Edição 277 | 14 Outubro 2008

A majestade do Outro

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Márcia Junges

O pensamento de Lévinas é imprescindível, pois aponta para uma nova sociedade, para além do vazio niilista. O horizonte do mundo seria dado, a partir disso, pelo Próximo, pelo Outro, pela majestade que este representa

“Para um eu ético, no horizonte do mundo, só há uma majestade: O Rosto, o Próximo”, escreveu o filósofo Pergentino Pivatto, na entrevista exclusiva que concedeu à IHU On-Line por e-mail. Em seu ponto de vista, “seu pensamento se torna imprescindível pelo fato de toda a sua obra apontar para uma nova sociedade, justa, plural e pacífica, sustentada em relações éticas corresponsáveis, conferindo sentido à altura do humano, e rompendo a barreira do vazio e da indiferença niilizante”. Pivatto examina, também, como esse sistema filosófico pode contribuir para repensar a democracia do ponto de vista do respeito às singularidades: “O essencial consiste em quebrar a indiferença e o individualismo reinantes atualmente, afirmados jurídica e filosoficamente e promovidos politicamente. A opção pela renovação de uma moral do dever individual, que pode ter seus méritos, deverá ser confrontada com a redescoberta da relação inter-humana – esta é a admiração fundante de toda a vida social. Se a trama desta relação for refletida, notar-se-á que toda construção social repousa sobre ela, que toda política, no bom sentido da palavra, é o desenvolvimento de relações sociais a ser feito com base no respeito das alteridades, com responsabilidade e altruísmo”.

Pivatto é graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, e em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde cursou pós-graduação em Educação. É mestre e doutor em Teologia, pelo Instituto Católico de Paris, e mestre e doutor em Filosofia, pela Universidade Paris IV. É um dos organizadores de Éticas em Diálogo - Lévinas e o pensamento conteporâneo: questões e interfaces (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003) e organizou a obra Ética: crise & perspectivas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004). Atualmente leciona na PUCRS.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra de Lévinas no pensamento contemporâneo?

Pergentino Pivatto - Emmanuel Lévinas é um pensador original que, com sua reflexão, abre novas perspectivas e toma posições corajosas, incômodas e inusitadas sobre os principais problemas do século XX. A violência, a guerra, a morte do outro homem, a ruína dos ideais da modernidade e da sua racionalidade, a política como nova estratégia de continuar a guerra de outra forma e com outros meios, a redução da moral aos ardis egológicos tripudiando sobre a justiça, entre outros, formam um conjunto de graves questões sobre as quais projeta luzes novas, para as quais Lévinas, na qualidade de filósofo, profeta e cidadão do mundo a ser humanizado, chama a atenção e diante das quais se posiciona. Muito mais que as análises sobre os problemas e suas causas, interessam os novos horizontes para os quais conduz o leitor, geralmente surpreendentes, que podem levar o ser humano a novas relações ético-sociais que culminam na justiça, no respeito, no pluralismo e na paz. Talvez, o maior desafio teórico-ético esteja na proposição da subjetividade como responsabilidade, contrastando com o espírito social aceito na tradição recente, ufana de autonomia e liberdade como fundantes da moralidade e de relações humanas emancipadas. É sumamente atual a questão colocada por Lévinas e sua análise: como enfrentar a violência sem gerar mais violência? Como reduzir a violência e, sem ser ingênuo ou imoral, combatendo-a, promover justiça, solidariedade e paz nas relações sociais?        
 
IHU On-Line - O que sua filosofia pode ensinar ao sujeito pós-moderno?

Pergentino Pivatto - Tem-se afirmado que Lévinas é um filósofo pós-moderno. Depende de como se entende pós-modernidade. Como crítica aos ideais próprios da modernidade, da autonomia, da liberdade, da eticidade, entre outros aspectos, sem dúvida, Lévinas não é moderno. Por outro lado, brinda-se hoje aos esquemas do prazer, do ter, do valer, do aparecer, do crepúsculo do dever, do provisório e do sentimento, saúda-se como ultrapassado o ético, o comunitário, o altruísta, vendo-se nisto aspectos irrenunciáveis do pós-moderno, da era do vazio. Aos cultuadores desta visada pós-moderna, Lévinas parecerá indigesto e in-atual, pois ali se manifesta o homem como animal irresponsável. Passar de animal ao humano não é magia nem questão de boas intenções, mas vocação que requer interessar-se mais pelo outro, seja quem for e de onde vier, do que por si mesmo; requer assumir com coragem e destemor a luta pela justiça social e pelo respeito por todo outro; requer descobrir a unicidade de cada ser humano e sua majestade na trama social, para além dos encadeamentos históricos e formas culturais. Lévinas é um pensador do sentido do humano e, nesta acepção, na medida em que pós-moderno significa busca e construção de sentido, o seu pensamento se torna imprescindível pelo fato de toda a sua obra apontar para uma nova sociedade, justa, plural e pacífica, sustentada em relações éticas corresponsáveis, conferindo sentido à altura do humano, e rompendo a barreira do vazio e da indiferença niilizante.
 
