Edição 285 | 09 Dezembro 2008

Interconexão entre as crises

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Para Eric Toussaint, presidente do Comitê pelo Cancelamento da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da Bélgica, a interligação entre as crises fi nanceiras, climática e alimentar é evidente. Segundo ele, todas fazem parte de um processo ainda maior: o esgotamento do capitalismo

“É preciso realizar uma ruptura radical”, diz Eric Toussaint, ao comentar as soluções para resolver as crises mundiais, em entrevista exclusiva à IHU On-Line, concedida por telefone, na última semana. Para ele, chegou o momento da humanidade romper com o capitalismo, mas antes disso, explica, é preciso tomar uma série de medidas imediatas. Na área das finanças, adverte, “é preciso restabelecer um controle muito rígido sobre o movimento de capitais”, e estatizar alguns bancos que estão à beira da falência. Sobre os alimentos, ele argumenta que é necessário “proibir a especulação no mercado de produtos alimentares, reduzir radicalmente a produção de agrocombustíveis”, além de retomar as práticas agrícolas através da intensificação da agricultura familiar.

Outro setor que necessita de mudanças urgentes é o energético. Num período de constantes crises ambientais, “é preciso garantir a segurança e a soberania energética utilizando ao máximo os recursos naturais e renováveis”. Nesse sentido, Toussaint aponta o potencial da América Latina e é enfático em relação à posição dos governos latino-americanos: “É preciso dar prioridade a isso e abandonar as centrais térmicas. Além disso, países como o Brasil e a Argentina devem abandonar o modelo de energia nuclear”. E aconselha: “Os governos da América do Sul precisam abandonar o modelo capitalista produtivista, e nas outras áreas da atividade econômica reduzir ao máximo as despesas, por exemplo, de grandes infra-estruturas”.

Toussaint é doutor em Ciências Políticas, pela Universidade de Liége, França. É autor de As finanças contra os povos (CADTM: Paris, 2004).

IHU On-Line - Como entender que as crises financeira, alimentar e climática estejam tão interligadas, uma influenciando a outra?

Eric Toussaint - É muito claro que há uma interconexão entre as crises financeira, alimentar e climática. A interconexão está ligada ao modo de produção que domina o Planeta hoje, ou seja, ao sistema capitalista. A busca do lucro privado máximo provocou nos últimos tempos uma evolução que resultou principalmente na crise financeira e na crise alimentar. A crise climática é resultado de uma evolução mais longa do capitalismo.

A crise financeira, por sua vez, é resultado do desregulamento do sistema bancário privado nos Estados Unidos e nas outras partes do Planeta, e também do desregulamento em nível de movimento de capitais. Há 20 anos, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e outras instituições, assim como o governo dos países mais industrializados, cresceram, pois todos os controles que existiam durante décadas sobre o movimento de capitais foram suprimidos. Para países como o Brasil e outros emergentes, são os planos justamente estruturais recomendados pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário que resultaram no abandono do movimento de capitais. Há com isso, um desregulamento financeiro generalizado, o que permitiu às instituições bancárias privadas e a outras instituições financeiras criarem novos produtos financeiros que fogem a todas as regras. E essa lista é bastante longa. Pode-se tomar, por exemplo, o crédito de “funds swap”, que consistem nestes seguros contra risco de falta de pagamento da dívida. Esses créditos representam o valor que é garantido, ou seja, mais de 50 bilhões de dólares. Trata-se de uma quantidade absolutamente enorme que é garantida por produtos financeiros que ninguém controla. E há outras criações de produtos financeiros que chamamos de CDO etc. Estou falando rapidamente sobre este assunto. E simplesmente saliento que a partir do ano passado estas montagens financeiras, complexas, não regulamentadasentraram em crise.

Crises financeira e econômica geram declínio da economia

O segundo elemento da crise é a crise econômica. Não há somente uma crise financeira; há uma crise econômica que começou no setor imobiliário nos Estados Unidos, onde houve uma superprodução de imóveis. Assim, há uma crise financeira, ou seja, uma crise da dívida privada, e uma crise econômica que, ao se misturar à crise financeira, produz agora uma crise econômica que atinge a todos os setores. Os mais atingidos são os setores da produção de automóveis, da metalurgia em geral, o qual reduz a demanda global que produz agora o declínio econômico no setor de matérias-primas. Há uma queda muito forte no preço da matéria-prima desde o mês de setembro de 2008.

