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André Dick
O poeta Linaldo Guedes nasceu em Cajazeiras (Alto Sertão da Paraíba), em 1967. É editor do suplemento literário Correio das Artes do jornal A União, da Paraíba. Em seu segundo livro, Intervalo lírico (João Pessoa: Dinâmica, 2005), ele consegue depurar sua dicção de forma mais clara, sobretudo no corte de versos e no trabalho com a imagem feminina. No poema inicial, “Pintura”, “desenha” verbalmente a mulher desejada: “teus traços singulares / pluralizam-se / no ocaso noturno do inverno”. Essa presença se mostra bastante em “Armadilha”, com os olhos no calendário desenhando um círculo de fogo, como se o calendário simbolizasse os ponteiros de um relógio, fazendo um círculo permanente (tempo que, no poema “A carta”, se transforma numa “monótona e enorme ampulheta”). O tempo parece paralisado por essa presença feminina. Isso fica claro em “Hipótese”, onde se aceita até a prisão: “e se eu te amasse / como um pássaro / ama a gaiola que o prende?”. “Perfume” é um poema com bela sonoridade — curta e eficiente, com o barroco ecoando em sua estrutura: “entre / serras / cercas / e cenas mudas / repousa / o hálito / barroco / de teu corpo”. E se registre uma certa solidão noturna, identificada em versos de “Neblina” (“noite / / tempo exato / para renovar a solidão”), e as cores sugeridas por “Feliz ano novo”, bem construídas, com seios que “brilham no ocaso / vermelho / que invade / o ano virgem” (o branco, aqui, sugerindo uma certa alvura, corrompida pelo vermelho, impuro).
Os temas relacionados à passagem temporal também são constantes na poesia de Linaldo, como em “Casamento”: “é um tempo que abandona / as avenidas de cajazeiras / / é um tempo que violenta / a ampulheta / / um tempo está mastigando / (minhas raízes) / / é um tempo que não se acomoda / na brisa do litoral / / é um tempo que só fabrica / calendários bissextos”. A sensação de abandono e de solidão de “Artifício” parece surgir daquele tempo repetido no calendário — dos calendários bissextos: “as flores artificiais, / na mesa / o filtro sem água, / na pia / a geladeira sem carne, / na sala”. Com isso, o resultado parece trazer também uma ausência feminina, mesmo que ela permaneça em outros poemas e se desenhe visivelmente em “Intervalo”, com sua organização concretista dos versos (sobretudo em “e / quei / ma / a / que / la / car / ta / ras / ga / da”).
Humor e melancolia
Aliado a um bom-humor — presente nos poemas inéditos que Linaldo enviou à IHU On-Line —, num poema como “Regresso”, de Intervalo lírico, o trabalho de Linaldo revela uma melancolia interessante em versos como “aqui estou: / / malas desfeitas / ilusões refeitas / / você sorri amarelo / / e eu confundo cores”. Essa melancolia é trabalhada em momentos de “A carta”: “temendo confundir a hora de chegar em casa / quando já não se tem mais casa” — quando o lamento adquire uma forma mais assídua. Em “Santíssima trindade”, há uma dicção polêmica, no sentido oswaldiano — aliás, Linaldo fala de autores em muitos poemas, de forma metalingüística. “A flor e o espinho”, por exemplo, mesmo com a rima previsível (em “amor” e “dor”), funciona ao perseguir uma sonoridade: “quando o teu cheiro sobra / ou o prazer vai embora / é do amor que falamos / é a dor que escondemos / / num caso / falta o pedAÇO neceSSÁRIO / para se chegar ao paraÍSO / / em outro / sobra o dicioNÁRIO / para tentar explicar o sumIÇO da flor”. O “falo” silencioso para abrir em silêncio a porta e perfurar a túnica, como está em Catulo, se reproduz em “3 movimentos para I só ato”, com sua porção pagã, de Dionísio: “o vinho / molha os lábios / já ensopados: / / é hora de beber o amor”, ecoando ainda no “sorriso ácido no olhar”. O mesmo diálogo com Catulo se estabelece em “Diálogo erótico”. Em “Reza”, tal dicção parece se revelar ainda mais transparente, quando se implora — numa conjunção moderna — a “deuses inexistentes”. “Ciclo”, o poema que encerra Intervalo lírico, parece abrir um novo cenário para sua poesia: versos mais longos, num poema mais longo, com boa sonoridade e idéias, depurando mais a forma, sem perder o discurso: “não é só querer você por todos os janeiros / cultivando mitos / folha / a / folha / em seu pomar de atritos / / não é só buscar fevereiro / definindo ritmos / passo a passo / [...] / novenas de meus encantos / novembro e seus prantos / novelos que se enroscam / metonímias da minha linguagem: / não quero só a parte que me cabe no seu todo / / (dezembro é o ano inteiro / onde cabem todos os janeiros de mim em mim)”.
O sexto personagem
dorian gray com trajes de alferes
diante do espelho não o horror aos próprios vícios mundanos
mas a saudade dos rapapés
e dos escravos
e dos mimos de tia marcolina
duas almas filosofando
sobre a eliminação humana:
never, for ever!- for ever, never
enigmas machadianos espatifados pelo leitor,
sem réplica jacobina.
Matraga
matraca silenciosa
liturgia de augusto
remoendo
moendo
doendo
moenda
- bagaço de homem no altar dos sertões
de repente, a hora chega
pai, filho e espírito santo
agora só quero rezar
(a) caba (que é) marcado
sou um homem marcado
marcado para doer
gado preso no curral
quando não, abatido
comendo baudelaire
na erva daninha de meu capim.
Livro aberto
ser tão
abstrato
quanto
as
águas
do
meu
sertão.
Flór de lótus
já não tenho mais vontade de partir
meu lugar é aqui
deixo as glórias para aquele polifermo.
pasárgada (agora) é coisa do verão passado
ficarei feliz se me chamarem de nulisseu.
Ocas
era você, asfaltando o mar
assaltando o bar
co
assassinando ba
co
asfixiando o ar
co
era eu, sendo asfalto
meliante
oco
sendo mato
oco
patife vomitando camas
ocas
pescando nossos próprios olhos
estrangulando nossos ossos inda moços
e ocos.
Salieri
no brilho da lâmina
só o corte do olhar
Pêndulo
ah, deixem-me só
sem o relógio
(ponto)
deixem-me só
e o meu alforje
(junto)
deixem-me
só no espelho
(pranto).
Existencialismo
o ser e o nada
o ser é nada
o ser nada
e
mergulha
feliz
nas águas
do boqueirão.