem política. Na entrevista concedida à IHU On-Line, ele afirma que “o Natal não deveria ser transformado em festa ecológica; quando muito, essa festividade lembra que a ‘criança’ na manjedoura exorta a pensar em todas as crianças, principalmente também nas não-nascidas, que mais e mais são ameaçadas e mortas sem escrúpulos, inclusive por fãs da ecologia. A catástrofe climática não é tão importante quanto a catástrofe do aborto. E ambas certamente também se devem a uma falta de solidariedade entre as pessoas”.

“No mundo pós-moderno, é preciso primeiro restabelecer o acesso das pessoas que se tornaram neopagãs à palavra de Deus. Para tanto, precisamos de uma prova de Deus convincente, que, além daquela dada pela razão, seja fornecida pela vida das comunidades cristãs, a qual não é explicável como desempenho humano, mas remete para a atuação de Deus pela conjunção de pessoas crentes.” A argumentação de Rudolf Pesch, teólogo alemão, prepara o campo para a reflexão que ele faz, na entrevista a seguir, sobre os evangelhos que narram o nascimento de Jesus, no caso, Mateus e Lucas. Para Pesch, “o Natal não deveria ser transformado em festa ecológica; quando muito, essa festividade lembra que a ‘criança’ na manjedoura exorta a pensar em todas as crianças, principalmente também nas não-nascidas, que mais e mais são ameaçadas e mortas sem escrúpulos, inclusive por fãs da ecologia. A catástrofe climática não é tão importante quanto a catástrofe do aborto. E ambas certamente também se devem a uma falta de solidariedade entre as pessoas”. Il Vangelo del Natale  (O Evangelho do Natal), último livro de Rudolf Pesch, traduzido do alemão, acaba de ser lançado na Itália pela Editora Queriniana, Brescia 2008.

Nascido em 1936, Rudolf Pesch é doutor em Filosofia e em Teologia (Novo Testamento). Foi professor nas Universidades de Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt, e de Albert-Ludwigs, em Freiburg. Atualmente, vive no estado da Baviera, na Alemanha, de onde concedeu a entrevista que segue, com exclusividade para a IHU On-Line, por e-mail. A tradução é de Walter Schlupp.

IHU On-Line – Podemos relacionar os Evangelhos que narram o nascimento de Jesus com a espera pelo Messias do Antigo Testamento, tendo em conta essa época de Natal?

Rudolf Pesch – Sim, de muitas maneiras. O Evangelho do Natal em Lucas, capítulo 2 (mas também nas narrativas natalinas em Mateus), pressupõe o Antigo Testamento e a tradição judaica. Isto fica ainda mais claro quando se observa o anúncio do nascimento de Jesus (também em Lucas e Mateus). Afinal, o Antigo Testamento é o documento de uma longa história de Deus com seu povo, ao qual ele tudo deu de presente (veja a enumeração feita por Paulo em Romanos 9), inclusive o “Auxiliador” decisivo, o qual ele próprio se tornou, em seu Filho. Naturalmente é importante ver o seguinte: o Antigo Testamento e o judaísmo mais antigo não têm uma expectativa uniforme do Messias; somente o próprio Jesus é que define, em sua vida e morte, quem é o Messias. Nele, segundo a promessa do profeta Isaías (Is 35), o próprio Deus veio, para redimir seu povo, sendo que todos os que o reconheceram e nele creram reuniram todas as promessas do Antigo Testamento para “identificá-lo” e exaltá-lo: ele é o filho de Deus, o filho da virgem, o Príncipe da Paz etc. A experiência com Jesus, a consideração da sua morte e a experiência da sua ressurreição fizeram com que seus discípulos passassem a entender todo o Antigo Testamento em função dele, cumulativamente aplicando a ele todas as conotações messiânicas e promessas explícitas. O anjo do Senhor denomina a criança recém-nascida de “Salvador”, “Messias”, “Senhor”, assim acumulando em Jesus três títulos de Deus, os quais, com isso, são negados ao imperador romano, que era celebrado como salvador (Sotér) e senhor (Kyrios).

IHU On-Line – Qual é o sentido de pregar o Evangelho na pós-modernidade?

