Edição 286 | 22 Dezembro 2008

Paulo, o universalismo e a Ética Mundial

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

O universalismo que pode fundamentar uma Ética Mundial é um dos principais legados de Paulo de Tarso, destaca Hermann Häring. Esse caráter abre espaço para o diálogo inter-religioso e intercultural, livrando o universalismo cristão de sua fantasia de superioridade

Em seu tempo, Paulo já apresenta uma conduta surpreendentemente moderna, avalia o teólogo alemão Hermann Häring, na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “Naturalmente, em nenhuma passagem Paulo fala de autonomia, mas com grande paixão ele pleiteia pela nova liberdade, que seus adeptos conquistaram”, assinala. E explica: “Uma autonomia absoluta não é só irreal, porém perigosa para a convivência, porque direitos só têm sentido como reverso de obrigações. Precisamente a forte vinculação pessoal de Paulo ao evento Cristo cria uma autonomia orientada, da qual nós também necessitamos novamente hoje”. Häring menciona que “ninguém inculcou tão profundamente no cristianismo o pensamento do universalismo como Paulo. Ele iniciou sistematicamente e fundamentou explicitamente o primeiro processo histórico de universalização”. Em seu ponto de vista, Paulo ancora o seu universalismo na conduta interna das pessoas ante o mandamento do amor que lhes é exigido por Deus. “Ele não acrescenta nenhuma nova condição, nenhuma ulterior indicação de conduta. O seu universalismo pode sem esforço e de modo preciso ser inserido na fundamentação de um ethos mundial, o que abre espaço para o diálogo entre culturas e religiões. Paulo mostra acima de tudo um caminho que liberta o universalismo cristão de suas fantasias de superioridade”.

Häring leciona teoria da ciência e teologia desde 1999 na Universidade de Nimwegen, Holanda, onde é diretor do Instituto para Religião, Ciência e Cultura desde 2005. É um dos colaboradores externos da Fundação de Ética Mundial de Hans Küng, na Alemanha, exercendo o cargo de conselheiro científico. Graduado em Filosofia pelo Pulach de Munique, especialista em Hegel, é diplomado em Teologia, pela Universidade de Tübigen. Algumas de suas obras são Zum Problem des Bösen in der Theologie (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1985), Hans Küng. Grenzen durchbrechen (Mainz: Matthias-Grünewald-Verlag, 1998), Theologie und Ideologie bei Joseph Ratzinger (Düsseldorf: Patmos Verlag, 2001) e Glaube ja, Kirche nein? Die Zukunft christlicher Konfessionen (Darmstadt: Primus Verlag, 2002).A tradução é de Benno Dischinger.

IHU On-Line - As idéias de Paulo de Tarso podem colaborar para a sedimentação de uma Ética Mundial? Por quê?

Hermann Häring - O Projeto Ética Mundial  não é religioso no sentido estrito, mas é um projeto secular porque se dirige a todas as culturas, a todos os povos e a todas as pessoas de boa vontade. Porém, desde o início as religiões mundiais desempenham um papel relevante neste projeto, e naturalmente o Projeto Ética Mundial pode receber de Paulo muitas inspirações que são de profundo significado antropológico e social. Naturalmente, Paulo formula com freqüência seus pensamentos éticos de forma passional e como manifestação de sua percepção interna. Mas nós podemos traduzir estes pensamentos na linguagem mais racional de uma ética moderna de responsabilidade, para que sejam entendidos num mundo secular. Especificamente menciono:

- A doutrina da justificação sem obras (Romanos 3,28) se ocupa com a questão central da justiça. Segundo Paulo, existe uma justiça mais profunda, que aceita todos seres humanos como humanos e por isso lhes reconhece efetivamente seus direitos fundamentais. Isso não dispensa regras e padrões éticos, porém insiste numa postura básica que possibilite a concreta realização de justiça. “Revesti-vos do homem novo, criado segundo a imagem de Deus, em verdadeira justiça [!] e santidade.” (Ef 4, 24).

