Edição 282 | 17 Novembro 2008

Um salto poético para a modernidade

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André Dick

Segundo o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, Hopkins preparou o modernismo para outros poetas

Falando sobre a melodia musical da poesia de Hopkins, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, avalia que ele “criou um sistema complexo, que incluía até mesmo uma notação acentual para indicar em cada verso quais os acentos que deveriam ser considerados para fim de escansão e quais os que deviam ser tratados como sílabas átonas num dado verso”. Segundo ele, por conseqüência, “essa atitude de intervir no sistema poético, introduzindo inovações conscientemente pensadas, aproxima Hopkins dos poetas de vanguarda do século XX”. Entre outros aspectos, Paulo Henriques aborda a diferença entre o catolicismo de Hopkins e o de T. S. Eliot, e analisa que Hopkins antecipa os poetas modernos: “Ele cria elementos formais novos com plena consciência do que está fazendo, e escreve textos explicando o que está fazendo e por que o está fazendo. O que o diferencia de um modernista como Pound é que ele não intervém diretamente na vida literária — seus escritos teóricos são privados, e só foram divulgados postumamente, no século seguinte”.

Paulo Henriques Britto possui graduação em Língua Inglesa e Portuguesa e mestrado em Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde, atualmente, trabalha como professor. Como poeta, publicou, entre outros, os livros  Mínima lírica (São Paulo: Duas Cidades, 1989), Macau (São Paulo: Companhia das Letras, 2003) e Tarde (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Como tradutor de poesia, verteu para o português poemas de Elizabeth Bishop, em Poemas do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1999) e O iceberg imaginário e outros poemas (São Paulo: Companhia das Letras, 2001); de Wallace Stevens, em Poemas (São Paulo: Companhia das Letras, 1987); e de Ted Hughes, em Cartas de aniversário (Rio de Janeiro: Record, 1999).

IHU On-Line – Tendo traduzido poetas do alto modernismo norte-americano, como Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, quais são as características de Hopkins que antecipam a chamada modernidade, na sua opinião?

Paulo Henriques Britto - Hopkins foi acima de tudo um inovador formal. Ele levou a lógica da métrica inglesa às últimas conseqüências. Para explicar o que ele fez, vou ter que entrar um pouco em questões técnicas. Mas é claro que será necessário fazer algumas simplificações drásticas.

Enquanto na maioria dos idiomas neolatinos, como o português, o espanhol e o italiano (o francês é um caso à parte), a contagem de sílabas é o elemento principal da versificação e a distribuição de acentos no verso é o segundo elemento mais importante, no inglês a situação é exatamente o contrário: a contagem e distribuição de acentos é o elemento mais importante, enquanto a contagem de sílabas ocupa o segundo lugar. Assim, no português, o fundamental no decassílabo é que ele tenha dez sílabas, havendo dois ou três padrões básicos de distribuição de acentos — o heróico, o sáfico, o martelo-agalopado — que vão subcategorizar esse verso. Já no inglês, o pentâmetro jâmbico é um verso formado por cinco jambos, sendo o jambo um pé — a unidade mínima da métrica inglesa não é a sílaba, e sim o pé — formado por uma sílaba átona seguida por uma acentuada. Em princípio, pois, o pentâmetro jâmbico teria dez sílabas (cinco pés de duas sílabas cada), mas o que é mais importante não é ele ter dez sílabas, e sim a presença de cinco acentos principais. Pouco importa que haja nove ou onze ou até doze sílabas, desde que o número de acentos seja cinco.

A radicalização de Hopkins

O que Hopkins fez foi radicalizar a lógica do sistema: se o que importa é a presença de cinco acentos, então contemos apenas as sílabas acentuadas e permitamos um número indefinido de sílabas átonas entre as acentuadas. É essa a base do sprung rhythm, que representa de certo modo uma volta às raízes: pois na poesia anglo-saxã só se contavam os acentos, não as sílabas. Para esclarecer um pouco a questão, pensemos numa forma bem primitiva de sprung rhythm que pode ser encontrada nas canções de roda e na poesia infantil portuguesas. Sejam os versos abaixo:

