Edição 276 | 06 Outubro 2008

A crise atual não pode ser atribuída ao capitalismo e às idéias econômicas liberais

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Graziela Wolfart

A idéia de que a crise financeira atual é produto da aplicação de princípios liberais é completamente errada, defende o professor Roberto Camps Moraes

Na opinião do professor Roberto Camps Moraes, da Unisinos, a crise atual não pode ser atribuída ao capitalismo e às idéias econômicas liberais. “Esta idéia é completamente falsa”, afirma ele. Em sua argumentação, ele explica que “a teoria moderna da política monetária, aquela em que se baseiam os grandes bancos centrais do mundo, e que nada tem a ver com as falhas regulatórias que foram responsáveis pela crise atual, deve uma grande parte a alguns princípios básicos que foram defendidos por Milton Friedman nas décadas de 1950 a 1970 do século passado”.

Roberto Camps Moraes possui graduação em Ciências Econômicas e em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É mestre em Economia pela mesma instituição, e doutor em Economia, pela Vanderbilt University, dos Estados Unidos. É autor dos Cadernos IHU Idéias números 101 e 104, intitulado As principais contribuições de Milton Friedman à Teoria Monetária (partes 1 e 2).

IHU On-Line - Em que sentido a crise financeira mundial nos convida a revisitar os autores clássicos da economia? Que autor melhor contribui para a compreensão do momento econômico atual, a partir da crise nos EUA?

Roberto Camps Moraes - Na minha área – a Macroeconomia e a Teoria Monetária –, a crise nos leva a quase todos os clássicos, tais como David Hume,  Adam Smith,  Ricardo,  William Bagehot, J. S. Mill,  Karl Marx, Knut Wicksell,  Alfred Marshall,  A. Pigou  e Irving Fisher.  Mas, sem dúvida, aqueles autores do século XX que estão mais próximos e que nos são mais familiares pelas suas obras posteriores à Grande Depressão – a mãe de todas as crises e geradora da teoria keynesiana – e que a interpretaram são John Maynard Keynes e Milton Friedman. Tanto na Teoria geral (1936) de Keynes como na História monetária dos EUA, de Friedman e Scharwtz, especialmente no capítulo 7 (“The great contraction”), encontraremos uma discussão que se aplica em parte à análise da atual crise. Mas atual mesmo, e com uma análise com a qual eu concordo em quase 100%, é Nouriel Roubini,  professor da NYU, que tem um site muito interessante e informativo na rede (RGE Monitor). Barry Eichengreen  (autor do excelente Globalização do capital e professor de Berkeley) também tem uma produção que ajuda muito a entender esta crise. Acabo de ver na internet que hoje (02/10) ele publicou uma explicação da crise fundada na falha regulatória, que, sem dúvida foi, a meu ver, um dos fatores básicos.      
 
IHU On-Line - Como essa crise elucida o contraponto entre Friedman e Keynes? Como Milton Friedman enfrentaria o momento atual? O senhor concorda que as suas teses se desfazem feito um castelo de areia?

Roberto Camps Moraes - Muito pelo contrário. Milton Friedman – assim como os autores que se alinham na história do pensamento econômico em torno de uma tradição que poderia ser chamada de monetarista, começando com Ricardo - sempre defenderam a idéia chave de que devem existir regras sobre a expansão da moeda e do crédito. Ricardo defendeu o padrão-ouro, que foi uma grande regra de contenção da moeda e do crédito pela camisa de força da moeda lastreada. Friedman defendeu, para o sistema de moeda fiduciária do século XX, uma regra monetária simples de contenção: a regra do X %. Mas, se você ler O papel da política monetária (1968), encontrará passagens que antecipam o sistema de metas de inflação, por exemplo, que nada tem a ver com a causação da atual crise. A idéia de que esta crise é produto da aplicação de princípios liberais é completamente errada. Dá para entender a sua origem nos seguintes fatos: (a) os executivos dos bancos de investimento que atuavam fora da supervisão do Fed, e que formavam um sistema bancário paralelo e clandestino que foi responsável pelo alavancamento e riscos excessivos do crédito, costumavam defender a sua liberdade de ação predatória, usando argumentos ditos liberais de auto-regulação; e (b) Hayek defendeu em uma obra - e alguns anarco-capitalistas defendem - a idéia de free banking, que poderia ser traduzida como a “privatização” da moeda pela abolição do monopólio do Banco Central.

Predadores do crédito e da moeda

Estes dois fatos não transformam o Goldman Sachs  em agente de idéias liberais; pelo contrário, estes indivíduos que usaram argumentos liberais e que vão pedir socorro para o governo socializar as maciças perdas impostas à sociedade pela sua conduta não controlada são animais que jamais existiriam em um ambiente regulatório que preserva os direitos de propriedade e a portabilidade intertemporal da riqueza, que é uma das funções mais importantes do sistema financeiro. Ao permitirem a assunção de riscos excessivos, estes predadores terminam destruindo riqueza e bens públicos como o crédito e a moeda. Hayek defendeu a “privatização” da moeda, mas Friedman não. Isto não transforma Friedman em não-liberal. Friedman entendia perfeitamente que a moeda e o crédito são bens públicos que necessitam de supervisão e regras de contenção e que se estas não existirem estes bens rapidamente serão destruídos. A existência de bancos centrais e da regulação prudencial dos bancos, assim como o seguro dos depósitos bancários, são práticas que emergiram da evolução dos mercados; quando alguns injetam ideologia na discussão destas questões, estão querendo ser “vivos”, ao atrair apoios automáticos baseados na ignorância dos aspectos técnicos.     

