Edição 285 | 09 Dezembro 2008

“A crise atual certamente representa o fim do neoliberalismo, mas não necessariamente o fim do capitalismo”

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Graziela Wolfart

Elmar Altvater alerta para o fato de que a computação dos danos na natureza em valores monetários despertou a atenção para a crise climática

Para o economista e cientista político alemão Elmar Altvater, “são consideráveis as diferenças entre crise financeira, crise energética e climática e a fome. Isto porque na crise financeira só se perdem valores monetários, e estas perdas, em princípio, são reversíveis. Já na crise climática, cometem-se danos irreversíveis contra a natureza, os quais mudam radicalmente as condições de vida das pessoas”. Em entrevista exclusiva à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele defende que não se trata de voltar a épocas pré-capitalistas e pré-industriais, mas de “criar sistemas energéticos moderníssimos e de alta eficiência. Só que estes exigem uma mudança nas estruturas de espaço e tempo, além de outros modelos de mobilidade, de produção e consumo, diferentes dos que estamos acostumados. Dificilmente se pode conceber que a mobilidade individual com o automóvel possa ser praticada por toda a eternidade”.

Altvater é professor de Ciência Política na Universidade Livre de Berlim. É autor de um número significativo de livros e artigos, em que estuda a evolução do capitalismo, a teoria do Estado, a política de desenvolvimento, a crise do endividamento e as relações entre economia e ecologia. Entre seus livros publicados em português, citamos O preço da riqueza. Pilhagem ambiental e a nova (des)ordem mundial(São Paulo: Unesp, 1995).

IHU On-Line - Por que a crise financeira parece mais importante que a crise climática? Como entender que, mesmo com o aumento da temperatura do Ártico e com a diminuição das geleiras, as pessoas só sabem falar da crise econômica? A mídia tem responsabilidade nisso?

Elmar Altvater - Até poucos meses atrás, a crise climática ocupava o centro das atenções de todos. Somente após o colapso de Lehmann Brothers, em setembro de 2008, é que a crise financeira tornou-se o assunto principal. Entrementes, sabemos que os custos da crise financeira serão iguais aos custos do colapso climático, isto é, cerca de 20% do produto social global. Estes são os números que constam no relatório de Nicholas Stern sobre os custos da mudança climática, e isto é o que escreve o banco central europeu sobre os custos potenciais da crise financeira. Em muitos lugares do mundo, entretanto, são consideráveis as diferenças entre crise financeira, crise energética e climática e a fome. Isto porque na crise financeira só se perdem valores monetários, e estas perdas, em princípio, são reversíveis. Já na crise climática, cometem-se danos irreversíveis contra a natureza, os quais mudam radicalmente as condições de vida das pessoas. A computação dos danos na natureza em valores monetários é o que despertou a atenção para a crise climática. Por isso que o relatório de Nicholas Stern recebeu tanta atenção mundo afora.

IHU On-Line - Como entender a interligação das crises financeira e climática? Como elas se relacionam entre si e com a crise dos alimentos no mundo? Como o momento atual nos ajuda a entender a relação entre economia e ecologia?

Elmar Altvater - Com efeito, as crises energética, climática e financeira não são independentes uma da outra. Portanto, estamos nos deparando com uma crise do sistema. A crise financeira jamais teria eclodido se os superávits da economia real tivessem bastado para cobrir as obrigações financeiras. Mas, para tanto, o crescimento da economia real precisaria ter sido ainda maior do que de fato foi o caso. Ora, o crescimento depende do suprimento de energia; se esta fica mais cara, isto tem conseqüências para o crescimento e para a capacidade de serviço da dívida. Pretendia-se combater a crise climática com “instrumentos de mercado”, com o comércio de emissões (créditos de carbono). Ou seja, queriam colocar os mercados financeiros a serviço da política climática. Isto sempre foi uma idéia maluca; e a crise financeira mostra que ela nem é viável.

IHU On-Line - O senhor acredita que chegamos ao fim do capitalismo e do neoliberalismo? Com a crise do meio ambiente e a atual crise financeira, que outro modelo podemos imaginar para ocupar o lugar da sociedade de consumo?

