Edição 280 | 03 Novembro 2008

Os desafios do luteranismo, hoje

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Vítor Westhelle explica que libertação, para Lutero, é defi nida por uma relação metabólica entre liberdade e dever

Para o teólogo Vítor Westhelle, professor de Teologia Sistemática na Escola Luterana de Teologia de Chicago, Estados Unidos, Lutero foi uma pessoa muito terrena. “Não acreditava que Deus o havia elegido para uma missão especial, tentou viver a liberdade que o evangelho a todas pessoas promete e a responsabilidade que a razão e consciência demandam.” Ao comparar as dificuldades do período de Lutero com o momento atual, Westhelle não crê que hoje a realidade das cruzes que se vive seja muito diferente. “A religião segue, muitas vezes como agente alienador; da política e seus algozes sabemos das nossas experiências com ditaduras; mas é provavelmente na dimensão econômica, que na época de Lutero incluía a sexualidade, onde as condições de vida são produzidas e reproduzidas, que a cruz hoje assume dimensões difíceis de exagerar.”

Westhelle é graduado em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo, e mestre e doutor em Teologia, pela Escola Luterana de Teologia de Chicago. De seus vários livros publicados, citamos O Deus Escandaloso. O uso e abuso da cruz (São Leopoldo: Editora Sinodal, 2008). A entrevista a seguir foi concedida por e-mail.

IHU On-Line - Quais as principais lições de Lutero sobre a vida, a dor, o sofrimento e o amor?

Vítor Westhelle - Sem dúvida, é a idéia da radical liberdade do ser humano junto à irrestrita obrigação para com o próximo. Libertação, para ele, é definida por uma relação metabólica entre liberdade e dever. Lutero era uma pensador paradoxal, não no sentido de ser contraditório, mas no sentido do que viria a ser chamado de dialética. Para ele, só quem atinge as profundidades sabe como surfar as superfícies. Daí porque disse que sofrimento e gozo, dor e amor são as balizas de uma postura de vida ética.

IHU On-Line - Retomando seu livro O Deus escandaloso, sobre o “peso” do símbolo da cruz, qual a importância de uma cruz sem o Cristo crucificado, como é comum ver nas igrejas luteranas?

Vítor Westhelle - A representação da cruz na história do cristianismo é complexa. Somente tornou-se um emblema de identificação do cristianismo depois do imperador Constantino, no século IV de nossa era. Sua aparição como símbolo é bem tardia e já vem embotada pela aliança entre Igreja e império. O crucifixo, como representação realista da crucificação, só veio a ser usado no século IX. Mas durante o resto da Idade Média seu uso abundou. A reforma, de fato, foi uma ruptura no uso da cruz e do crucifixo. Lutero denunciava que a representação da cruz ou do crucifixo desviava a atenção do próprio evento do Cristo, não só em Jesus de Nazaré, mas na cruz que o povo-Cristo carrega. No entanto, Lutero e seus seguidores diretos não tomaram partido a respeito do uso ou não do crucifixo, como veio a fazer a tradição reformada de Calvino e também a Reforma Anglicana nos seus primórdios no século XVI. A razão para voltar ao uso da cruz, ao invés do crucifixo na tradição reformada, foi uma crítica explícita ao dominante dolorismo na piedade medieval, salientando, com a cruz vazia, a ressurreição. Embora luteranos tenham muitas vezes adotado a mesma postura, optando pela cruz e rejeitando o crucifixo com argumentos similares aos reformados, esta não era a postura de Lutero e seus seguidores diretos.

IHU On-Line - Como Lutero viveu sua cruz e seu sofrimento? Na sua opinião, como os cristãos hoje carregam e vivem sua cruz diária? 

Vítor Westhelle - Lutero foi uma pessoa muito terrena. Não acreditava que Deus o havia elegido para uma missão especial, tentou viver a liberdade que o evangelho a todas pessoas promete e a responsabilidade que a razão e consciência demandam. Sua cruz foi a perseguição que sofreu de sua própria Igreja, representada na pessoa do Papa e de seus mandatários de então, e do império. Ele, de fato, agradecia a seus inimigos políticos e religiosos pelas tribulações que passou, pois, disse, “isso me fez um ótimo teólogo”. Mas se preocupava mais pela cruz que outros viviam e nela encontrava ao Cristo encarnado. Para ele, eram três formas que esta cruz tomava. Primeiro, era a cruz imposta pela própria Igreja; segundo, era a cruz dos que eram politicamente perseguidos; e, nas duas últimas décadas de sua vida, preocupou-se particularmente pela opressão e marginalização econômica, em uma época em que o capitalismo financeiro impunha seu domínio. Não creio que, hoje, a realidade das cruzes que se vive seja muito diferente. A religião segue, muitas vezes como agente alienador; da política e seus algozes sabemos das nossas experiências com ditaduras; mas é provavelmente na dimensão econômica, que na época de Lutero incluía a sexualidade, onde as condições de vida são produzidas e reproduzidas, que a cruz hoje assume dimensões difíceis de exagerar.

