Edição 280 | 03 Novembro 2008

Lutero. Pioneiro na análise de temas econômicos à luz da teologia

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Graziela Wolfart

Para Ricardo Rieth, historicamente, Lutero e seu tempo estão muito distantes de nós. “Não há termo de comparação entre a sociedade de então e a nossa”

Ricardo Willy Rieth possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, graduação em Teologia, pelo Seminário Concórdia/IELB, de Porto Alegre, doutorado em História da Igreja (Kirchengeschichte), pelo Instituto de História da Baixa Idade Média e da Reforma da Universidade de Leipzig, Alemanha, e pós-doutorado pela mesma instituição. Atualmente, é professor titular no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo. É, também, professor adjunto na Ulbra, em Canoas, nos Cursos de Teologia, História-Licenciatura e Ciências Sociais. Ricardo esteve na Unisinos no último dia 30 de outubro, participando do evento IHU Idéias, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, quando conduziu um debate a partir do tema “As contribuições de Martinho Lutero para a economia, a ética e a sociedade”.

Na entrevista concedida por e-mail, Rieth destaca que o pecado do qual Lutero fala corresponde ao drama existencial humano de viver sob a ameaça de forças que produzem morte e injustiça. Para Rieth, muitas destas forças são ligadas ao modo como a humanidade se relaciona com o meio ambiente, com os bens e o dinheiro em função de sua sobrevivência. Neste sentido, ele afirma que é natural e coerente com os fundamentos de sua teologia o fato de Lutero dar o melhor de si para abordar questões econômicas, sociais, educacionais, jurídicas ao lado de temas "clássicos" como Deus, fé, amor, salvação etc..

IHU On-Line - Qual a característica do olhar de Lutero sobre a economia? Como entender que um teólogo, um religioso, tenha se preocupado com esse tema?

Ricardo Rieth - Lutero não foi um pioneiro ao analisar temas econômicos e manifestar-se a respeito como teólogo. Há uma importante tradição de pensamento cristão preocupada com isso, que, de certo modo, refletiu-se nas contribuições do reformador alemão. A especialização e a disciplinarização do conhecimento em áreas estanques correspondem a um processo posterior a seu tempo. Nós, que somos de outra época, certamente ganhamos muito com esse processo nas ciências, mas houve perdas significativas. Quem hoje em dia relaciona teologia, filosofia ou ética com economia infelizmente muitas vezes é considerado pseudocientista. Lutero entendia que o objeto da teologia por excelência é a relação do Deus que justifica com o ser humano afligido pelo pecado. A justiça que Deus promove não se limita apenas a uma ou outra esfera da vida individual e cotidiana, mas é dirigida a seu conjunto. É uma justiça que quer promover vida plena e em abundância. Da mesma forma, o pecado de que Lutero fala corresponde ao drama existencial humano de viver sob a ameaça de forças que produzem morte e injustiça, sendo muitas delas ligadas ao modo como a humanidade se relaciona com o meio ambiente, com os bens e o dinheiro em função de sua sobrevivência. Assim, nada mais natural e coerente com os fundamentos de sua teologia o fato de Lutero dar o melhor de si para abordar questões econômicas, sociais, educacionais, jurídicas ao lado de temas “clássicos”, como Deus, fé, amor, salvação etc.

IHU On-Line - A partir de Lutero, como os princípios da ética cristã podem servir para formarmos um juízo em relação à questão econômica? Em que sentido, como o senhor afirma na outra entrevista que nos concedeu, a economia capitalista contradiz o mandamento de Cristo?

Ricardo Rieth - Ao analisar determinadas práticas no comércio de sua época, Lutero elabora um raciocínio aparentemente óbvio, mas por isso mesmo desconcertante para nós hoje. Cito parte de uma manifestação de Lutero que deixa isso presente: “Os comerciantes têm uma regra comum, fundamento de todo o negócio: ‘Posso vender minha mercadoria tão caro quanto puder’. Acham que este é um direito deles. Esse lema afronta direta e desavergonhadamente não só o amor cristão, mas a própria lei natural. A necessidade do próximo acaba definindo o preço e valor da mercadoria. Acaso não é esse um procedimento acristão e desumano? Não se está, dessa maneira, vendendo ao pobre sua própria carência?”. Lutero constata aquilo que se chamou de “lei da oferta e da procura”, percebe o quanto isso é determinante na política de formação de preços. Não se priva, contudo, de perguntar pelas intenções de quem está envolvido em transações comerciais. Princípios oriundos da fé como referência para as decisões e práticas não deveriam restringir-se apenas a alguns âmbitos da vida, sendo excluídos, por exemplo, do campo das relações comerciais.

IHU On-Line - Qual a importância de Max Weber no sentido de reconhecer a contribuição da ética protestante para pensar a economia?

Ricardo Rieth - Max Weber desenvolveu uma tese muito citada, seja por quem concorda, seja por quem discorda dela. Penso que seu grande mérito esteve em suscitar o debate que relaciona as práticas econômicas capitalistas, juntamente com suas justificativas, e as distintas correntes éticas no cristianismo da era moderna. Ele procurou descrever algo que chama de “espírito do capitalismo”, relacionando-o com impulsos decorrentes da Reforma protestante, ou seja, com o que denomina “ética protestante”. De modo algum, afirmou que uma corrente religiosa seria fator exclusivo de surgimento da sociedade capitalista com seu respectivo imaginário. Quis, isso sim, defender que, dentre uma multiplicidade de fatores, a Reforma protestante poderia ter parcialmente fomentado a constituição de um assim chamado “espírito do capitalismo”, ou seja, idéias de trabalho dedicado, poupança, austeridade e realização pessoal, familiar e coletiva nas atividades econômicas. As pesquisas que temos hoje em dia indicam que a realidade histórica do capitalismo nas suas origens foi muito mais complexa e diversificada do que se pensava no início do século XX, quando Weber escreveu seus trabalhos. Mesmo assim, como disse acima, o simples fato dele ter promovido o debate já é por si meritório.

