Edição 276 | 06 Outubro 2008

“O conflito é o motor da vida política”

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Márcia Junges

Competição e inimizade humanas conduzem à formação do Estado, mas representam ameaça constante aos pactos políticos quando não racionalizadas, esclarece a filósofa Maria Isabel Limongi. Escrito em 1651, O Leviatã de Thomas Hobbes continua atual e suscita discussões, como a que estabelecemos com a filósofa na entrevista a seguir.

Escrito em 1651, O Leviatã de Thomas Hobbes continua atual e suscita discussões, como a que estabelecemos, por e-mail, com a filósofa Maria Isabel Limongi, na entrevista a seguir concedida à IHU On-Line. “Segundo Hobbes, a competição e a inimizade entre os homens é o que nos conduz ao Estado, e não o que o ameaça. Porém, é verdade que essa competição e inimizade, quando não racionalizadas, representam uma ameaça constante aos pactos políticos. Assim pensava também Maquiavel. O conflito é o motor da vida política”, analisou Limongi. Pai do conceito de Estado, Hobbes é conhecido, também, pelo conceito de guerra de todos contra todos, através do qual a filósofa compara a inoperância do Estado e seu pacto junto às favelas cariocas. A guerra instalada no interior do Estado seria uma espécie de doença que “consiste na constituição de poderes paralelos ao do Estado, com força o suficiente para fazer frente às suas decisões. Nesse caso, a constituição desse poder paralelo responde a uma incapacidade do Estado de governar, proteger e garantir condições de subsistência a uma boa parcela da população”.

Graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Limongi cursou mestrado e doutorado na mesma instituição com a tese O homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. Docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR) é autora de Entre a Ética e o Interesse (Londrina: Lido, 1995) e Hobbes (Rio de Janeiro: Zahar, 2002). Organizou a obra Filosofia britânica nos séculos XVII e XVIII (Curitiba: Revista Dois Pontos, 2005).

IHU On-Line - Qual é a atualidade do conceito de Estado hobbesiano?

Maria Isabel Limongi - Hobbes  é o pai do conceito de Estado, tal como o empregamos até hoje, a saber, como um conjunto de vínculos jurídicos de direito e dever  entre governantes e governados.  Nesse sentido, o conceito hobbesiano de Estado é atualíssimo, ainda que o modo como Hobbes pensou a natureza e o conteúdo desses vínculos tenha sido amplamente questionado.

IHU On-Line - O Leviatã  moderno corre perigo de dissolução? Por quê?

Maria Isabel Limongi - Quando falamos em Leviatã, é na soberania do poder do Estado que pensamos. Hobbes sempre levou em conta os perigos que põem em risco a soberania do Estado ao teorizá-la. Sua retórica está montada de modo a convencer o seu leitor da importância da soberania para a regulação das relações entre os homens, sempre tomando-a como um desafio, como algo a ser conquistado e mantido com esforço, contra as forças que levam a sua dissolução. 

Hoje esses perigos seriam maiores? Não sei. É verdade que a chamada globalização e, mais especificamente, a ingerência de interesses econômicos supra-nacionais nas decisões nacionais têm colocado em risco as soberanias nacionais. Mas não estou certa de que esse perigo seja maior do que aqueles teorizados por Hobbes em sua época, como, por exemplo, a ingerência da religião nos assuntos políticos. Isto é, não estou certa de que hoje o Leviatã corra mais perigo de dissolução do que corria no momento em que foi teorizado. Talvez se possa dizer que o perigo da dissolução é inerente ao conceito do Leviatã, tal como Hobbes o formulou.

Fora isso, acho que o conceito de soberania estatal ainda está vivo e ainda engaja a muitos no sentido de vencer os perigos que lhe são inerentes. Nesse sentido, o Leviatã não está em perigo e só viria a estar, realmente, quando abandonarmos o seu conceito como marco para pensarmos as relações políticas.

IHU On-Line - O homem como lobo do homem seria a maior ameaça ao Estado?

Maria Isabel Limongi - Sim e não. Segundo Hobbes, a competição e a inimizade entre os homens é o que nos conduz ao Estado e não o que o ameaça. Porém, é verdade que essa competição e inimizade, quando não racionalizadas, representam uma ameaça constante aos pactos políticos. Assim pensava também Maquiavel.  O conflito é o motor da vida política. É ele que nos leva a criar as instituições políticas, como um meio de regulá-los. Mas é ele também, quando expresso de maneira radical e por via não institucional, que as põe em risco.