- Para a estruturação da convivência vale para Paulo o amor como a regra mais sublime, indestrutível e sempre válida (l Co 13, 1-13). Todos os seus escritos estão perpassados pelo apelo à unanimidade e compreensão recíproca, ao espírito pacífico e à fidelidade sexual (l Coríntios 6), ao interesse pelos mais fracos, à misericórdia e ao perdão, à leal franqueza e à reconciliação (2 Coríntios 5, 11-21), à defesa da liberdade (Gálatas 4, 8 - 6, 10). O que Paulo, via de regra, aduz para a convivência de cristãos pode, sem esforço, ser traduzido para uma linguagem secular que promova a convivência de povos e culturas. Ele conjuga os mandamentos sociais (não matar, não roubar, não cometer adultério) no mandamento do amor ao próximo (Romanos 13, 8-10). Desta forma, ele concretiza a Regra Áurea e respectivamente o princípio de humanidade, que no Projeto Ética Mundial vale como parâmetro para todas as outras normas e valores éticos.

Crítico da Tora

Paulo tornou-se o grande crítico da Tora.  Mas, como mostram suas reflexões bastante diferenciadas, ele não rejeita simplesmente a Tora, mas antes reduz suas regras a um parâmetro universalizável que serve de exemplo para a redução de regras que exige o ethos global. As leis, regras sociais e políticas da convivência global devem sempre de novo ser mensuradas pelas necessidades concretas. O motivo para a crítica paulina da lei foi a inculturação do cristianismo no mundo grego.

- O agir carismático subjaz, segundo Paulo, ao mandamento do amor, porém ele o aprecia como princípio estruturador da comunidade e isto vale principalmente para o falar profético que é entendido por terceiros (1 Coríntios 14). No discurso de um ethos global, isto significa: a estruturação amigável de uma convivência global requer fantasia e uma adesão criativa de pessoas que agem a partir de valores comuns.

- Para Paulo, Cristo se despojou até a morte na cruz (Filipenses, 2, 7s.). Os teólogos falam de uma teologia da cruz, na qual se viu com freqüência o caminho cristão específico para a reparação pelos pecados do mundo. Paulo vê nisso, em primeira linha, uma prefiguração profundamente humana para uma ilimitada solidariedade entre os seres humanos que se empenham uns pelos outros na vida e na morte: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que teve Cristo Jesus” (Fl 2, 5). Quem se dispõe para um ethos global, deve, neste caso limítrofe, dispor-se para uma solidariedade global.

IHU On-Line - O universalismo de Paulo poderia ser o fundamento para essa ética mundial?

Hermann Häring - Ninguém inculcou tão profundamente no cristianismo o pensamento do universalismo como Paulo. Ele iniciou sistematicamente e fundamentou explicitamente o primeiro processo histórico de universalização. Em todo o caso, esta tendência modificou fortemente seu anuncio em face da originária comunidade judaica. Só assim o apelo à universalidade podia sempre de novo tornar-se eficaz.

Este universalismo aparece na cristologia paulina. Paulo não concentra seu anúncio na recordação da vida e das ações de Jesus, porém integralmente no Senhor ressuscitado. Ele não se interessa por Jesus “segundo a carne” (2 Coríntios 5, 16) e todo o colorido da cotidianidade judaica retrocede. Porém o Senhor ressuscitado, que lhe apareceu (Atos 9, 1-22), tem um significado cósmico universal. No final dos tempos, ele se submeterá a Deus que lhe submete tudo (1 Coríntios 1, 26) A validade cósmica de Cristo se manifestará finalmente na ressurreição de todos os mortos. Nesta não valerá mais nenhuma predileção judaica ou cristã, porém unicamente a luta entre morte e vida, que é travada em cada ser humano: “Morte, onde está tua vitória!?” (1 Coríntios 15, 55). Trata-se de uma luta que é travada diariamente num mundo globalizado.

