Edição 280 | 03 Novembro 2008

Lutero e os mitos

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Vanderlei Defreyn acredita que o teólogo alemão foi importante num determinado momento no desenvolvimento que levou ao mundo moderno, mesmo que suas propostas não tenham relevância atualmente e que ele não tenha sido o fundador da escola popular

“Lutero representou uma renovação não só em função das igrejas protestantes que surgiram a partir da Reforma, mas também em função da renovação que surgiu dentro da própria Igreja Católica.” É dessa forma que o pastor Vanderley Defreyn define a importância de Martinho Lutero na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line. Defreyn descreve Lutero como figura histórica e fala sobre a questão da educação a partir do teólogo alemão, defendendo que “Lutero entendia a educação como a arte de reger crianças e levá-las a fazer o papel social que lhes cabia dentro de seu estamento”. Defreyn condena a heroicização feita sobre a figura de Lutero e, sobre ela, afirma que “o problema, no entanto, não está em Lutero e sim na maneira como nós lidamos com a história”. Na sua opinião, a tradição escolar luterana assume a forma de uma “tradição inventada”, com direito a um “mito de origem”, quando se usa o argumento “de que ela teria surgido por uma democratização do saber religioso, feita a partir do desejo de Lutero de que todos aprendessem a ler para poderem ler a Bíblia que ele traduziu para o alemão”. E dispara: “Por mais que as idéias de Lutero tivessem sido boas, na prática, geralmente se realizava aquilo que fosse do interesse das forças políticas ou tivesse relevância econômica. Importante é não se deixar levar por esta perspectiva idealista, de achar que as idéias por si só determinaram os rumos da História”.

Vanderlei Defreyn é mestre em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo. Seu tema de pesquisa é a educação na Reforma. Atualmente, é doutorando na Universität Würzburg, da Alemanha. Sua dissertação de mestrado resultou na publicação do livro A tradição escolar luterana: sobre Lutero, educação e a história das escolas luteranas até a Guerra dos Trinta Anos (São Leopoldo: Sinodal, 2005).

IHU On-Line - Em que sentido Lutero influenciou a constituição da Igreja Cristã?

Vanderlei Defreyn - Sua influência mais evidente reside no fato de que depois de Lutero já não se pode mais falar da “Igreja Cristã”, como era o caso na Idade Média, e sim de Igrejas Cristãs. Apesar de que esta não era a sua intenção, o movimento deflagrado por Lutero acabou com a unidade da Igreja Cristã no mundo ocidental, algo que determinou de forma decisiva a história ocidental nos séculos seguintes. Por exemplo, a maior guerra antes da Primeira Guerra Mundial foi a Guerra dos Trinta Anos, de 1618-1648, que tinha um pano de fundo religioso. Por outro lado, Lutero representou uma renovação não só em função das igrejas protestantes que surgiram a partir da Reforma, mas também em função da renovação que surgiu dentro da própria Igreja Católica, como aconteceu no Concílio contra-reformatório de Trento (1545-1563). 

IHU On-Line - O que Lutero entendia por educação? Como o senhor descreve o educador Lutero?

Vanderlei Defreyn - A historiografia protestante liberal procurou transformar Lutero num peregrino da educação moderna, que visa ao desenvolvimento da autonomia do indivíduo em respeito à sua individualidade. Tudo isso não passava pela cabeça de Lutero. As suas concepções educacionais são, por um lado, medievais e, por outro lado, influenciadas pelo Humanismo. Como era o caso na Idade Média, Lutero entendia a educação como a arte de reger crianças e levá-las a fazer o papel social que lhes cabia dentro de seu estamento. Influenciado pelos humanistas, ele achava que a educação deveria desenvolver no ser humano capacidades como o bem falar e o pensar e, em termos de método, evitar castigos corporais e privilegiar o caráter lúdico da aprendizagem. Mas também estas propostas de caráter mais liberal de Lutero não podem ser superdimensionadas. Por exemplo, quando se tratava de aprender o catecismo, Lutero era a favor do uso da vara e da coação para crianças que não se mostrassem cooperativas. Nada anormal para um ser humano que vivia no fim da Idade Média. O problema é a tendência de se avaliar personagens históricos a partir de nossas expectativas atuais e de nossa necessidade de buscar no passado heróis ou vilãos. Infelizmente, tive que constatar que pessoas com curso superior, depois que leram o livro em que critico esta heroicização feita sobre a figura de Lutero, ficaram indignadas e passaram a ter uma atitude de denunciação em relação ao reformador, já que ele não correspondia às expectativas criadas em torno dele. O problema, no entanto, não está em Lutero e sim na maneira como nós lidamos com a história.     

IHU On-Line - O senhor diz que o primeiro efeito do movimento liderado por Lutero sobre a educação foi devastador. Depois da Reforma, que mudanças ocorreram no sistema educacional alemão? Em que sentido Lutero impulsionou a valorização da educação escolar?