IHU On-Line - Quais as bases da reflexão ética de Lutero e como a Bíblia foi inspiração nesse sentido?

Ricardo Rieth - Lutero procurou refletir acerca da ética tanto em relação com a filosofia, como em relação com a teologia. No que diz respeito à ética em diálogo com a filosofia, Lutero parte das correntes referenciais que conheceu na escolástica de fins da Idade Média, em especial o nominalismo, e no humanismo renascentista centro-europeu. Buscou incorporar elementos centrais das noções acerca do direito natural e da eqüidade. Para seu pensamento político, por exemplo, foi muito importante a herança do pensamento nominalista acerca da necessária distinção entre os governos espiritual e secular. Vinculado a isso esteve seu trabalho intelectual, relacionando a ética e a teologia. Aqui, contudo, a Bíblia assumirá um papel decisivo, o mesmo papel de autoridade que tem no conjunto do pensamento teológico de Lutero. Ele buscará, em determinados textos bíblicos, os fundamentos para uma ética normativa, que permanentemente confronta as pessoas crentes na realidade em que estão inseridas, desafiando-as a promoverem uma autocrítica daquilo que está na base de suas decisões e ações, sejam elas conscientes ou inconscientes. Dentre esses textos, destacam-se os Dez Mandamentos, o Sermão da Montanha e algumas passagens da tradição paulina.

IHU On-Line - Qual a atualidade do pensamento de Lutero para pensarmos os valores da sociedade atual?

Ricardo Rieth - Historicamente, Lutero e seu tempo estão muito distantes de nós. Não há termo de comparação entre a sociedade de então e a nossa. Lutero e seu legado poderiam nos auxiliar se buscássemos identificar o modo pelo qual ele tentou compreender a sociedade em que viveu e os desafios por ela lançados a quem procura viver decidindo e agindo pautado pela justiça, pelo amor e pelo Evangelho. Não resta dúvida de que hoje as aflições e sofrimentos das pessoas são diferentes do que há meio milênio. Contudo, aflição e sofrimento, sob novas formas, seguem marcando as existências. A justiça, o amor e o Evangelho estão aí justamente por causa das imensas cargas e sofrimentos que sujeitam as pessoas e as tornam sedentas de cuidado e consolo.

IHU On-Line - Quais os ensinamentos de Lutero em relação ao trato com recursos materiais? Como ele se utiliza do Evangelho para justificar sua posição?

Ricardo Rieth - Podemos identificar alguns passos propostos por Lutero em seus escritos. Em primeiro lugar, ele procura descrever a situação em torno a uma prática ou transação econômica, seguindo sua própria análise amparada por consultas a pessoas – comerciantes e financistas – diretamente envolvidas. Em seguida, ele busca afirmações do Evangelho para lidar com os recursos materiais e as encontra de modo especial no Sermão da Montanha. Os mandamentos de Cristo com toda sua radicalidade são enunciados: a pessoa cristã deve estar disposta a deixar que levem os bens, se intimada pela força; deve dar seus bens livremente a quem os necessita ou almeja; deve emprestar de boa vontade sem nada exigir além do que foi efetivamente emprestado. Em um terceiro passo, Lutero coloca frente a frente às práticas usuais e cotidianas das pessoas, em especial as que se julgam cristãs, e o mandamento de Cristo. Por fim, Lutero apresenta casos específicos de atividade econômica, a fim de orientar na liberdade de decidir com base nos mandamentos. Tal decisão não dependeria necessariamente do direito vigente. Para ele, situações diferenciadas exigiriam sempre decisões diferenciadas. Desse modo, seguiu atribuindo um papel central à eqüidade, ou ao bom senso, na base das decisões envolvendo práticas econômicas e políticas.

IHU On-Line - Qual era a visão de Lutero sobre a salvação?

Ricardo Rieth - Retomo o que disse anteriormente sobre a compreensão de Lutero pela qual o objeto da teologia é o ser humano, sujeito às forças da morte, da injustiça e do pecado, e o Deus que justifica. Com isso, Lutero não quer dizer que a teologia se limita ao ensino da justificação por graça e fé. Ele próprio ocupou-se intensivamente com temas como a criação, a educação, a sexualidade, a política e a economia. No entanto, Lutero sublinha que aqui está o centro de sua teologia: é o Deus vivo, que age para a salvação do ser humano. E isso não acontece apenas como conseqüência do juízo final, mas já agora, em todos os momentos, pela ação do Espírito Santo, o Santificador. A salvação proporcionada por Deus começa a acontecer já nesta vida. É o Espírito Santo que cria a fé, que faz a fé produzir frutos, que leva a pessoa a não temer o sofrimento. A santificação tem um grande significado para cada grupo de pessoas, para cada comunidade humana. Isso porque por meio dela o Espírito mata na pessoa o egoísmo, a inveja, o desejo de vingança e a ânsia pelo poder. A salvação está direcionada para sua plena realização na eternidade, mas ao mesmo tempo já é salvação nesta vida, para cristãos e não-cristãos, através de Cristo.

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>> Confira outra entrevista concedida por Ricardo Rieth à IHU On-Line. Acesse nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu

Entrevista:

• As contribuições de Lutero para a economia, a ética e a sociedade, publicada na IHU On-Line nº 279, de 27-10-2008, cujo tema de capa é Morte. Resiliência e Fé.

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