Este universalismo do ressuscitado espelha-se na imagem paulina do ser humano, que modifica de maneira dramática a antropologia judaica. Paulo insere todas as condições particulares da Tora judaica numa moldura universal. Nos primeiros três capítulos da carta aos Romanos (1,18 – 3,20) ele desenha uma sóbria imagem do ser humano. Os humanos estão “cheios de injustiça, malícia, avareza e maldade, repletos de inveja, homicídio, contendas, engodos e malvadeza; eles são murmuradores e detratores, inimigos de Deus, são insolentes, soberbos, altivos, caluniadores, rebeldes e inventivos no mal..., eles são intolerantes e desmedidos, sem amor ou compaixão. Eles reconhecem que a sentença divina correta determina: quem assim age, merece a morte. Apesar disso, eles não somente cometem tais coisa eles próprios, mas aplaudem quem assim procede” (Romanos 1, 29-32). Pois bem. Estas palavras podem, sem nenhum esforço, ser entendidas como descrição da situação do mundo contemporâneo.

Obrigatoriedade interior

Graças à sua orientação universal, Paulo relativiza todas as orientações concretas que se implantaram no povo de Israel através da Tora. Seu perigo reside no orgulho e no sentimento de superioridade. Conhece-se o preceito divino, mas não se cumpre. Simultaneamente, Paulo radicaliza a lei pela obrigatoriedade interior. Com isso, ampliam-se as perspectivas, porque no coração as normas e os valores foram inscritos também nos não judeus. Expresso modernamente: existe um ethos global que vale para todos os homens: se os não-judeus, “que não possuem a Tora, fazem por natureza o que é exigido na Lei, eles são... Lei para si mesmos. Desta forma, eles mostram que a exigência da Lei lhes foi inscrita no coração; sua consciência dá testemunho disto, seus pensamentos se acusam reciprocamente e se defendem...”.

Assim, Paulo reconduz as diferenças religioso-culturais entre judeus e não-judeus a bases humanas universais. Para este fim, também lhe presta ajuda a distinção entre “carne” e “espírito”. Existe, como ele o diz, não só uma circuncisão (isto é, uma recepção na promessa divina) no corpo, mas também uma “circuncisão” no espírito. Esta última não depende mais do rito judaico, porém da conduta e disposição interna das pessoas: “Judeu não é quem o é para fora, e circuncisão não é o que ocorre visivelmente na carne, porém é judeu quem o é ocultamente e circuncisão é “o que ocorre no coração pelo espírito, e não pela letra” (Rm 2, 28). O universalismo paulino não afirma, portanto, que uma determinada tradição judaica ou cristã tenha significado universal, mas ele não exclui nenhum grupo humano. Paulo ancora o seu universalismo na conduta interna das pessoas ante o mandamento do amor que lhes é exigido por Deus. Ele não acrescenta nenhuma nova condição, nenhuma ulterior indicação de conduta. O seu universalismo pode, sem esforço e de modo preciso, ser inserido na fundamentação de um ethos mundial, o que abre espaço para o diálogo entre culturas e religiões. Paulo mostra acima de tudo um caminho que liberta o universalismo cristão de suas fantasias de superioridade. Ele nos ensina a – junto com outras religiões – submeter-nos a um ethos global. A garantia para esta postura positiva em relação ao mundo Paulo a encontra no próprio Cristo, que ele concebe como pura positividade. Jesus Cristo “não é simultaneamente o sim e o não...; nele se concretiza o sim. Ele é o sim a tudo o que Deus prometeu” (2 Coríntios 1, 19s.). Por isso, Cristo aparece simultaneamente como o novo Adão, simplesmente como homem (1 Cor 15, 45), em quem todas as pessoas revivem (1 Coríntios 15, 22). Esta palavra paulina poderia valer para todos os cristãos como motivo geral de seu engajamento num ethos global. 