Busca a qualquer preço pelo lucro gera fome e desequilíbrio no Planeta

A crise alimentar está ligada à crise financeira. Por quê? Porque uma série de grandes investidores financeiros, como o Fundo de Pensões, o Banco de Investimentos, o Banco de Negócios, os bancos comerciais, as companhias de seguros começaram a investir capitais no mercado de produtos alimentares. Os principais mercados de produtos alimentares são os de Chicago, de Minneapolis e de Kansas City, nos Estados Unidos. Grandes sociedades financeiras especularam sobre o preço de produtos alimentares, notadamente os cereais. E isto está ligado ao desregulamento financeiro. Mas a crise alimentar foi causada por outros fatores: pela crise climática e pelo aumento da produção de agrocombustível, também conhecido como biocombustível. Isto vem, sobretudo, de uma mudança importante ocorrida a partir de 2005 nos países da América do Norte e Europa Ocidental. As grandes sociedades de agronegócios que produzem biocombustíveis convenceram o governo de Washington, a comissão européia e os governos dos países da Europa Ocidental a subvencionarem a produção de biocombustíveis. É preciso saber que, nos países do norte, os biocombustíveis não são rentáveis, salvo se há uma subvenção do Estado. E o agronegócio pediu subvenções do Estado para que uma parte da produção alimentar fosse dirigida à produção de biocombustíveis. Então, com esse desvio, provocou-se uma redução da oferta de produtos alimentares, o que gerou um aumento muito forte no preço dos alimentos.

Sob o pretexto de combater a crise climática, o agronegócio convenceu o governo do norte a subvencionar a produção de biocombustíveis, argumentando que com isso reduziria a produção de gás carbônico. Mas, analisando este pretexto e alternando as subvenções, aumentou-se o preço dos alimentos e se provocou a crise alimentar. É preciso acrescentar que muitos cientistas consideram a produção de biocombustíveis responsável pela liberação e a produção de uma quantidade importante de gás carbônico. Então, não é uma energia tão limpa quanto se afirma. Transforma-se alimentos em combustíveis, pois se tornou rentável desviar a produção alimentar para fazer biocombustíveis.

Como analisei recentemente no artigo “Retour sur les causes de la crise alimentaire mondiale” (“Retorno sobre as causas da crise alimentar mundial”), é preciso dizer que a produção de biocombustíveis no Brasil, feita a partir da cana-de-açúcar, não é a responsável direta pelo aumento do preço dos alimentos, uma vez que ela não é um alimento direto nem é como os cereais. Entretanto, a produção desses biocombustíveis tem um péssimo efeito sobre o meio ambiente e sobre o clima, porque gera monocultura e conduz ao desmatamento. Além do mais, a produção de biocombustíveis se faz através da exploração da mão-de-obra. Os cortadores de cana-de-açúcar fazem parte de um setor agrícola de trabalhadores que são explorados, mal pagos, enfrentam condições de trabalho absolutamente escandalosas, detestáveis.

IHU On-Line - O que fazer para resolver essas crises? Por que o senhor afirma que a conjugação destas crises mostra aos povos a necessidade de se libertarem da sociedade capitalista e do seu modelo produtivo?

Eric Toussaint - Penso que seja preciso realizar uma ruptura radical. A partir do momento em que se constata que a crise está ligada ao sistema capitalista, é preciso romper com o capitalismo. É claro que isso implica uma mudança revolucionária, mas antes de se chegar à revolução é preciso tomar uma série de medidas imediatas. Na área de finanças, é preciso restabelecer um controle muito rígido sobre o movimento de capitais e um controle sobre as operações de trocas de moeda. É preciso tomar o controle pelo poder público do setor bancário e nacionalizar os bancos que estão à beira da falência. Quando se nacionaliza estes bancos, é preciso recuperar o custo da operação da nacionalização, descontando a soma do salvamento bancário do patrimônio dos acionários e dos grandes administradores das sociedades financeiras. Na área alimentar, precisamos proibir a especulação no mercado de produtos alimentares, reduzir radicalmente a produção de agrocombustíveis, ou, em todo o caso, a produção feita a partir de alimentos. Pode-se imaginar uma produção de agrocombustíveis, mas no quadro da agricultura familiar, rural, orgânica, e não uma produção em grandes indústrias. É preciso retornar a uma política de soberania alimentar e, para isso, precisamos de reformas agrárias. É preciso, evidentemente reduzir - se se quer combater a crise climática - radicalmente a produção de gás carbônico. Os países do norte devem fazer um esforço mais radical, pois há uma dívida climática ou ecológica que foi acumulada por eles no curso dos dois últimos séculos, desde o princípio da Revolução Industrial.

