Edição 280 | 03 Novembro 2008

Por uma antropologia e uma cristologia cósmicas

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Para o renomado teólogo alemão Jürgen Moltmann, a teologia cristã precisa partir de uma cultura da vida e resistir ao barbarismo da matança. Para ele, “o mais importante resultado da neurobiologia moderna é a libertação da biogenética do feitiço ideológico do darwinismo social. A noção de luta pela existência e do direito do mais forte está biologicamente errada”. O teólogo acredita que o mero “prolongamento da vida” não é objetivo relevante em termos humanos. “O que importa é a humanidade da vida vivida”, diz ele.

O teólogo alemão Jürgen Moltmann, nascido em 1926, é professor emérito de Teologia da Faculdade Evangélica da Universidade de Tübingen e um dos mais importantes teólogos vivos da atualidade. Foi um dos inspiradores da Teologia Política nos anos 1960 e influenciou a Teologia da Libertação. Ele é autor, entre muitos outros livros, de Teologia da Esperança (São Paulo: Herder, 1971), Deus na criação. Doutrina ecológica da criação (Vozes: Petrópolis, 1993), O caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões messiânicas (2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994), Quem é Jesus Cristo para nós hoje? (Petrópolis: Vozes, 1997), O espírito da vida. Por uma pneumatologia integral (Petrópolis: Vozes, 1998), Scienza e Sapienza. Scienza e Teologia in dialogo (Queriniana: Brescia 2003), A vinda de Deus: escatologia cristã (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003) e Experiências de reflexão teológicas – caminhos e formas da teologia cristã (São Leopoldo: Unisinos, 2004).

Na última semana, a Universidade Metodista de São Paulo realizou a Semana de Estudos Teológicos da FaTeo e a Semana de Estudos de Religião do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, com a presença de Jürgen Moltmann. Durante o evento, que aconteceu de 29 a 31 de outubro, a Universidade Metodista de São Paulo concedeu ao teólogo o título de Doutor Honoris Causa, em cerimônia especial na noite de 30 de outubro,  como expressão de gratidão e reconhecimento pelo valor, pública e incontestavelmente afirmado, do conjunto de sua obra para o cristianismo e a sociedade contemporânea. O teólogo concedeu, da Alemanha, antes de vir ao Brasil, a entrevista que segue à IHU On-Line, por fax. Em suas respostas, Moltmann considera que, para ele, “o mais importante resultado da neurobiologia moderna é a libertação da biogenética do feitiço ideológico do darwinismo social. A noção de luta pela existência e do direito do mais forte está biologicamente errada”. O teólogo acredita que o mero “prolongamento da vida” não é objetivo relevante em termos humanos. “O que importa é a humanidade da vida vivida”, diz ele. E explica: “Prolongamento de vida nada tem a ver com a esperança cristã de vida eterna. Vida eterna não é vida sem fim, mas vida vivida de forma integral, na presença do Deus vivo”. Para ele, “antes de investirmos inteligência e dinheiro no prolongamento da vida dos ricos, deveríamos cuidar da capacidade de viver da vida nascida entre os pobres. A morte prematura de crianças é, hoje, um fenômeno maciço muito triste”. A entrevista a seguir foi realizada em parceria com a equipe de Teologia Pública do IHU.

IHU On-Line - Tendo em vista sua concepção de Teologia Pública, quais são hoje os principais desafios e possibilidades de um diálogo entre teologia e biociências?

Jürgen Moltmann - As ciências biológicas estão no centro do interesse público. Mas elas não devem ser encaradas de forma isolada. A bioética é parte da ética médica, e esta parte da cultura pública da nossa sociedade, com seus interesses e valores. A teologia cristã precisa partir de uma cultura da vida e resistir ao barbarismo da matança. O critério econômico [Ökonomisierung], que domina todas as áreas, também tomou conta das ciências biológicas. Também nesse aspecto, a teologia cristã precisa defender a dignidade da vida humana.

IHU On-Line - Quais são os pressupostos antropológicos do desenvolvimento das atuais biociências? Que implicações isto tem, na sua opinião, para a concepção de vida humana?