IHU On-Line - Como se pode conciliar este universalismo com a autonomia e individualidade na nossa sociedade?

Hermann Häring - Como entende Paulo este novo universalismo diante de questões de autonomia e individualidade? Para evitar uma argumentação anacronística, consideremos logo, ao mesmo tempo, a situação da atualidade. Paulo mostra, já em seu tempo, uma surpreendente conduta moderna.

Naturalmente, em nenhuma passagem Paulo fala de autonomia, mas com grande paixão ele pleiteia pela nova liberdade, que seus adeptos conquistaram. Na carta aos Gálatas, ele não se preocupa, em primeira linha, com a verdade abstrata de uma fé da qual não devemos afastar-nos. Ele defende antes a libertação que seus adeptos alcançaram. Os “falsos irmãos” controlam-no desconfiados porque causa desta inusitada abertura; eles querem transformá-lo novamente num “escravo”. Contra isso ele reage com veemência (Gálatas 2, 4s.). Mas ele contagia a comunidade com seu vírus da libertação: “Cristo libertou-nos para a liberdade. Ficai, portanto, firmes e não vos deixeis sujeitar novamente ao jugo da escravidão” (Gálatas 5, 1). Com muita evidência, Paulo entende com liberdade um estado que não aliena mais o ser humano de si mesmo. A alienação ocorre, para Paulo, por submissão sob a “lei” imposta de fora, que nos impele constantemente para uma cisão interna, porque sempre acabamos fracassando. Paulo menciona esta cisão interna para superá-la.

Verdadeira autonomia

Evidentemente, não existe para ele nenhuma autonomia absoluta no sentido moderno da palavra. Mas também é evidente que esta submissão à vontade de Deus – que para ele é o espírito do amor (2 Coríntios 3, 17) – não suspende esta autonomia, porém a possibilita. Precisamente aqui está o parentesco com um pensamento básico do ethos mundial. As leis de uma boa e pacífica convivência (do respeito mútuo, da justiça, da veracidade e da fidelidade) são as condições básicas de uma verdadeira autonomia, realizável aqui e agora. Uma autonomia absoluta não é só irreal, porém perigosa para a convivência, porque direitos só têm sentido como reverso de obrigações. Precisamente a forte vinculação pessoal de Paulo ao evento Cristo cria uma autonomia orientada, da qual nós também necessitamos novamente hoje.

Na consciência pública de nossos povos as igrejas cristãs não se posicionam necessariamente em favor da individualidade e da incondicional validade do sujeito. Para Paulo, ocorre o contrário. Paulo não chegou à comunidade com outros, porém como “batalhador isolado” pela fé cristã. Uma vivência radicalmente individual transformou Saulo em Paulo. Ele apela repetidamente para aquela aparição ante as portas de Damasco (Atos 9,4). Somente neste encontro ele chega a si. Agora ele se distancia de sua vida até então; a nova verdade concentra-se naquele instante decisivo. Agora ele segue um caminho que ele desenvolve integralmente a partir de sua experiência pessoal. No instante de sua vocação, sua fidelidade a Cristo e sua fidelidade a si próprio se cruzaram num mistério individual.

Mais tarde, ele apresenta (de maneira semelhante a Agostinho  e Lutero ) suas numerosas análises e auto-observações antropológicas: “Porque eu não entendo o meu agir: eu não faço o que eu quero, porém aquilo que eu detesto. Mas, quando eu faço o que eu não quero, eu reconheço que a lei é boa” (Romanos 7, 15-20). Só pode escrever deste modo quem é consciente de sua cindida, porém incontornável individualidade. Mas ele não se esquiva dela. Paulo vê-se confrontado consigo mesmo porque entende sua vocação simultaneamente como responsabilidade por aqueles que andam com ele: “Tendes de enfrentar o mesmo combate que antes vistes em mim e do qual também ouvis agora” (Filipenses 1, 30). “Não há dúvida de que sois uma carta de Cristo, confeccionada por nosso serviço, escrita... em tábuas – no coração de carne.” (2 Coríntios 3,3).