IHU On-Line - Como os valores da escola de economia pregada na Universidade de Chicago, por Friedman, se relacionavam com liberdade e democracia? Qual a atualidade desses conceitos no cenário atual?

Roberto Camps Moraes - A escola de Chicago abriga muitos programas de pesquisa em várias áreas. Cada um dos onze economistas que receberam o Nobel de economia e que trabalham ou trabalharam lá é responsável pela criação de um programa de pesquisa. O pessoal de Chicago gosta de pensar que um princípio básico que os une é a liberdade. E aqui eu gostaria de fazer uma distinção que poucos fazem: a liberdade é uma idéia que não se confunde com a democracia, que é outra idéia. Você pode ter liberdade sem democracia e democracia sem liberdade. Na prática, no entanto, e na nossa época, não se pode conceber uma democracia sem liberdade. O que isto tem a ver com a Escola de Chicago? Creio que nada.    
 
IHU On-Line - Como fica, nesse momento, a legitimidade do capitalismo e das idéias econômicas liberais? Podemos prever uma transformação?

Roberto Camps Moraes - Se eu bem entendi a pergunta, ela parte da idéia de que a crise atual pode ser atribuída ao capitalismo e às idéias econômicas liberais. Como já dito anteriormente, esta idéia é completamente falsa. Mas, certamente, assim como ocorreu depois da Grande Depressão, os coletivistas se aproveitarão, agora, do discurso oportunista dos banqueiros de investimento e da idéia, a meu ver louca, de Hayek, para fazerem esta ligação.    
 
IHU On-Line - Qual a importância da teoria monetária de Friedman para a concepção da economia vigente atualmente? Quais as principais revoluções provocadas por ela?

Roberto Camps Moraes - A regra particular sugerida por ele em 1968 – segundo a qual uma meta de expansão monetária de X%, sendo X uma constante, seria o melhor mecanismo de estabilização da economia – foi enterrada em 1982, por ocasião do fim do que ficou conhecido na história da política monetária americana como o “grande experimento monetarista”. Mas, em um sentido mais amplo, a teoria moderna da política monetária, aquela em que se baseiam os grandes bancos centrais do mundo, e que nada tem a ver com as falhas regulatórias que foram responsáveis pela crise atual, deve uma grande parte a alguns princípios básicos que foram defendidos por Milton Friedman nas décadas de 1950 a 1970 do século passado. Entre estes princípios, no campo monetário, estão (1) a superioridade de regras quando comparadas à discricionariedade pura; (2) a prudência nas doses, devido ao desconhecimento dos leads e lags de seus efeitos; e (3) o estabelecimento de um método para o cálculo do imposto inflacionário. No campo fiscal, a demonstração de que os sucessivos déficits fiscais conduzem a uma redução da taxa de crescimento da economia no longo prazo e que, portanto, uma restrição orçamentária do governo teria de entrar no modelo macroeconômico. Isto tudo foi defendido em meio a um período em que a hegemonia da ortodoxia keynesiana dispensava preocupações com o longo prazo, baseada no acaciano (porém perigoso) dito “no longo prazo estaremos todos mortos”. 
 
IHU On-Line - Que paralelos podemos traçar entre a crise de 29 e a crise atual?

Roberto Camps Moraes - Muitos. Esperemos que esta não seja tão devastadora como aquela. Mas tudo indica que ela provocará uma recessão americana bem mais funda e bem mais longa do que as últimas (2001 e 1991). Em 1929, como Milton Friedman mostrou em seu livro, a crise financeira – corridas aos bancos e queda da bolsa – pegou as autoridades monetárias em meio a uma instabilidade organizacional, sem definição de um novo organograma, e em meio a uma transição geracional e de poder do pessoal dirigente. Também não havia uma liderança do tipo de Benjamin Strong,  que havia presidido por anos o Fed de Nova Iorque e conhecia muito bem o funcionamento dos mercados, incluindo os europeus. A sua morte deixou as autoridades monetárias americanas em um estado de divisão e discussão permanente, o que conduziu a uma total inércia de política. O agregado monetário M1 caiu, em termos reais, em torno de 33%, junto à falência de milhares de bancos. Naquela época, não havia o seguro de depósito que hoje existe; então os depositantes perdiam tudo. As autoridades monetárias, ao permitirem passivamente a contração geral da moeda e do crédito, deixaram que a cadeia de pagamentos no lado real da economia fosse interrompida, contaminando as empresas não-financeiras e levando-as à falência. O auge da crise econômica ocorreu em 1933, quando 25% da força de trabalho estava desempregada. E naquela época não havia seguro-desemprego. O nível de atividade da economia americana só recuperou o nível de 1929 dez anos depois.

Se bem que as trapalhadas regulatórias e institucionais atuais lembram muito as narradas por Milton Friedman – inclusive os argumentos nas discussões –, hoje há uma compreensão generalizada dos envolvidos nas decisões sobre a necessidade de dar uma solução à crise de confiança e restaurar a circulação sanguínea à economia. Como conseqüência da queda geral na renda e no emprego, houve várias rodadas de desvalorizações das moedas, buscando empurrar o desemprego para os seus vizinhos e/ou parceiros comerciais. Além disso, foram estabelecidas tarifas de importação na casa dos três dígitos. Tudo isso contraiu os fluxos de comércio internacional, magnificando ainda mais as quedas no emprego e na renda. Embora a crise atual não deva chegar perto da catástrofe que foi a anterior, se já se faziam difíceis passos adicionais na direção da integração econômica internacional – como um acordo na Rodada de Doha –, provavelmente o cenário ficará mais pesado ainda.

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