IHU On-Line - É correto afirmar que a idéia de Infinito levinasiana é inspirada em Descartes? Por quê?

Pergentino Pivatto - Lévinas mesmo atesta que a sua elaboração da idéia de Infinito tem como fonte inspiradora a famosa Terceira Meditação de Descartes, embora também faça referência à idéia do bem além do ser e à idéia do verdadeiro discurso de Platão. Ele está à procura do seu próprio caminho e pensamento filosófico; acredita que precisa enfrentar, sobretudo, duas questões: como fazer uma filosofia centrada no outro – alteridade – sem ser acusado de fazer uma moral religiosa; em segundo lugar, contra diversos modernos e também Heidegger, mostrar que a filosofia não é necessariamente atéia e, por não ser atéia, não necessariamente precisa aceitar o sentido comum de religiosidade. Ao mesmo tempo, quer mostrar que existem na tradição filosófica ocidental tentativas racionais que não lêem o direito no poder egológico, que não reduzem o Outro ao Mesmo e que não são nem atéias e nem menos filosóficas por isso. Descartes e Platão são, sem sombra alguma de dúvida, dois grandes filósofos, e Lévinas se sente bem ao lado destes mestres e neles se inspira.

IHU On-Line - De que forma essa idéia de Infinito serve como orientação metafísica para sua ética?

Pergentino Pivatto - É mister destacar que Lévinas aproveita apenas o esquema formal da idéia do infinito cartesiana, deixando de lado o conteúdo propriamente ontológico-teológico ali afirmado ou o ideal teorético que pode ser notado. Que significa ter a idéia do Infinito? Significa uma relação entre o eu e o Infinito em que o eu, ao entrar nesta relação e manter-se, nela não sucumbe por êxtase nem se desindividualiza por participação; significa ainda uma relação em que o Infinito, por entrar em relação com o finito não fica objetivado nem relativizado, mas permanece inabarcável. Mantêm-se, portanto, tanto o eu como o Infinito e a relação entre ambos. Conseqüentemente, esta relação é metafísica, ficando os relacionados separados, sem compor participação ou unidade. Lévinas chama a atenção para o que há de original nesta relação: ela se dá na ordem das idéias, na filosofia. O curioso aparece no fato de o Infinito, enquanto ideado, ultrapassar a capacidade do ideador de abrangê-lo como conteúdo. O Infinito não se desmente como Infinito e nem reduz o finito. Lévinas descobre e destaca uma intencionalidade não objetivadora, não relativizadora nem redutora do Outro e nem anuladora do Mesmo. Tal intencionalidade que visa ao Infinito tem característica metafísica e pensa mais do que pensa.

Novidade e audácia reflexiva

A novidade e a audácia reflexiva estão no fato de Lévinas tomar este esquema formal da idéia do Infinito, transpô-lo e aplicá-lo para o campo da relação social. A idéia do Infinito é analisada e aplicada no horizonte das relações intersubjetivas. Ele mostrou ser possível pensar filosoficamente uma relação entre o Eu (Mesmo) e o Outro (Rosto) em que o Mesmo não seja anulado, em que o Outro não seja objetivado, em que a relação seja mantida, de tal forma que subjetividade e alteridade se constituam na relação que tecem sem se fundirem e sem se alienarem. A idéia do Infinito realiza-se na relação social com o Outro. A idéia do Infinito é a relação social metafísica por excelência, a relação ética.                              

IHU On-Line - Qual é a contribuição do pensamento de Lévinas para a teologia católica e cristã?