Hoje, um ethos mundial global só pode desenvolver sua força por pessoas que se encontram em grande fidelidade consigo e atuam segundo sua responsabilidade. A Declaração de Chicago  (1993) fala – de maneira totalmente moderna – de “mudanças de consciência no indivíduo e na opinião pública”, bem como da “irrefutável responsabilidade” de cada um “pelo que faz ou deixa de fazer”. Sem isto não podemos obter progressos. De que maneira isto se torna possível, podemos aprender em Paulo.

IHU On-Line - Que aspectos de Paulo de Tarso podem ajudar-nos a inspirar o diálogo inter-religioso e intercultural?

Hermann Häring - A teologia paulina é essencialmente uma teologia intercultural. A contribuição paulina consiste em que ele abriu, para a tradição judaica, os caminhos para um processo de inculturação paradigmático. Porém, retrospectivamente considerado, não participa também deste processo um impulso cristão autônomo, a saber, a fé em Jesus Cristo? Esta questão não pode ser respondida com um unívoco sim ou não. A recordação de Jesus de Nazaré já atuava no judaísmo como força autônoma. Porém, naquela época, ainda não se tinha decidido se esta recordação de Jesus na fé realmente se desenvolveria numa religião autônoma. Precisamente esta dificuldade nos mostra que processos de inculturação não ocorrem como processos de transposição estaticamente isoláveis. Quando são exitosos, formam-se novos espaços de encontro, nos quais diversas culturas podem encontrar-se em recíproco respeito. Surgem espaços para diálogos inter-religiosos e interculturais.

Isso, no entanto, não conduz a uma terceira cultura isolada das outras. É verdade que, ao lado do judaísmo e dos espaços culturais gregos surge a Igreja cristã, nomeada, na antiga Igreja, como “terceira geração”. Porém, Paulo não vê, ao lado dos judeus e dos “pagãos”, nenhuma terceira unidade. Ele antes diferencia judeus e não-judeus entre “carne” e “espírito”. Esta distinção atravessa ambos os grupos. Quem, portanto, se decide pelo Cristo ressuscitado não precisa abrir mão de seu ser judaico ou ser grego, ser romano ou germânico, porém ele continuará sendo judeu, grego, romano ou germânico, argentino ou coreano, índio ou africano. Decisivo é que ele (como vimos) viva “no espírito”.

A nova fé que Paulo anuncia não se fixa, assim, em nenhuma cultura determinada, porque em cada cultura podemos viver “no espírito”, isto é, ser circuncidados “ocultamente” ou “no espírito”. Mais ainda: desde Paulo, esta abertura para novas culturas e diálogos interculturais e a via para sempre novas inculturações pertencem ao critério da existência cristã. Caso contrário, abriríamos mão (de maneira semelhante à obediência meramente carnal da Tora) da liberdade dos filhos de Deus. Se os cristãos querem, pois, realmente viver no espírito de Cristo, devem abrir-se para outras culturas, situações sociais e problemáticas.

Postura inter-religiosa

Esta abertura vale também para outras religiões? Paulo pode inspirar também nossa postura inter-religiosa? Aqui, uma resposta se torna mais complexa, porque, com grande zelo, Paulo persistiu na validade exclusiva da fé em Cristo. De acordo com sua teologia da cruz, a fé cristã é escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1 Coríntios 1,23). Apaixonadamente, ele exclama: “Quem não ama o Senhor, seja anátema” (1 Coríntios 16,22). Com o mesmo zelo escreve: “Todos os que vivem segundo a Tora, estão sob um regime de maldição.” (Gálatas 3,10). Neste ponto precisamos ser realistas. Também Paulo foi filho de seu tempo, no qual a fé num Deus único se diferenciava das muitas formas de fé politeísta que ele conhecia.