Vanderlei Defreyn - Foi devastador, principalmente em relação às escolas latinas, em função de um efeito não desejado pela crítica de Lutero à vida religiosa da época. Houve várias razões, como o fato de que a crítica de Lutero à vida monástica levasse ao fechamento das escolas que ali funcionavam. Mas ressalto um caráter prático para esta crise: na Idade Média, em geral, se ingressava numa escola latina, porque havia boas possibilidades de se fazer uma carreira eclesiástica. Com a Reforma, isso mudou, e as escolas latinas perderam a atratividade. Como acontece hoje em dia, na época, a maioria das pessoas era mais determinada por questões de sobrevivência do que por princípios religiosos. A idéia de que, com a Reforma, as pessoas queriam aprender a ler e escrever em alemão, para poderem ler a Bíblia que Lutero traduziu, tem muito de mito. Nos primeiros anos da Reforma, o esforço consistia em fundar escolas para formar pastores e funcionários para o Estado em formação. O fator religioso tinha um papel, mas, na prática, isso só dava certo se houvesse um interesse político por trás. Depois da Paz de Augsburgo,  em 1555, houve um grande esforço para o estabelecimento de escolas, não só para pastores, mas para as crianças em geral. Isto aconteceu também nos Estados que permaneceram católicos, e não deve ser romantizado: por trás desta iniciativa, havia uma nova preocupação dos príncipes, que agora precisavam que seus súditos fossem catequizados na confissão por eles adotada; era um problema que antes da Reforma não havia. E não apenas a fidelidade dos súditos, mas a necessidade de sua disciplinarização interessava. Ou seja, no centro desta iniciativa não estava o direito do indivíduo de ter acesso à educação, mas as necessidades do Estado.   

IHU On-Line - Em que medida é legitimo pensar em uma tradição escolar luterana? De que maneira as idéias do reformista promoveram mudanças no sistema escolar alemão?

Vanderlei Defreyn - Que exista uma tradição escolar luterana, não pode se contestado. A existência de escolas evangélicas luteranas no Brasil é uma prova disso. A questão é que ela assume a forma de uma “tradição inventada”, com direito a um “mito de origem”, quando se usa o argumento de que ela teria surgido por uma democratização do saber religioso, feita a partir do desejo de Lutero de que todos aprendessem a ler para poderem ler a Bíblia que ele traduziu para o Alemão. Provavelmente, Lutero teria achado esta idéia maravilhosa, mas, como ele tinha um senso de realidade bastante aguçado, certamente não passava pela cabeça dele que isso pudesse ser realizado. O complexo processo cultural, que séculos depois levou a uma valorização da educação escolar nos estados protestantes, tem certamente a ver com o fato de que um livro, a Bíblia, e a prática do cântico comunitário, que exige que todos consigam ler o texto da música, exerceram um papel importante desde o início na Igreja Luterana. Mas, no século XVI, isto certamente não produziu um povo luterano consciente da necessidade de alfabetização por motivos religiosos. Uma tentativa de explicação é que no século XVI foi criada uma elite de pastores que nos séculos seguintes, em associação com o Estado, teve êxito em criar uma identidade luterana, da qual fazia parte saber ler. Com o tempo, também através do uso de métodos de coação, conseguiu-se que os membros e súditos internalizassem esta identidade.   

IHU On-Line - Como essas transformações foram redirecionadas em outros países?

Vanderlei Defreyn - As Reformas escolares propostas por Lutero eram diretamente ligadas à organização da nova Igreja que surgia na Alemanha. Se ela teve repercussão em outros países, foi só de forma indireta, através de outros ramos do protestantismo. Em países como Inglaterra, Escócia e França, o calvinismo foi mais influente. Importante é ressaltar que, por mais que as idéias de Lutero tivessem sido boas, na prática, geralmente se realizava aquilo que fosse do interesse das forças políticas ou tivesse relevância econômica. Importante é não se deixar levar por esta perspectiva idealista, de achar que as idéias por si só determinaram os rumos da História.  

IHU On-Line - As propostas sugeridas por Lutero ao constituir um sistema escolar protestante, ainda são pertinentes na sociedade contemporânea?

Vanderlei Defreyn - Suas propostas certamente não, já que as realidades são completamente diferentes. Alguns princípios subjacentes às suas propostas certamente sim. Por exemplo, a insistência de Lutero, certamente por influência do Humanismo, de que a educação não fosse determinada apenas por motivos práticos, relacionados ao exercício de uma profissão. Lutero estava atento a esta necessidade prática, mas apontava para o fato de que a educação deveria se preocupar também em enriquecer o ser humano e desenvolver nele capacidades que o “embelezem” culturalmente e o tornem mais humano. Eu poderia citar outros elementos que certamente têm uma grande relevância para pessoas de confissão luterana, que constroem sua identidade religiosa em diálogo com Lutero. No entanto, creio que seja mais importante ressaltar o fato de que, em termos educacionais, o significado de Lutero foi histórico, ou seja, ele foi importante num determinado momento no desenvolvimento que levou ao mundo moderno. Mesmo que suas propostas não tenham relevância atualmente e mesmo que ele não tenha sido o fundador da escola popular, como alguns historiadores do século XIX queriam, este mérito não lhe deve ser tirado.

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