Jürgen Moltmann - O referencial humano das ciências biológicas é indicado pela neurobiologia. A vida humana somente pode crescer de forma sadia se for uma vida aceita e amada. Nosso sistema motivacional está condicionado pelos neurônios-espelho para ter relações sociais de reconhecimento positivo e afirmação. A redução da vida humana a funções biogenéticas destrói seu caráter humano. A vida humana precisa ser aceita e vivida, uma vez que em muitos casos ela é rejeitada.

IHU On-Line - Quais as principais conseqüências dos estudos recentes no âmbito da biogenética e neurociências para a antropologia teológica?  Quais os principais desafios decorrentes das possibilidades de intervenção sobre a vida humana?

Jürgen Moltmann - O mais importante resultado da neurobiologia moderna é, para mim, a libertação da biogenética do feitiço ideológico do darwinismo social. A noção de luta pela existência e do direito do mais forte está biologicamente errada. A simbiose é o fundamento de todas as formas de vida e da estrutura de condições complexas de vida. A evolução da vida é a “simbiogênese” (L. Margulis ).Não é a engenharia genética no “projeto eugênico”, mas somente a melhoria das condições de vida humana que pode levar a sua real melhora.

IHU On-Line - Entre as principais preocupações do atual esforço pelo progresso da biomedicina, está o prolongamento da vida humana. Esta busca abre novas possibilidades para a escatologia cristã ou está circunscrita a um “presentismo”, que anula as possibilidades da escatologia?

Jürgen Moltmann - O mero “prolongamento da vida" não é objetivo relevante em termos humanos. O que importa é a humanidade da vida vivida. Prolongamento de vida nada tem a ver com a esperança cristã de vida eterna. Vida eterna não é vida sem fim, mas vida vivida de forma integral, na presença do Deus vivo. Todo momento vivido integralmente já é um átomo da eternidade. Sem a aceitação da nossa finitude, não existe felicidade na vida, e, antes de investirmos inteligência e dinheiro no prolongamento da vida dos ricos, deveríamos cuidar da capacidade de viver da vida nascida entre os pobres. A morte prematura de crianças é, hoje, um fenômeno maciço muito triste.

IHU On-Line - Em meio aos benefícios das conquistas terapêuticas do último século, nasceu o que se pode chamar de uma “ideologia da saúde perfeita” e a ilusão de uma vida sem dor. Em que a antropologia e a escatologia cristã podem contribuir para se pensar esta realidade?

Jürgen Moltmann - A moderna “ideologia da saúde perfeita” é uma ideologia que deixa as pessoas doentes. Saúde humana não significa um constante estado de “bem-estar geral”, como diz a Organização Mundial da Saúde, mas é a capacidade de ser um si-mesmo humano em estados sadios bem como doentios. Viver sem dor é uma vida sem amor. Uma vez que não existe vida humana sem a morte, também não existe viver sem morrer. Saúde psíquica e fé precisam mostrar seu valor no viver e no morrer. Deus queira guardar-nos da perigosíssima idolatria da “saúde perfeita”!

IHU On-Line - Que concepções e metáforas deveríamos resgatar da tradição bíblico-cristã tendo em vista uma antropologia mais planetária e cósmica em tempos de cibercultura?

Jürgen Moltmann - O mundo virtual da cibercultura é uma cultura não-sensorial. Acredito na realidade do mundo sensorial, que podemos sentir, cheirar, saborear, ouvir e ver. O mundo da internet tem sentido, mas se servir ao mundo perceptível aos sentidos. Uma cristologia cósmica e uma antropologia cósmica preservarão de destruições e extermínios o mundo real e os mundos possíveis.
 
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>> Confira outra entrevista concedida por Jürgen Moltmann à IHU On-Line. Acesse nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu

Entrevista:

* A Paixão de Cristo: por uma sociedade sem vítimas, publicada na IHU On-Line nº 94, de 29-03-2004, cujo tema de capa é A Paixão.   

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