Um, dois,
Feijão com arroz

Em termos de contagem de sílabas, o primeiro verso tem duas e o segundo tem quatro sílabas métricas (fei-jão-c’oa-rroz). Mas se contarmos só os acentos, os dois versos são rigorosamente iguais, pois em cada um há apenas dois acentos; e assim eles são tratados nesse contexto:

UM, DOIS,
FeiJÃO com aRROZ

Hopkins criou um sistema complexo, que incluía até mesmo uma notação acentual para indicar em cada verso quais os acentos que deveriam ser considerados para fim de escansão e quais os que deviam ser tratados como sílabas átonas num dado verso. Ora, essa atitude de intervir no sistema poético, introduzindo inovações conscientemente pensadas, aproxima Hopkins dos poetas de vanguarda do século XX.

IHU On-Line - Você realiza uma análise aprofundada sobre a tradução de Augusto de Campos para Hopkins no volume Sobre Augusto de Campos. Quais seriam as principais características que Augusto mais preserva dos originais de Hopkins? Em termos de sonoridade, tão destacada também por um artigo de Mário Faustino, na sua página Poesia-experiência, por exemplo, o que este poeta legou à literatura? 

Paulo Henriques Britto – O que é extraordinário nas traduções de Augusto de Campos é que, na medida do possível, ele recupera as características formais da poesia de Hopkins (que, como o exemplo de “Um, dois / feijão com arroz” deixa claro, não são incompatíveis com a prosódia portuguesa) sem descuidar do sentido. É claro que ele é obrigado a tomar liberdades nos dois planos, e a omitir alguns elementos, mas no cômputo geral ele consegue recriar em português o que há de fundamental em Hopkins. Tal como no original, na tradução de Augusto a contagem básica é de acentos e não de sílabas; abundam as aliterações e assonâncias; e até mesmo as palavras-valise de Hopkins — um recurso que em português não funciona tão bem quanto no inglês — encontram boas soluções. 

A religião em Hopkins e em T. S. Eliot

Tirando o fato de que os dois poetas partem do anglicanismo e migram para o catolicismo, acho a religiosidade deles muito diferente. Em Hopkins há um conflito terrível entre um forte impulso estético-erótico (que tem um óbvio componente homossexual) e a vocação sacerdotal, uma tensão emocional que não tem equivalente em Eliot. O catolicismo de Eliot me parece acima de tudo um posicionamento ideológico, intelectual, assumido de modo mais pensado. Além disso, a poesia eliotiana não tem uma carga erótica muito intensa. Se o corpo humano em Hopkins é uma presença luminosa, encarnação do belo, e ao mesmo tempo terrível, por conter a possibilidade do pecado, em Eliot o corpo é quase sempre ridículo (veja-se o anti-herói de “Prufrock”) ou repulsivo (pensemos nas figurações do corpo em “Preludes”). Creio que são dois grandes poetas religiosos muito diferentes.

IHU On-Line – Alguns estudiosos vêem Hopkins como um poeta barroco, outros como um romântico, mesmo que mais ousado, outros como um antecipador de conquistas da vanguarda. Há algum aspecto que o defina melhor, ou ele seria a soma dessas personas, ou ainda estaria ele, simplesmente, além de sua época?

Paulo Henriques Britto – Acho que o melhor é vê-lo como um protomodernista, ao lado de Whitman, Baudelaire, Rimbaud e Dickinson, um do criadores do que viria a ser a poesia moderna. Só que não foi tão influente quanto esses quatro poetas citados. O que faz dele um protomodernista é a sua a sua atuação como inovador autoconsciente: ele cria elementos formais novos com plena consciência do que está fazendo, e escreve textos explicando o que está fazendo e por que o está fazendo. O que o diferencia de um modernista como Pound é que ele não intervém diretamente na vida literária — seus escritos teóricos são privados, e só foram divulgados postumamente, no século seguinte. A obra de Hopkins é pequena. Seu poema mais ambicioso é “The wreck of the Deutschland” (“O naufrágio do Deutschland”), mas pessoalmente acho o mais extraordinário da sua obra a série dos “sonetos terríveis”. É um punhado de obras-primas incomparáveis, de grande intensidade emocional e engenhosidade formal. Não sou, de modo algum, uma autoridade em matéria de Hopkins, apenas um leitor apaixonado de sua poesia.

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