Edição 280 | 03 Novembro 2008

Lutero e seu impacto na educação gaúcha

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Graziela Wolfart

Gisela Streck descreve a situação da educação na época da imigração alemã e a infl uência de Lutero nesta área

Não é novidade que os imigrantes alemães, quando chegaram ao Brasil, passaram por dificuldades. E uma delas é em relação à educação de seus filhos. Pois, como lembra a professora Gisela Streck, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “para os imigrantes protestantes, a primeira (e mais importante) questão era que seus filhos não crescessem analfabetos”. E isso tudo “para que pudessem participar ativamente na vida da comunidade, ler a bíblia, estudar e entender o catecismo”. Gisela faz uma retrospectiva histórica e lembra que “o surgimento de escolas confessionais vinculadas às comunidades protestantes é um traço característico dos estados do sul do Brasil e, principalmente, do Rio Grande do Sul”. Sobre a atualidade de Lutero em relação à educação religiosa ministrada nas escolas hoje, Streck acredita que “do pensamento de Lutero permanece a percepção de ser humano como alguém que é digno e merecedor de respeito, como ser criado e amado por Deus. Assim, o ensino religioso na escola confessional é um espaço para dialogar sobre o sentido da vida, para aprender a conviver e relacionar-se, numa postura de abertura e respeito”.

Gisela Streck possui graduação e doutorado em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), onde é atualmente professora. Sua tese de doutorado intitula-se Ensino religioso com adolescentes em escolas confessionais da Igreja Evangélica de confissão luterana no Brasil (IECLB). É autora de Escola comunitária: fundamentos e identidade (São Leopoldo: Sinodal, 2005).

IHU On-Line - Como a senhora analisa a influência do pensamento de Lutero nas escolas comunitárias fundadas no âmbito da imigração alemã no Sul do Brasil?

Gisela Streck - Os primeiros imigrantes alemães que chegaram ao Brasil, a partir de 1824, vinham de uma realidade em que o sistema escolar era bem organizado, com ensino gratuito e obrigatório para todos e índice de analfabetismo muito baixo. Por outro lado, os acompanhou, e influenciou suas atitudes e decisões, a certeza de que a educação do povo, o esforço que cada cidadão faz no sentido de desenvolver ao máximo suas capacidades e potencialidades, serve como contribuição para promover a melhoria da sociedade. Na nova pátria, no entanto, enfrentaram uma dura realidade. Na sua maioria, foram colocados em zonas de matas fechadas e com grandes distâncias até as cidades, de modo que o contato com o povo da terra era mínimo. Enfrentaram dificuldades como cultura e língua diferentes, assim como com a falta de meios para se comunicar com as autoridades provinciais e imperiais na reivindicação de seus interesses. Também enfrentaram dificuldades para educar seus filhos em escolas. Como agricultores, formavam uma classe social que, por sua natureza, não tinha acesso ao ensino secundário, reservado às classes sociais mais abastadas. Como foram assentados em regiões pouco povoadas, longe dos grandes centros, também não tinham acesso às escolas públicas primárias. No interior, o ensino primário era escasso, sem organização e abandonado pelos órgãos públicos que tinham a incumbência de mantê-lo. Desse modo, os próprios imigrantes assumiram a tarefa de providenciar escola para seus filhos. Criaram as associações escolares e construíram as escolas. Para os imigrantes protestantes, a primeira (e mais importante) questão era que seus filhos não crescessem analfabetos, pois esta condição dificultaria ou até impossibilitaria uma adequada vivência da fé. A necessidade da escola e da alfabetização foi, assim, assumida pelas famílias e pelas comunidades que foram se formando. A grande preocupação foi com a alfabetização de todas as crianças, para que pudessem participar ativamente na vida da comunidade, ler a Bíblia, estudar e entender o catecismo.

IHU On-Line - Em que medida as escolas comunitárias refletem o estilo de vida do povo alemão e luterano e como foi a adaptação ao Brasil no período da imigração?