Elmar Altvater - Chegamos ao fim do capitalismo que conhecemos, não ao fim do capitalismo em si. A crise atual certamente representa o fim do neoliberalismo, mas não necessariamente o fim do capitalismo. Pode até acontecer que, na crise, o capitalismo se renove. Tanto Karl Marx  quanto Josef A. Schumpeter  mostraram as razões disso. Crises têm efeito destrutivo, ao mesmo tempo em que, ao longo delas, o sistema se renova. Antonio Gramsci  chamou isso de capacidade para transformações na sociedade, na tecnologia, na política e nas estruturas econômicas (“transformismo”) e constatou que, nas crises, a hegemonia pode se reestabilizar. Acontece, porém, que a crise atual é uma crise sistêmica. Isto implica que as transformações não podem limitar-se à superfície. Mas é difícil dizer em que direção elas apontam. É que a direção é determinada por medidas sociais, parte de muitas partes interessadas e ocorre em muitas regiões. Por isso só se pode dizer de forma muito genérica em que direção irão as transformações sociais. Ou o capitalismo pós-neoliberal se torna uma sociedade muito autoritária, com imposição de poder imperial em âmbito global, ou se cria um capitalismo descentralizado, com redes regionais em forma de cooperativas. Um capitalismo autoritário muito provavelmente também é um capitalismo beligerante. Acontece que a imposição autoritária do poder depende de fontes de energia fósseis, as quais, em primeiro lugar, são escassas, de modo que ficam inevitáveis conflitos pelas últimas jazidas de óleo e gás. Em segundo lugar, o uso das fontes de energia fósseis tem por conseqüência o efeito estufa, que já poderia lançar o mundo num caos de crise ambiental com muitos refugiados ambientais já nas próximas décadas. Por isso, o capitalismo descentralizado e desglobalizado seria a variante mais amigável e humana.

IHU On-Line - Que fontes de energia e que tipo de combustível o senhor indicaria para uma sociedade nova, da nova revolução tecnológica e cultural, livre do modelo industrial? Por que o senhor acredita que a única saída para a humanidade é o uso de energias renováveis?

Elmar Altvater - Essa variante humana do capitalismo só pode ser implementada em se reformando o sistema energético, passando do fóssil para um sistema renovável. Entre as energias renováveis, estão a eólica, a hidráulica, a térmica, a radiação solar direta e, naturalmente, a biomassa. Será necessário usar todas as fontes de energia solar, porque as fósseis estão acabando, além de sua combustão ser altamente prejudicial para o clima. Portanto, será preciso voltar para o regime solar de energia, que os seres humanos usaram ao longo de toda a sua história. Hoje, evidentemente, usando tecnologia moderna, podemos usar as energias solares de forma muito mais intensiva e cômoda do que era possível no passado. Não se trata de voltar a épocas pré-capitalistas e pré-industriais, mas de criar sistemas energéticos moderníssimos e de alta eficiência. Só que estes exigem uma mudança nas estruturas de espaço e tempo, além de outros modelos de mobilidade, de produção e consumo, diferentes dos que estamos acostumados. Dificilmente se pode conceber que a mobilidade individual com o automóvel possa ser praticada por toda a eternidade.

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre o etanol?

Elmar Altvater - Como combustível, o etanol concorre com o petróleo enquanto este ainda estiver disponível. O preço do combustível é ditado pelo preço do petróleo. Subindo o preço do petróleo, o etanol se torna competitivo; caindo o preço do petróleo, o etanol perde competitividade. Esse sobe-e-desce caracteriza o mercado de combustíveis de um modo geral, o etanol mais especificamente desde o Proálcool, em 1975. Outro problema é a concorrência no uso do solo. A mesma área usada para produzir combustíveis poderia ser usada para produzir alimentos. Essa concorrência pode exacerbar-se em violentos conflitos sociais, se não houver alimento suficiente pelo motivo de a terra ser usada para produzir combustível. A biomassa pode ser usada como combustível, mas isto precisa ser feito com cuidado. É preciso evitar a manutenção da automobilidade às custas do aumento do número de famintos no mundo.