Rudolf Pesch – O que é o mundo pós-moderno? Para descrevê-lo, baseio-me em dois escritores: um católico norte-americano, Walker Percy,  e um judeu de formação européia e sul-americana, Vilem Flusser.  Ambos refletem sobre o “mundo moderno” como período pós-moderno ou subseqüente à pós-modernidade. Eles nos ajudam a responder a questão: que é o mundo moderno? Qual a sua peculiaridade? O que o caracteriza? Quem está em condições de entendê-lo? Walker Percy, em seu ensaio “Warum sind Sie Katholik?” [Por que você é católico?], assim caracterizou nosso mundo moderno: “A era atual está desvairada. Ela está possuída por uma sensação de desorientação, uma perda de identidade pessoal, uma alternância entre sentimentalismo e raiva, o que, no caso de um paciente individual, se poderia chamar de loucura... É o século mais avançado em termos de ciência, mais selvagem, mais democrático, desumano, sentimental e assassino na história da humanidade”. Para Walker Percy, nosso mundo moderno é, além disso, a era do consumo excessivo. Teóricos e consumidores incorporam tudo para assim apagar tudo.

Vilem Flusser, em sua coletânea de ensaios “Nachgeschichte. Eine korrigierte Geschichtsschreibung” [Epílogo histórico. Uma historiografia corrigida], parte da nova noção a moldar em grande parte nosso pensar e fazer, “de que nossa existência no mundo está programada, de que o próprio mundo está programado”. Essa nova noção de “programa” ele distingue de noções mais antigas, do destino e do condicionamento. No mundo pós-moderno, é preciso primeiro restabelecer o acesso das pessoas que se tornaram neopagãs à palavra de Deus. Para tanto, precisamos de uma prova de Deus convincente, que, além daquela dada pela razão, seja fornecida pela vida das comunidades cristãs, a qual não é explicável como desempenho humano, mas remete para a atuação de Deus pela conjunção de pessoas crentes. Só que isto significa que os crentes precisam ser inspirados, munidos, conduzidos para esse tipo de vida: uma vida em comunhão conforme os Atos dos Apóstolos, que naturalmente precisa ser traduzida para as estruturas sociais pós-modernas.

IHU On-Line – Qual é a relevância do Evangelho em uma época de crescente secularização? Em que sentido sua mensagem de fé renova os valores cristãos em nosso tempo?

Rudolf Pesch – Com sua mensagem de paz, o Evangelho de Natal sempre tem relevância. No Dia Mundial da Paz, o papa Bento XVI lembrou a conexão entre paz e verdade. A paz só é possível onde as ideologias cederem lugar à verdade. Contra a ideologia da “pax” romana do Imperador Augusto e do seu procurador na Judéia, o rei Herodes, o Evangelho de Natal declara que Jesus de Nazaré é quem verdadeiramente traz a paz. Onde os crentes se encontram mutuamente em nome dele, convivem solidariamente em liberdade, surgiram oásis da paz que poderiam formar uma rede de paz ao redor do mundo, se não se deixarem colocar novamente a serviço dos países não-pacíficos. O Evangelho do Natal sempre volta a incitar os cristãos, que sempre têm a promessa da paz, a tal comunhão em nome de Deus e do Messias Jesus, que é nossa paz (Efésios 3). Enquanto os cristãos, inclusive as igrejas cristãs, não mantiverem a paz entre si e se tornarem precursores da paz, o Evangelho do Natal continuará deixando de ser digno de crédito.
 
IHU On-Line – De que forma o Evangelho do Natal pode ser um caminho para a atualização da mensagem de paz em nossos dias?

Rudolf Pesch – O Evangelho não pode continuar criando um espírito natalino sentimental. Ele precisa ser entendido como mensagem política. No Evangelho, ela se exprime no sentido de propor aos crentes não confiar em ideologias políticas, mas formarem lugares concretos de paz que também podem irradiar-se sobre políticos (os quais – esperamos – estão integrados nesses lugares) e, portanto, sobre a política. No Evangelho do Natal, os pastores representam as pessoas do agrado de Deus, que aceitam a mensagem, convencem-se dela e se unem em louvor a Deus. Os pastores nos servem de modelo, são os que se deixam colocar em movimento, convencer-se do evangelho da paz.