Gisela Streck - O surgimento de escolas confessionais vinculadas às comunidades protestantes é um traço característico dos estados do Sul do Brasil e, principalmente, do Rio Grande do Sul. Neste estado, se tornou típica a estreita ligação entre escola e comunidade eclesiástica, encontrando-se escola e igreja juntas num mesmo prédio ou lado a lado. Os professores eram escolhidos do seu meio, ou o pastor da comunidade religiosa assumia também as funções de professor. Essa situação criou laços entre a escola e a comunidade, que se mantiveram até a Segunda Guerra Mundial. O método de ensino era o mesmo usado na Alemanha. Ao professor, cabia toda a autoridade e exigia muita disciplina, respeito, bons modos e obediência. A língua na qual se ensinava era o alemão, apesar de tentativas para aprender o português. As escolas ensinavam a ler, a escrever e fazer contas. Também se ensinava canto, desenho e educação física. Um grande destaque era reservado ao ensino religioso. Nos seus inícios, as escolas não tinham material didático disponível. Os recursos eram limitados, e a maioria dos livros e mapas vinha da Alemanha, retratando uma realidade muito diferente da que alunos e alunas vivenciavam no Brasil. Mas, já em 1832, foi editada uma cartilha para auxiliar na leitura em língua alemã. As avaliações eram realizadas no final do ano letivo, com a presença dos pais dos alunos. O período conhecido como Estado Novo  foi um marco e teve uma influência decisiva na realidade das escolas comunitárias, com o processo de nacionalização desencadeado pelo governo federal. Neste mesmo período histórico, os acontecimentos relacionados com a eclosão da Segunda Guerra Mundial tiveram influência na vida dos imigrantes e das comunidades protestantes. Estes dois acontecimentos foram importantes para o desenvolvimento das escolas, e representaram um período de crise, quando muitas escolas foram fechadas e outras deixaram de existir. Depois de vencida a crise, as escolas que conseguiram sobreviver retomaram suas atividades e procuraram um espaço próprio dentro da realidade educacional brasileira. As pequenas escolas comunitárias se modificaram na sua estrutura e organização, e formaram uma “rede de escolas evangélicas”.

IHU On-Line - O que caracteriza o ensino religioso ministrado nas Escolas Confessionais da IECLB? O que permanece aí do pensamento de Lutero e que é atual em nossos dias?

Gisela Streck - Nas escolas comunitárias evangélicas, o ensino religioso constou como disciplina desde o seu início. Se, por um lado, havia a preocupação pela alfabetização dos filhos e filhas para evitar um retrocesso cultural, visto que os imigrantes tiveram, em sua grande maioria, acesso à educação na Alemanha, por outro lado, tinham também a intenção de, através das escolas comunitárias protestantes, evitar que seus filhos freqüentassem as escolas católicas. O ensino religioso, com um caráter confessional e doutrinário, era denominado de “ensino evangélico”. Seus conteúdos eram histórias bíblicas e não se levava em conta o contexto da escola: era entendido como a “Igreja na escola”. A preocupação por este “ensino evangélico” se ampliou para além da escola comunitária, quando um grande número de crianças protestantes começou a freqüentar a rede de escolas públicas. Num segundo momento, a designação “ensino evangélico” muda para “educação cristã na escola” e a disciplina busca uma inserção no contexto social. Nas escolas públicas, inicia-se um período de parceria com outras denominações religiosas na questão do ensino religioso e nas escolas confessionais, a pergunta que se coloca é em torno do caráter do ensino religioso, se este deveria ser confessional ou interconfessional. Posteriormente, as escolas abriram suas portas e seu corpo discente se tornou pluri-religioso. Ao mudar o perfil do público que freqüenta a escola confessional, mudaram também os objetivos do ensino religioso, evoluindo de uma natureza preponderantemente confessional para um ensino interconfessional ou ecumênico. Do pensamento de Lutero, permanece a percepção de ser humano como alguém que é digno e merecedor de respeito, como ser criado e amado por Deus. Assim, o ensino religioso na escola confessional é um espaço para dialogar sobre o sentido da vida, para aprender a conviver e relacionar-se, numa postura de abertura e respeito.

IHU On-Line - Qual a importância de Lutero em relação a seu pensamento sobre o papel da mulher dentro da Igreja?

Gisela Streck - Lutero afirmou que tanto o homem como a mulher são criação de Deus. Valorizou a família e neste sentido também o papel da mulher, ao afirmar que tanto meninos como meninas deveriam freqüentar a escola. Para as meninas, a escola possibilitaria o preparo necessário para “governar” futuramente a casa. Na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), cabe à mulher um papel importante. Alguns exemplos de atuação e de envolvimento das mulheres na vida da Igreja: na diaconia, com a atuação de irmãs diaconisas em creches, orfanatos, hospitais, asilos; na educação cristã de crianças e jovens nas famílias e nas comunidades; nas comunidades, por meio de grupos organizados e assumindo, inclusive, cargos de direção. Na IECLB, a valorização das mulheres é tão destacada que as ordena ao ministério pastoral, diaconal, catequético ou missionário.

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