Entretanto, neste ponto, Paulo está dividido. Sempre que ele não argumenta formalmente a partir de seu passado, porém intrinsecamente a partir do fim da humanidade, ele chega a afirmações opostas. Quando se trata da universalização da salvação, ele reduz a obrigação maciçamente à Tora: restam apenas quatro das muitas regras; até mesmo a circuncisão é dispensada. Toda a tensão do problema inter-religioso ele a traz em seu próprio corpo. Ela o conduz a afirmações paradoxais, porém integralmente autênticas: “Pois eu próprio desejava ser segregado por Cristo pelos meus irmãos, que são meus patrícios segundo a carne” (Romanos 9,3). Apesar de todas as decepções, ele espera pelo dia em que todo Israel será salvo (Romanos 11,26). E ele, que encontrou em Cristo sua identidade e radical subjetividade, põe esta identidade sempre de novo à prova. Ele se tornou um judeu para os judeus, aos sem lei um sem lei, aos fracos um fraco. “Eu me tornei tudo para todos, para por todos os meios salvar alguns” (1 Coríntios 9,20-23). Tal zelo por um futuro comum deve hoje determinar nossos diálogos inter-religiosos.

IHU On-Line - Como pode ser explicado o crescente interesse de filósofos como Zizek,  Agamben,  Badiou , Lyotard  e Taubes  por Paulo de Tarso?

Hermann Häring - O crescente interesse dos mencionados pensadores é, de fato, um fenômeno fascinante. Aqui não é possível dar uma resposta exaustiva. A teologia cristã infelizmente quase não acolheu estes novos discursos, porém para um ethos mundial essas reflexões são muitíssimo interessantes.

O Projeto Ética Mundial busca um objetivo profundamente humano: a regulamentação da convivência global segundo padrões e posturas éticas, que são indispensáveis para uma humanidade pacífica. Simultaneamente este projeto (junto a cosmovisões seculares) se dirige às religiões mundiais apelando ao seu ethos e a suas potencialidades éticas, porque na convergência global das forças politicamente relevantes eles constituem os principais atores do agir moral. Acresce a isto que muitos defensores do pensamento que expressa o ethos mundial agem a partir de convicções e motivações especificamente religiosas. Tem sua boa razão que a Declaração pelo Ethos Mundial global tenha sido proclamada pelo parlamento das religiões mundiais. Fins religiosos e seculares perfazem um vínculo que até então era desconhecido.

Mas o que ocorre nos mencionados pensadores? Todos eles descobrem em Paulo uma força política atual relevante. Eles vêem em Paulo não o pensador de uma intimidade religiosa, mas de um futuro universal e cósmico, embora ele aja num jogo lingüístico religioso. Também sua crítica da falência das pessoas (tanto judeus como não-judeus) é marcada por perspectivas políticas. Assim, ele pensa a doutrina da justificação, religiosamente motivada de maneira tão profunda, precisamente como questão de justiça, e também como a questão, a que poder nós estamos submetidos. Sua resposta paradoxal diz: graças à reconciliação e aceitação recíprocas, são possíveis reconciliação e paz entre os homens, embora falhemos constantemente. Isto é um esperar “contra toda esperança” (Romanos 4,18), para nossa era presente uma afirmação secular e politicamente global, que traz em si um enorme potencial de esperança. Somente quem espera por isto pode encontrar a adesão por um ethos global.

Imperialismo religioso?