IHU On-Line – Em que sentido os Evangelhos são uma fonte de inspiração nesta época de carência de valores? 

Rudolf Pesch – Aqui na Baviera, sul da Alemanha, é muito escuro e frio nesta época do ano, com neve e gelo. Hoje é um dia bem assim. A devoção religiosa do povo, com sua interpretação popular do evangelho, que usa o canto e o presépio, lembra isso e procura transmitir principalmente os seguintes valores: misericórdia e solidariedade, caridade, hospitalidade etc. A idéia da paz passou para um segundo plano. Não seria uma boa idéia, só celebrar o Natal quando houvesse reconciliação entre cristãos (primeiro passo para a paz)?
 
IHU On-Line – De que forma o senhor avalia que o mundo hoje se prepara para o Natal no sentido da preocupação ecológica? Que relações podemos estabelecer entre o espírito natalino e a questão climática do nosso planeta?

Rudolf Pesch – O cuidado, a moldagem e a preservação da Criação estão a cargo do ser humano. No Natal, isto é tão atual quanto no restante do ano litúrgico. O Natal não deveria ser transformado em festa ecológica; quando muito, essa festividade lembra que a “criança” na manjedoura exorta a pensar em todas as crianças, principalmente também nas não-nascidas, que mais e mais são ameaçadas e mortas sem escrúpulos, inclusive por fãs da ecologia. A catástrofe climática não é tão importante quanto a catástrofe do aborto. E ambas certamente também se devem a uma falta de solidariedade entre as pessoas.

IHU On-Line – Quais são as peculiaridades de Mateus e Lucas ao narrar o nascimento de Jesus? Que mensagens e qual a imagem de Cristo que eles pretendiam passar aos leitores?

Rudolf Pesch – Ambos os evangelistas narram o nascimento do Messias, do “Filho de Deus”; portanto, falam do cumprimento da promessa de que o próprio Deus viria para nos resgatar: por meio de Jesus de Nazaré, por sua atuação e palavra, pela sua morte expiatória e sua atuação como ressurreto na formação de um povo de Deus a consistir de judeus e gentios, como grande sinal da paz. Com a narrativa do nascimento, após longo tempo de preparo no assim chamado Antigo Testamento, os evangelistas tangem o início desse processo. Em suas narrativas de tipo Midrash, os dois evangelistas estão calcados na tradição do Antigo Testamento, a qual eles acolhem de forma distinta. E ambos contam de modo muito diferente: Mateus fala de uma história em Belém, onde José e Maria moram, para onde não retornam após a fuga para o Egito, mas, por causa de Arquelau, cruel filho de Herodes, refugiam-se na Judéia, para fixar residência em Nazaré. Segundo Lucas, Maria e José moram em Nazaré e vão a Belém somente por causa do censo, lugar da expectativa messiânica. Nesse contexto geral, quase todos os detalhes também são distintos, com exceção do uso de Isaías 7,14 e Isaías 9,5 para mostrar que em Jesus de Nazaré nasceu o filho de Deus – a Igreja muito cedo disse que sobre ele não pensamos diferente de quando pensamos sobre Deus. Trata-se daquele que, como ouvimos no evangelho pascal e pentecostal, nos trouxe o Espírito, o perdão dos pecados e, portanto, o shalom, que no caso de Lucas já é anunciado pelos anjos no nascimento de Jesus.

IHU On-Line – Que outras diferenças e semelhanças o senhor citaria no sentido de traçar um paralelo entre os dois evangelistas?

Rudolf Pesch – Já mencionei a diferença de local do nascimento. No aspecto político, Mateus pensa no vassalo judeu do imperador Augusto, o qual é rei pelas graças do imperador, qual seja, Herodes o Grande, que, como “amigo do imperador”, na Palestina representava a seu modo (com tonalidades judaico-messiânicas) sua política da “pax” (calcada no poderio militar). Já Lucas mostra o horizonte mais amplo da história universal, inclusive escrevendo uma obra dúplice, que é o evangelho e Atos dos Apóstolos, onde descreve o caminho do evangelho de Jerusalém até Roma, apresentando o próprio imperador como desencadeador do deslocamento de José e Maria de Nazaré para Belém. Como ambos os evangelistas seguem tradição da Igreja dos primeiros tempos, as diferenças devem ser atribuídas, em primeiro lugar, às tradições em que se basearam. Ambos os Evangelhos conhecem e usam o Evangelho de Marcos, mais antigo, mas não se conhecem mutuamente; por isso as diferenças persistiram; também não podem ser harmonizadas entre si. Até mesmo as árvores genealógicas de Jesus nos dois evangelistas são totalmente diferentes e, como parecem um constructo artificial, foram criadas por interesse proclamativo distinto: em Lucas, a árvore genealógica remonta ao primeiro ser humano, porque Jesus, entre outras coisas, deve ser apresentado como o “novo Adão” (do qual Paulo fala em maior detalhe); já em Mateus, Jesus é “filho de Davi” e “filho de Abraão”, na qualidade de Messias do povo de Deus, constituído de judeus e gentios, escatologicamente renovado.

IHU On-Line – Por que Mateus e Lucas dedicaram mais atenção ao nascimento de Jesus do que os outros evangelistas?

Rudolf Pesch – O Evangelho mais antigo, que é o de Marcos, não apresenta a história do nascimento ou da infância de Jesus, presumivelmente porque esse evangelista (que segundo a tradição estava muito ligado a Pedro) nem conheceu semelhante tradição ou mesmo uma narrativa formada. O quarto Evangelho, que provavelmente é o mais recente, o de João, começa, como Marcos, com o aparecimento de João Batista; mas nesse fluxo narrativo ainda precede o prólogo do Logos, com caráter de hino, que resume a história da salvação desde a criação do mundo e celebra a encarnação do logos em Jesus como ápice dessa história. Mateus e Lucas provavelmente conheceram e depois colocaram no início dos seus evangelhos as histórias do nascimento e da infância, que entrementes foram elaboradas de modo diverso por narradores com talento teológico, em analogia a histórias do Antigo Testamento e do judaísmo incipiente, sobre os grandes homens de Israel. Mateus também mostra como a história posterior de Jesus e dos seus discípulos já se reflete na infância de Jesus: a Igreja também é perseguida e, graças a Deus, sempre volta a ser salva. Ao acolher as histórias da infância de João Batista, colocando-as em paralelo e relacionando-as com as de Jesus, Lucas faz a ligação com a história de Israel que precede Jesus, assim como, nos Atos dos Apóstolos, ele faz a conexão com a história da Igreja. Afinal, ele quer anotar tudo que “se cumpriu” no presente.

IHU On-Line – Como o Evangelho de Lucas, que tem um forte caráter missionário, pode ser inspiração para a missão da Igreja atualmente?

Rudolf Pesch – O caráter missionário do Evangelho de Lucas deveria ser entendido como captado, descrito e entendido a partir dos Atos dos Apóstolos. Em suma, para Lucas, assim como para a Igreja dos primeiros tempos, ocorre “missão pela fascinação”. A vida da primeira comunidade em Jerusalém, com sua concórdia, sua disposição para partir (da Galiléia para Jerusalém: os galileus, dos quais fala o anjo na Ascensão, e dos quais falam os ouvintes oriundos de tantos povos em Pentecostes, não se sentiam em casa em Jerusalém, mas mudaram-se para lá em função da mensagem do Jesus Messias e Senhor), com sua comunhão de bens (não ideológica, mas pragmática em função das circunstâncias da transferência), sua coragem de falar, também com sua competência teológica e finalmente com seu convívio convincente (mais tarde se ouve: “Vede como se amam!”), era uma vida fascinante e convidava muitos a se ligar a essa comunidade, a comunidades com essas características. Portanto, o que Lucas nos pergunta é: Queremos tornar-nos novamente comunidades tão fascinantes? Quanto nos vale esse objetivo? Quanto vamos empenhar por ele? Esta seria a pergunta que cada festa de Natal dirige a nós! O primeiro passo foi dado pelo próprio Deus com o nascimento de Jesus. No hino de Natal cantamos “O Cristo oculta seu poder ... humilde servo vem a ser”. Isto também significa que o caminho para a paz é o “caminho de baixo”.

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