IHU On-Line - Como a figura histórica de Lutero e seu pensamento teológico são discutidos nas universidades hoje? Qual o conhecimento que os jovens alunos têm de Lutero quando chegam à academia?

Vítor Westhelle - Há Lutero que é o emblema e o mito e há a pessoa histórica e sua teologia. Na academia, estudantes vêm com o emblema na mochila e são amiúde surpresos pela teologia e biografia que encontram. O emblema oferece uma identidade; a pessoa e seu pensamento abrem as portas à liberdade.

IHU On-Line - Qual o peso do protestantismo no cenário religioso norte-americano?

Vítor Westhelle - O cenário é complexo. Nas últimas décadas, os católicos têm ganhado território geográfico, em grande medida pela migração do Caribe, do México e do resto das Américas. O protestantismo tradicional e denominacional (batistas, episcopais, reformados, presbiterianos, luteranos, metodistas e por aí afora), que dominava o contexto norte-americano há um século, agora se encontra em recesso. Cresce o evangelicalismo,  sem afiliação denominacional, freqüentemente de orientação pentecostal e carismática.

IHU On-Line - Quais os principais temas de debate em relação à sociedade, que mais desafiam a identidade evangélico-luterana nos dias de hoje? Como se discute, nesse sentido, a partir do pensamento de Lutero, questões como a homossexualidade dentro da Igreja?

Vítor Westhelle - O principal tema para debate é a migração do luteranismo do seu berço original (Europa) e adotado (EUA). Há meio século, por volta de 90% dos luteranos se encontrava no eixo norte-atlântico. Hoje, esse número não chega a 60%. E, a seguir, a tendência, em mais dez anos, é de que a maioria dos luteranos estará alocada no hemisfério sul. O deslocamento demográfico é em si importante porque novas questões teológicas surgem e que são primeiramente de ordem econômica, o que ainda, no Terceiro Mundo, não pode ser dissociado da sexualidade e da reprodução biológica. O luteranismo cresce na África e, em segundo lugar, na Ásia (muito pouco na América Latina). A questão da sexualidade precisa ser tratada teologicamente no contexto da produção e da reprodução da vida como estas são vistas nestes novos cenários do luteranismo mundial. No entanto, mais importante ainda é que o luteranismo do século XXI estará em contextos geográficos em que será uma denominação cristã, entre muitas outras e ademais freqüentemente inseridas em contextos em que o cristianismo é minoria, como em partes de África e em toda Ásia.

IHU On-Line - Quais as bases do ensinamento de Lutero sobre a vocação ministerial? 

Vítor Westhelle - Lutero argumentava que o batismo era a única base necessária à vocação ministerial. Mas ele fazia uma distinção entre esta vocação universal e a atribuição da tarefa específica de exercitá-la publicamente. A segunda é atribuída pela ordenação ministerial que autoriza a pessoa a anunciar a palavra, denunciar a injustiça e celebrar a comunhão publicamente. Esta “autorização”, no entanto, é de responsabilidade de uma comunidade específica e perdura enquanto este chamado for considerado legítimo pela comunidade que a autorizou, podendo esta ser uma vila, um estado, uma nação, ou toda família de uma confissão. A questão central é que não existe, sob a perspectiva luterana, uniformidade ministerial enquanto a unidade é afirmada. Esta é uma visão da Igreja diferente do que encontramos na Igreja de Roma ou nas Igrejas independentes (pentecostais, evangelicais ou carismáticas). A Igreja Católica Romana afirma a uniformidade como base da unidade. As outras igrejas mencionadas afirmam a pluralidade de sua própria identidade sem unidade. Há méritos em todas estas propostas eclesiais, mas elas são definitivamente distintas.

IHU On-Line - Podemos estabelecer alguma relação entre as figuras históricas de Lutero e Frida Kahlo,  aproveitando a outra entrevista que o senhor nos concedeu? 

Vítor Westhelle - Frida era séria e brincava. Sua arte alegórica seria extremamente bem-vinda nas famosas noitadas de Lutero com seus amigos à mesa de jantar – e as receitas seriam as dela. Este “ser séria” de Frida e “brincar” é o equivalente da proposta de Lutero de que a vida deve ser balizada por responsabilidade e liberdade. Aliás, foi ele quem escreveu uma carta a Melanchthon,  seu fiel colaborador, quando este defendia a confissão dos seguidores de Lutero em Ausburgo – o reformador lá não podia estar pessoalmente, por motivo de ser um território inimigo à reforma e a sua cabeça estar lá a preço. Na carta de 1530, ele diz o seguinte: “A Deus não há um culto maior e mais digno do que o puro ócio”. O ócio é brincadeira, às vezes até safadeza, que Frida conhecia tão bem e com a qual alegrava as suas festas. Chego a achar que Frida e Lutero são gêmeos separados em um parto que levou 400 anos. 

Leia mais...

>> Confira outra entrevista concedida por Vitor Westhelle. Acesse nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu:

Entrevista:

* “Frida nos deixa sem jeito”, publicada na IHU On-Line número 227, de 09-07-2007, cujo tema de capa é Frida Kahlo 1907-2007. Um olhar de teólogas e teólogos.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição