Edição 282 | 17 Novembro 2008

Hopkins: “do cotidiano imediato ao plano cósmico”

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André Dick

“O que vejo em Hopkins é que ele concilia a visão política com o discurso existencial e a imersão no sagrado: para ele, Homem, Terra e Céu não são conceitos excludentes, mas estão integrados numa concepção de Totalidade”, afi rma o poeta e tradutor Claudio Daniel

Conforme o poeta e tradutor Claudio Daniel, Hopkins “é um poeta na fronteira entre o simbolismo e a modernidade; a maneira como ele pensa a construção do poema é similar à de Eliot ou Pound, por exemplo, mas o conteúdo religioso, os símbolos e as imagens metafóricas têm mais afinidade com a tradição da poesia mística de língua inglesa, ou seja, com poetas como John Donne, William Blake e Swinburne”. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Claudio ainda avalia que Hopkins, por sua experimentação com a linguagem, dialoga com o poeta brasileiro Sousândrade. Hopkins, desse modo, trouxe à poesia “novas construções, aliando a pesquisa formal a uma investigação mais profunda sobre o sentido do estar no mundo”. Nesse aspecto, considera, há uma aproximação com o Padre Antônio Vieira, “cujo olhar estava voltado para o drama da existência, desde o cotidiano imediato até o plano cósmico”.

Claudio Daniel é formado em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, e mestrando em Literatura Portuguesa, pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Sutra (1992), Yumê (1999) e A sombra do leopardo (2001), reunidos em Figuras metálicas (São Paulo: Perspectiva, 2005), que traz sua obra escrita entre 1983 e 2003. Também publicou a prosa experimental Romanceiro de Dona Virgo (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004) e traduziu poetas como Víctor Sosa, em Sunyata & outros poemas (São Paulo: Lumme Editor, 2005), e José Kozer, em Íbis amarelo sobre fundo negro (Curitiba: Travessa dos Editores, 2006). Além disso, organizou a antologia Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina (São Paulo: Iluminuras, 2004), com muitos poetas do assim chamado neobarroco, como Víctor Sosa, Severo Sarduy e Coral Bracho.

IHU On-Line - Como você avalia que Gerard Manley Hopkins alia vida e obra em sua trajetória (por exemplo, a ligação entre religião e poesia)?

Claudio Daniel - Brecht e Maiakóvski consideravam que a poesia é construção estética, mas também um ícone de transformações sociais, conforme a perspectiva utópica; outros autores, como Rimbaud ou Lautréamont, aliavam a poesia à transgressão comportamental: o poeta seria um vidente ou xamã que apontaria para formas alternativas de amor, de sexualidade etc. Já poetas como São João da Cruz, dentro da cultura cristã, ou Matsuo Bashô, na tradição budista, viam a prática poética como autêntica experiência religiosa: o poema seria uma espécie de oração, de confissão, de revelação, de epifania: um diálogo com o eterno. O que vejo em Hopkins é que ele concilia a visão política com o discurso existencial e a imersão no sagrado: para ele, Homem, Terra e Céu não são conceitos excludentes, mas estão integrados numa concepção de Totalidade. Ele podia ser, ao mesmo tempo, jesuíta e socialista, místico e mundano, e essa harmonia dos contrários está presente em sua vida e poesia, de elaborada invenção formal.

IHU On-Line - Os poemas de Hopkins, publicados apenas depois de sua morte, foram, na sua opinião, referenciais para a poesia moderna e de vanguarda? Dentro da concepção de Ezra Pound, você acha que ele é um inventor?

Claudio Daniel - Hopkins foi um poeta-inventor, sem dúvida; como diz Augusto de Campos em seu livro Hopkins: a beleza difícil, ele “torceu a sintaxe em construções e inflexões inusitadas, criou neologismos e compósitos vocabulares sem precedentes e inovou a métrica e o ritmo, até chegar à disciplina livre do seu sprung rhythm (ritmo saltado ou saltante, de pés variáveis e mesmo número de acentos — verso pré-livre)”. Apesar disso, ele não foi uma referência para as vanguardas históricas, já que sua poesia, incompreendida por seus contemporâneos, só foi publicada em livro em 1918, quase vinte anos após a morte do poeta. A crítica especializada, por sua vez, só levou a sério sua obra na década de 1930, quando I. A. Richards, William Empson, Herbert Read e outros críticos de renome ficaram entusiasmados com a obra desse poeta realmente incomum.