No entanto, o apelo a Paulo para um ethos mundial global não é uma questão ambivalente? Porque Paulo apela fundamentalmente a Jesus Cristo e ao Deus cristão. Este universalismo paulino não incide num imperialismo que considera a fé cristã como a melhor de todas as religiões? Precisamente, neste ponto, vale a pena estudar mais precisamente os mencionados autores, porque eles demonstram com grande poder de convicção o seguinte: a relevância secular atual da mensagem paulina também pode ser compreendida sem um recurso explícito às suas categorias religiosas. Seja quem for o Ressuscitado e o Deus Jesus Cristo, Paulo fundamenta um universalismo cujos elementos convencem a partir de si mesmos:

(1) Paulo consegue, como vimos, uma superação de contradições culturais e religiosas, a qual já não deve mais conduzir a ulteriores cisões, porque ele pergunta pela concepção de pessoas que não é judaica, grega ou cristã, porém se orienta segundo um mundo disponível ou pelo amor indisponível.

(2) Paulo vive desde sua experiência da ressurreição uma subjetividade imensamente forte, cuja força – mediada pelas epístolas paulinas – cunhou muitos séculos. “Ressurreição” torna-se símbolo de um novo início criador que domina os tempos.

(3) Paulo desenvolve um quadro humano que assume todas as experiências de uma alienação e cisão interior e lhes resiste. Isto se torna fonte de uma posterior universalidade.

(4) Paulo pensa conjuntamente a plenitude dos tempos, portanto, do passado e do futuro, num presente, de modo que ele pode tornar-se o início de uma nova era mundial.

(5) Em sua análise da morte de Jesus na cruz e de sua própria situação, ele antecipa a experiência de todas as comunidades excluídas, de todos os seres humanos desprezados.

Sem dúvida, para a maioria destes pensadores “ressurreição”, “filho de Deus” ou “Deus” se tornam metáforas superadas. Sobre isso é preciso discutir em outro lugar. Decisivo para o interesse do ethos mundial é que podemos transferir muitos impulsos paulinos para um diálogo inter-religioso e um diálogo secular e aí torná-los frutíferos. Eles transformam Paulo – querendo ou não – numa figura central de nossa época.

IHU On-Line - Quais são as contribuições de Paulo de Tarso para uma avaliação crítica do cristianismo atual?

Hermann Häring - Esta questão ultrapassa o âmbito desta entrevista. Ninguém pode contestar que o cristianismo está sujeito a todos os perigos que Paulo já denunciara em sua crítica ao Israel de então. As igrejas sucumbiram a esses perigos. Em primeiro lugar, deve a Igreja católica posicionar-se ante as questões superatuais de Paulo. Menciono brevemente os seguintes pontos. Em Paulo se pode aprender o seguinte:

- sempre de novo pôr em discussão a própria identidade e as próprias seguranças, no sentido de tornar-se um fraco para os fracos. A Igreja Católica oficial tem grandes problemas com esta autocrítica;

- exercitar a inculturação e a inter-religiosidade de tal maneira que outras religiões e culturas sejam realmente levadas a sério. Quem sempre considera sua própria tradição religiosa e cultural como superior, murcha e perde toda e qualquer inspiração profética;

- sempre de novo perguntar se realmente vivemos a própria fé, o anúncio e os sacramentos segundo a carne ou segundo o espírito. Somente no último caso nos é prometido um futuro;

- tornar-nos conscientes do fato de que rupturas ou mudanças culturais radicais também conduzem a rupturas nas próprias opções e na formulação da própria fé. A Igreja oficial parece não estar hoje disposta a assumir esta ousadia. Diante de Paulo, ela não pode permanecer assim.

Paulo, esta personalidade forte, auto-consistente, orientada para a liberdade e agindo com franqueza [2 Coríntios 3,12: ‘parresia’], tinha, afinal, a força de opor-se a Cefas face a face (Gálatas 2,11). Nós necessitamos na Igreja de uma nova franqueza no falar e no agir - e isto, em todo o caso, não a partir de um espírito destrutivo de contradição, porém a partir da força do Espírito Santo. Muitos de nós já se encontraram com o Senhor em experiências bem profundas. Cristo os libertou para uma nova liberdade. Somente a força de tais co-cristãos e co-cristãs pode fortalecer a Igreja para o futuro global de uma humanidade reconciliada.

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