IHU On-Line - Como o incentivo às fontes de energia renováveis e limpas se contrapõe com a energia nuclear? Qual sua opinião sobre o acordo Brasil – Alemanha? (O vice-ministro da Economia alemão, Bernd Pfaffenbach, disse que o país preservou o acordo nuclear com o Brasil, assinado em 1975, por interesse do governo brasileiro. Mas nele foi incluído um acordo para energia sustentável e aumento da eficiência energética, que prevê também a cooperação na área de biocombustíveis).

Elmar Altvater - A energia atômica não tem futuro, mas pode destruir o futuro da humanidade. Em primeiro lugar, também o urânio é uma fonte limitada e finita de energia, a não ser que a energia nuclear seja produzida em reatores rápidos. Essa tecnologia não está disponível hoje, sendo perigosíssima. É como se quiséssemos instalar o reator de fusão que é o sol na Terra, e não a uma distância segura de 200 milhões de quilômetros.  Em segundo lugar, não está resolvida a questão do lixo atômico. Mandá-lo para onde? Até hoje ninguém conseguiu apresentar uma resposta convincente e digna de crédito. Em terceiro, não há como negar o risco de proliferação. A Agência Internacional de Energia presume que nos próximos 20 anos, anualmente, sejam ligados à rede 20-30 reatores atômicos em todo o mundo. Se considerarmos apenas os conflitos criados pelo reator no Irã, podemos imaginar os conflitos que estão pintando no futuro, caso se construam 1200 novos reatores mundo afora. Estas são apenas alguma das objeções a fazer contra a energia atômica como alternativa; também se poderia apontar para os possíveis acidentes. As objeções são sérias o suficiente para se abandonar a perspectiva nuclear.

IHU On-Line - Para revertermos o aquecimento global, o que faria parte de uma mudança radical na produção econômica e no estilo de vida moderno? Como o senhor vê a proposta do decrescimento?

Elmar Altvater - Não se deve esquecer que até o início da era industrial a humanidade não conhecia crescimento. Aumentos de produtividade eram insignificantes, sendo geralmente impedidos para evitar as concomitantes mudanças sociais. Crescimento, portanto, só existe desde inícios do século XIX. Também não havia teoria do crescimento. O tema de Adam Smith  era o aumento do bem-estar das nações, não o crescimento. David Ricardo  analisou a questão da distribuição, não do crescimento. John Stuart Mill  até se voltou explicitamente contra o crescimento, pleiteando, ao invés, a contemplação. Karl Marx analisou as contradições do acúmulo de capital, mas não perguntou pelas fontes do crescimento. Somente no século XX é que o crescimento veio à baila, principalmente em conseqüência da concorrência, após o surgimento da União Soviética e do campo socialista. De uma hora para a outra, o êxito de sistemas econômicos passou a ser medido pelas taxas de crescimento. Esse tempo está chegando ao fim, porque a aceleração econômica só foi possível com ajuda das fontes fósseis de energia. Quando estas estiverem acabando e, em função da política climática, tornar-se-á necessária a redução do consumo de petróleo, o crescimento não mais poderá ser sustentado como no passado; isto sem levar em conta trivialidades econômicas que unanimemente indicam que o crescimento eterno é uma idéia absurda, mesmo que ela seja defendida por muitos economistas. Portanto, é necessária uma desaceleração, queiramos ou não. Isto exige uma mudança do regime de tempo e espaço, ou seja, também uma mudança do estilo de vida, dos padrões de produção, dos hábitos de consumo. Isto é de difícil implementação. Por isso, precisamos nos preparar para prazos longos. A questão é se temos tempo suficiente para realizar as mudanças sociais com o suficiente cuidado para se evitar graves conflitos ao máximo. A discussão sobre desaceleração e regionalização, ou seja, sobre desglobalização, muitíssimas vezes sofre do mal de ser encarada como readequação tecnológica, e não como processo social que envolve milhões e bilhões de pessoas.

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