IHU On-Line - Qual é a importância, neste momento de crise, de discutir novos modelos energéticos?

Eric Toussaint – Essa discussão é fundamental. É preciso reduzir radicalmente a produção de gás carbônico. Radicalmente quer dizer reduzir a 80%, nos países do norte e 25% nos países do sul. Então, é preciso um novo modelo energético para utilizar doravante energias renováveis que emitam o mínimo de gás carbônico.

IHU On-Line - Como os países do Terceiro Mundo, no caso da América Latina, podem evitar maiores conseqüências da crise financeira internacional utilizando a abundância de seus recursos naturais e renováveis? O senhor acha que deveria haver uma mudança de estratégia por parte dos governos?

Eric Toussaint – É preciso garantir a segurança e a soberania energética utilizando ao máximo os recursos naturais e renováveis. Então, a América Latina tem uma capacidade e um potencial enormes nesse sentido. É preciso dar prioridade a isso e abandonar as centrais térmicas. Além disso, países como o Brasil e a Argentina devem abandonar o modelo de energia nuclear. A Venezuela também quer produzir energia nuclear, mas deve abandonar esta perspectiva.

Os governos da América do Sul precisam abandonar o modelo capitalista produtivista, e nas outras áreas da atividade econômica reduzir ao máximo as despesas, por exemplo, de grandes infra-estruturas. Sou muito crítico ao projeto Iniciativa pela Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), lançado por Fernando Henrique Cardoso, e que visa dotar a América Latina de grandes infra-estruturas - destruidoras do meio-ambiente -, e de grandes consumidoras de energias e de materiais. Há muito a ser melhorado na comunicação entre os países da América Latina. Por isso, os governos deveriam investir em trilhos de trem ao invés de estradas.

IHU On-Line - Qual a importância, neste momento, de lutar pela anulação da dívida dos países do Terceiro Mundo? As chances aumentam ou diminuem?

Eric Toussaint – Está nascendo uma nova crise da dívida, a qual os países da América Latina estão confrontados. A crise da dívida é produzida por dois fenômenos: a baixa das receitas de exportação, devido à baixa do preço das matérias-primas que a América Latina exporta para o mercado mundial, e o aumento do custo do crédito nestes últimos meses por casa da crise bancária nos países do norte. Os banqueiros do norte não querem emprestar dinheiro aos países do sul, então eles exigem uma remuneração mais elevada. Configura-se, assim, uma nova crise da dívida. Se quisermos afrontar esta situação, é preciso multiplicar as auditorias da dívida em todos os países da América Latina, identificar as dívidas ilegítimas e suspender o pagamento delas. Hoje isso é mais necessário do que nunca.

IHU On-Line - Na nova configuração social, marcada pela revolução cultural e tecnológica (suponha um desprendimento da sociedade industrial), qual o papel dos pequenos produtores (no caso da agricultura)?

Eric Toussaint – Este papel é primordial. Ele é fundamental no novo modelo de sociedade que deve romper com o capitalismo produtivista. A agricultura familiar orgânica deve constituir a atividade principal para produzir alimentos de qualidade, garantindo a soberania alimentar dos povos. Isso é válido para todos os países. É preciso uma grande reforma agrária e um apoio dos governos aos pequenos produtores.

IHU On-Line - Com essa junção de crises, como fica a imagem do capitalismo e do neoliberalismo? O senhor vislumbra uma mudança de parâmetros nesse sentido? Estamos chegando ao fim da era neoliberal?

Eric Toussaint – Assistimos à crise do sistema capitalista. Não é simplesmente a crise da versão neoliberal do capitalismo, mas uma crise muito mais profunda. Claro que o capitalismo não irá morrer por si mesmo. Ele desaparecerá pela ação consciente dos povos. É preciso, então, uma ação decisiva e consciente da sociedade para colocar fim a este sistema e substituí-lo por um modelo socialista e democrático. Estamos no final da era neoliberal, caminhando em direção ao socialismo do século XXI.

IHU On-Line – É possível pensar que no futuro a energia será produzida e consumida no mesmo local? Qual a viabilidade desse projeto?

Eric Toussaint – Sim. Penso que em muitos lugares do Planeta isso é perfeitamente possível. É claro que haverá sempre a necessidade de deslocar uma parte da energia. Ou seja, será preciso distribuir a energia por um sistema de distribuição elétrica, por exemplo. Mas poderá se produzir o máximo de energia renovável no local. E preciso substituir as grandes barragens por um sistema muito mais leve e inteligente de barragem.

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