Pergentino Pivatto - É notório que o pensamento de Lévinas influenciou pensadores e teólogos cristãos os mais variados, em diversas partes do mundo. No início, houve reticências, pois declara a impossibilidade de uma encarnação de Deus na história e se confronta diversas vezes com o cristianismo, contestando-lhe a pretensão de herdeiro e realizador da tradição judaica. Foi convidado a participar de colóquio de intelectuais católicos franceses, onde apresentou o tema da verdade perseguida e humilhada em que percebe proximidade com o cristianismo. Na França, Itália, Alemanha, entre outros, há vários estudos teológicos inspirados em Lévinas. Alguns temas parecem mais recorrentes: Deus, criação, metafísica, sentido do humano, moral, revelação, próximo, hospitalidade, morte. Mostrou a possibilidade de fazer uma reflexão séria e valiosa a partir da inspiração bíblica, considerando tais textos não menos ricos em experiência humana e sabedoria do que os escritos gregos e outros. Além disso, Lévinas está na base de várias reflexões que procuram repensar a ordem ética e sua inspiração bíblica e deu novo vigor ao pensamento que se inspira em textos bíblicos, mostrando sua validade e riqueza a ser explorada.       

IHU On-Line - E de que forma a sabedoria bíblico-judaica inspira o pensamento desse filósofo?

Pergentino Pivatto - Não há discordância de que a filosofia tem seus métodos e sua linguagem moldados na tradição greco-ocidental. Mas, Lévinas é um filósofo do sentido, do sentido a ser dado à caminhada humana ao longo da história. Pensa que o sentido proposto pela tradição ocidental filosófica e cristã não eleva o ser humano ao sentido de que ele é capaz. Ele se defronta com o problema das guerras, do Holocausto, das ideologias alienantes e vê que o ser humano é reduzido a nada. Como o Ocidente filosófico, religioso, emancipado, chegou a tal ponto? Vai à busca de outro caminho, recorre à inspiração bíblica que vem da tradição mosaica, pelas vias rabínica e talmúdica. Pensa que o sentido do humano aparece na lei mosaica, na qual se urge o respeito do outro, do próximo. A originalidade do judaísmo e sua contribuição ao mundo consistem precisamente, segundo ele, no valor conferido ao ser humano a ser manifestado e realizado nos horizontes do mundo, na relação intersubjetiva, em que cada ser humano é apreciado como próximo. Este sentido não é derivado; antes, é fundador de toda ética e de toda cultura, e serve de base e de inspiração para o pluralismo e para a paz. Propor este sentido para o Ocidente e para os judeus assimilados, especialmente pela via filosófica, é intuito de toda sua produção de pensamento. Postula a tese de que o judaísmo tem uma vocação única, a de ser profeta do sentido ético e que somente a realização desta vocação oferece chances de um mundo novo e melhor.        

IHU On-Line - Qual é a relação do transcendente na obra levinasiana?

Pergentino Pivatto - Há pelo menos três sentidos para o termo transcendência na obra levinasiana. Comecemos pelo significado usual comum entre nós. Aqui transcendente significa uma relação com aquele que está infinitamente além, invisível, inabarcável, incompreensível, embora de alguma forma intuído e até presente (na consideração de ordem religiosa). Para Lévinas, este tipo de transcendente ou transcendência não resiste a um exame rigoroso e deve ser incluído no campo da imanência transcendental. Em Lévinas, há um transcendente intitulado “absolutamente Outro”: trata-se aqui do absoluto (Deus) que jamais entra em relação direta com o ser humano, mas que se manifesta de alguma forma quer como absolutamente passado - “imemorial” -, quer obliquamente no Outro, que é o Rosto humano transcendente, quer no eu que no ato ético gratuito revela responsabilidade e bondade, e estas podem traduzir-se em testemunho ou glória que ambígua e enigmaticamente também pode significar como uma passagem do Infinito no horizonte humano. Em Heidegger, há um aproximar-se e um afastar-se do divino, fora da eira do ser; em Lévinas, a transcendência absoluta de Deus vislumbra-se, fora da eira do ser e da teologia, sempre de forma ambígua e enigmática, na esteira da vida ética que faz com que o ser humano passe do nível animal ao nível humano no qual aparecem vestígios da passagem do Infinito e pode apontar para alguma forma de crença, nunca fora da relação ética.