IHU On-Line - Como esse conceito (o homem como lobo do homem) pode nos ajudar a compreender o comportamento agressivo do indivíduo contemporâneo?

Maria Isabel Limongi - Acredito que o essencial na idéia do homem como lobo do homem é a idéia de que o conflito está na base das relações políticas. Não penso que Hobbes tenha querido indicar com essa expressão que o homem é essencialmente agressivo. Nem penso que o comportamento agressivo do indivíduo contemporâneo, se é que o indivíduo contemporâneo é mesmo agressivo, ou pelo menos mais agressivo do que os indivíduos do passado, deva ser pensado a partir do postulado de uma natureza humana essencialmente agressiva. Ganharíamos pouco para compreendê-lo a partir daí, e bem mais investigando as causas especificamente contemporâneas que conduziriam a esse suposto comportamento.

O que talvez se pudesse fazer, com algum proveito, é pensar a eventual agressividade contemporânea como o resultado de uma incapacidade das instituições na mediação dos conflitos, de modo que eles terminem por se manifestar de maneira bruta e desregulada.  Mas novamente aqui seria preciso pensar com vagar em que medida as instituições seriam mais incapazes hoje do que na Inglaterra de Hobbes ou na Itália de Maquiavel. Como eu disse, acredito que esses autores apontam no sentido de pensar que essas dificuldades (e, portanto, a agressividade dos indivíduos na medida em que procedesse delas) são inerentes à vida política.

IHU On-Line - Quais são os limites do Estado frente ao sujeito contemporâneo, que nega autoridades superiores em função de seu delírio de autonomia e liberdade ilimitada?

Maria Isabel Limongi - Novamente, não penso que estaríamos diante de uma dificuldade fundamentalmente contemporânea. O limite do Estado é sempre a ameaça de sua dissolução, da qual falamos acima.

IHU On-Line - O desejo infinito de poder e mais poder, que só cessa com a morte, seria uma explicação hobbesiana adequada para entendermos a política em nossos dias? Por quê?

Maria Isabel Limongi - Essa idéia ainda tem o seu vigor. Mas, como já mencionei, não devemos tomar esse desejo como um traço essencial da natureza humana. Penso que o vigor conceitual dessa idéia é tanto maior quando o entendemos como a expressão do conflito entre os homens, ali onde ele não é mediado politicamente e quando ele se expressa de uma forma bruta, sem nenhuma regulação jurídica.

IHU On-Line - O medo continua sendo um agregador do homem sob a tutela do Estado? Quais seriam os maiores medos do nosso tempo?

Maria Isabel Limongi - Acredito que sim, se entendermos o papel do medo na política na linha do que eu vim dizendo, isto é, como um modo de se referir ao caráter conflituoso das relações sociais.

IHU On-Line - Nesse aspecto, que diferenças apontaria em relação à época em que Hobbes escreveu o Leviatã?

Maria Isabel Limongi - Nenhuma.

IHU On-Line - Podemos afirmar que nas favelas cariocas, por exemplo, impera uma guerra de todos contra todos,  já que o Estado ali é inoperante e não há um poder comum que mantenha todos sob o respeito de um pacto?

Maria Isabel Limongi - Sim. Mas cabe salientar que nesse caso – e isso é perfeitamente compatível com a teoria de Hobbes e com o que dissemos sobre a dissolução do Estado – a guerra se instala como uma doença no interior do Estado. A doença consiste na constituição de poderes paralelos ao do Estado, com força o suficiente para fazer frente às suas decisões. Nesse caso, a constituição desse poder paralelo responde a uma incapacidade do Estado de governar, proteger e garantir condições de subsistência a uma boa parcela da população.

IHU On-Line - A secularização da sociedade e a separação de religião e Estado seriam elementos para se compreender a crise de credibilidade nas instituições políticas?

Maria Isabel Limongi - De um ponto de vista hobbesiano, seria o contrário. Seria a falta de clareza na distinção entre o âmbito da religião e o da política que levariam ao descrédito na política, por incompreensão da sua natureza.

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