IHU On-Line – Hopkins também foi um dos maiores criadores poéticos no que se refere à musicalidade, como quando emprega o sprung rhythm (ritmo saltado). Poderia estabelecer uma relação entre ele e os românticos (como Keats e Swinburne), simbolistas e modernistas (muitos afirmam que ele antecipa experimentos de Eliot e Pound)? Como avalia essas aproximações?

Claudio Daniel – É possível fazer um paralelo entre a estrutura sonora da poesia de Hopkins e a de poetas românticos e simbolistas mais radicais, inclusive com o nosso Sousândrade: ele usa recursos como a assonância, a aliteração, a paronomásia, o trocadilho, rimas difíceis, em versos longos que se aproximam da prosa; o paralelo com a vanguarda também é pertinente, pelo uso de neologismos, palavras-valise e recursos de espacialização.  Hopkins é um poeta na fronteira entre o simbolismo e a modernidade; a maneira como ele pensa a construção do poema é similar à de Eliot ou Pound, por exemplo, mas o conteúdo religioso, os símbolos e as imagens metafóricas têm mais afinidade com a tradição da poesia mística de língua inglesa, ou seja, com poetas como John Donne, William Blake e Swinburne.

Semelhanças e diferenças entre Hopkins e Joyce

A linguagem de Hopkins, assim como a de Joyce, favorece os efeitos sonoros, a imagética, os jogos semânticos, a ambigüidade, o hibridismo, a dissolução de fronteiras entre prosa e poesia; são obras que partem das conquistas do simbolismo, em suas realizações estéticas mais avançadas, e exigem do leitor um olhar inteligente para o sentido da forma. O pensamento de Hopkins, no entanto, parece-me oposto ao de Joyce: o primeiro é um autor cristão, que tem fé num projeto de salvação, e também na história como motor de mudanças sociais; já o segundo é ateu e descrente na política, após o insucesso das tentativas de emancipação da Irlanda do domínio inglês. Joyce quer “acordar do pesadelo da história”, enquanto Hopkins projeta na história uma visão messiânica.

IHU On-Line - Jakobson destacou a “prodigiosa visão de estrutura” que possuía Hopkins. Ao mesmo tempo, ele é um poeta com características metafísicas. De que maneira, na sua opinião, se alia a metafísica e uma espécie de domínio verbal em seu trabalho?

Claudio Daniel - Edgar Allan Poe, no ensaio “O princípio poético”, define a poesia como “construção precisa do impreciso”. Creio que esta definição, uma das pedras-de-toque da estética simbolista, define muito bem a arte verbal de Hopkins, em que conceitos metafísicos ganham materialidade pela construção rigorosa da forma. Novamente, o paralelo possível é com a “poesia metafísica” de outro religioso, o deão John Donne (e vale notar, em ambos, a presença de referências eróticas, além das sagradas, e no caso de Hopkins, homoeróticas, em contraste com o ambiente puritano da Inglaterra vitoriana).

IHU On-Line - Em entrevista que concedeu à IHU On-Line sobre o Padre Antônio Vieira, você afirma que este “escreveu cartas e sermões de caráter moral e teológico”, mas fez uma literatura nunca restrita a uma estratégia missionária. Há pontos de contato entre Vieira e Hopkins, além da construção elaborada de seus escritos? 

Claudio Daniel - Hopkins, assim como Góngora, Vieira e Donne, realizou alta literatura, ainda que com intenção moral e religiosa. Vale a pena ressaltar que a literatura mística, desde a Idade Média até meados do século XVIII, era praticada por autores cultos, que conheciam as regras de versificação, a herança cultural greco-latina, a tradição cristã, o humanismo, e esse repertório era compartilhado por seus leitores, que compreendiam o repertório de metáforas e alegorias (codificados nas enciclopédias e dicionários de mitologia, por exemplo). O acesso à leitura e ao livro era muito restrito, e logo o universo dos leitores constituía uma elite social e de espírito. O que distingue um autor como Hopkins, em minha opinião, de outros poetas cultos é que ele não ficou restrito às formas de composição e de imaginário já bem conhecidos em seu momento histórico, mas acrescentou novas construções, aliando a pesquisa formal a uma investigação mais profunda sobre o sentido do estar no mundo. Nesse aspecto, ele também se aproxima de Vieira, cujo olhar estava voltado para o drama da existência, desde o cotidiano imediato até o plano cósmico.

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