O transcendente como Rosto

Há um segundo sentido de transcendente: trata-se do Rosto. Esta transcendência acontece no horizonte do mundo e se tece nas relações inter-humanas. Para tanto, é mister que o Outro seja relacionado como Infinito e acolhido em sua alteridade irredutível pela intencionalidade da idéia do Infinito ou como desejo. Esta relação de transcendência é verificada só se e quando o Eu, aberto e generoso, relacionar-se com o Outro de tal forma que o Outro não seja mais objetivado ou reduzido ou relativizado, mas acolhido por ele mesmo, em sua alteridade e integridade, e o eu se tornar responsável por ele.

O transcendente ético

A segunda e a terceira formas de transcendência vão de par, sendo que na terceira, opera-se uma passagem do estágio animal para o nível humano, isto é, há uma transcendência própria do eu que consiste em transcender-se, em elevar-se, em tornar-se ético, rompendo o individualismo e a indiferença, e tornando-se responsável pelo Outro. As três formas de transcendência estão profundamente inter-relacionadas e condicionadas. A transcendência própria da religião não é vista com bons olhos pelo fato de nela se manifestar com freqüência fins interesseiros e próprios ao eu. Lévinas confere novo sentido à religião: é uma relação que se estabelece entre o Eu e o Outro, sem constituir totalidade, sem anular a alteridade do outro. O novo sentido proposto por Lévinas realiza-se no fato de o animal racional, ao acolher o Outro como alteridade, transcender-se. O transcender-se não é uma idéia ou intenção, mas um movimento próprio ao eu em que se torna, pela injunção do Rosto, responsável e bom, ato pelo qual se dá também a sua justificação, redimindo de alguma foram o ser do mal. 

IHU On-Line - Quais seriam suas contribuições para um diálogo inter-religoso, que deixe o fundamentalismo de lado?

Pergentino Pivatto - O fundamentalismo parece enraizar-se em duas atitudes básicas: uma, teórica, que reconduz e reduz tudo a uma idéia ou princípio que julga inamovível e inquestionável; outra, prática, que considera o próprio eu como pólo central a que tudo se refere. Tudo gira em torno do eu e/ou de sua idéia. A filosofia de Lévinas, tanto pela crítica feita à egolatria como pela crítica feita à teoria da consciência intencional constituinte, pode servir de referência para elaborar um novo pensamento que conduz ao pluralismo e à paz, conseqüentemente, ao diálogo intercultural e inter-religioso. Penso que, ao colocar a ética como filosofia primeira embasada na relação respeitosa tanto do eu como do outro, Lévinas tornou-se referência obrigatória para repensar os conflitos culturais, étnicos, religiosos e outros mais. Para um eu ético, no horizonte do mundo, só há uma majestade: O Rosto, o Próximo. A relação entre o Eu e o Outro é a base sobre a qual tudo se ergue, portanto, permanece fundamento prévio a qualquer afirmação fundamentalista. Para haver verdade, é preciso primeiro haver relação intersubjetiva respeitosa.

IHU On-Line - E no campo político, especificamente na democracia, como essa filosofia poderia auxiliar a desenvolver o respeito pelas singularidades?

Pergentino Pivatto - Entre as diversas teses de Lévinas, aquela que argumenta em favor da originalidade de cada ser humano, e do respeito que lhe é devido, é a que mais chama a atenção dos leitores. Várias dissertações e teses, em múltiplos campos de pesquisa, tomam o seu pensamento como referência, não só para criticar rótulos niveladores e achatadores, mas, sobretudo, para realçar a unicidade própria a cada ser humano, para além de contextos, molduras e convenções, inclusive tidos por científicos. O essencial consiste em quebrar a indiferença e o individualismo reinantes atualmente, afirmados jurídica e filosoficamente e promovidos politicamente. A opção pela renovação de uma moral do dever individual, que pode ter seus méritos, deverá ser confrontada com a redescoberta da relação inter-humana – esta é a admiração fundante de toda a vida social. Se a trama desta relação for refletida, notar-se-á que toda construção social repousa sobre ela, que toda política, no bom sentido da palavra, é o desenvolvimento de relações sociais a ser feito com base no respeito das alteridades, com responsabilidade e altruísmo. Além disso, em primeiro lugar, o respeito das singularidades deve realizar-se com aqueles que historicamente, ao longo de tempos, foram e são os excluídos, aqueles que não têm rosto social, aqueles que sempre foram colocados como massa sem rosto e sem palavra.

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