Edição 275 | 29 Setembro 2008

Filme da semana - Ensaio sobre a cegueira

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Artplex, do Shopping Bourbon Country.

Ensaio sobre a cegueira

Título original: Blindness
Gênero: Drama
Tempo de duração: 120 minutos
Ano de lançamento (Brasil / Canadá / Japão): 2008
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Don McKellar, baseado em livro de José Saramago
Elenco: Mark Ruffalo (Médico), Julianne Moore (Esposa do médico),
Yusuke Iseya (Primeiro homem cego), Yoshino Kimura (Esposa do primeiro homem cego),
Alice Braga (Garota com óculos escuros), Don McKellar (Ladrão),
Danny Glover (Homem com venda preta no olho), Gael García Bernal (Rei da Ala 3)
Sinopse: Uma inédita e inexplicável epidemia de cegueira atinge uma cidade.
Chamada de “cegueira branca”, já que as pessoas atingidas apenas passam a ver uma superfície leitosa, a doença surge inicialmente em um homem no trânsito e,
pouco a pouco, se espalha pelo país. À medida que os afetados são colocados
em quarentena e os serviços oferecidos pelo Estado começam a falhar as pessoas
passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários.

Uma fábula sobre a perda da autonomia

Autor de obras polêmicas, como O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago tornou-se, em 1998, o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura. Em seus livros, é muito comum a utilização de parágrafos extensos, nos quais se confundem falas, ações, pensamentos, motivações interiores, de uma maneira bastante peculiar, sempre estruturando-se sobre valores a serem discutidos. Em Ensaio sobre a cegueira, não é diferente. No entanto, o que Saramago procura é a precisão narrativa, a mesma que o cineasta Fernando Meirelles procurou na adaptação desse livro para as telas de cinema. Fiel ao romance, nem por isso Meirelles deixa de inserir um ritmo próprio, e é visível que se trata da obra de um cineasta que tem estilo e sabe filmar, hoje em dia, como poucos. Em se tratando, por exemplo, da fotografia e da agilidade de montagem, Ensaio sobre a cegueira não fica nada a dever a seus projetos mais conhecidos, Cidade de Deus  e O jardineiro fiel,  que possuem um raro impacto emocional. Certamente mais frio do que esses dois filmes – que possuem narrativas mais propensas a agradar Hollywood e ao grande público –, Ensaio sobre a cegueira, no entanto, por meio dessa ausência de maior sentimentalismo, configura-se como uma transposição muito adequada da obra de Saramago.

O filme, como o livro, mostra, no início, um homem (Yusuke Iseya) que fica cego quando está em seu carro, em meio a um trânsito caótico, esperando o semáforo dar o sinal verde – como no livro, a situação trabalha com o movimento de uma cidade em que ninguém, na verdade, se enxerga. Este homem acaba sendo levado para casa por um oportunista (Don McKellar, responsável também pelo roteiro), que pretende assaltá-lo. Quando sua mulher chega em casa, ele é levado a um oftalmologista (Mark Ruffalo, que costuma ser um ator sem emoções, mas, por isso mesmo, se encaixa como uma luva nesse papel). Na sala de espera, aguardam um menino de óculos (Mitchell Nye), um senhor de venda preta (Danny Glover) e uma moça de óculos escuros (Alice Braga). O homem acometido pela “nuvem branca” acaba passando a cegueira para o médico e para seus pacientes. No entanto, a mulher do oftalmologista (Julianne Moore) não fica cega. O caso, para Saramago, para os personagens e para o espectador do filme de Meirelles, não tem lógica científica, e este é o principal incômodo. A ciência não pode explicar a cegueira, e os personagens são recolhidos a um manicômio abandonado e imundo. São vigiados por guardas como se fossem criminosos, entre mortes, loucura, angústia e sobretudo violência. Enquanto isso, o governo tenta isolar os principais focos.

Saramago é universal ao não dar nome a seus personagens – Meirelles comenta que o ator Sean Penn, por exemplo, não quis interpretar o médico por considerar que não conseguiria interpretar alguém sem nome –, classificando-os apenas como figuras: o médico, a mulher do médico, o homem da venda preta etc. E a cegueira é um mote para Saramago e Meirelles mostrarem que não existe sujeito autônomo, ou seja, a perda da visão faz com que todos fiquem dependentes uns dos outros e iguais, independente da classe social. Mais do que isso: essa igualdade não traz nada diferente do que seja a realidade, em que há pessoas boas e outras querendo se aproveitar do desespero para praticarem o que praticariam na vida real. Há, sem dúvida, um posicionamento político por trás da história, mas a história de Saramago não deve ser reduzida a um panfleto. Embora Meirelles consiga captar apenas em alguns momentos a ironia do livro de Saramago – e ela está presente do início ao fim, sobretudo em relação aos governantes desorganizados e ao exército, que se considera responsável pelo controle de qualquer situação –, a verdade é que ele consegue conduzir a história a um plano extremamente realista, mesmo diante de uma situação obviamente surreal, irracional. Claro que, sob certo ponto de vista, há, em certos momentos, um tom de fábula no romance que não caberia no filme. No entanto, Meirelles encaixa, nesse tom de fábula, uma visão verdadeiramente apocalíptica, que não perdoa ninguém por meio de sua coleção de imagens fortes – e essas são fiéis ao extremo ao realismo de Saramago em muitos momentos marcantes de seu livro.
Instinto e humanidade

O diretor de fotografia, César Charlone, e o editor, Daniel Rezende, são os mesmos de Cidade de Deus. Ambos conseguem captar, mais do que o mundo real, uma sujeira impactante nos cenários enfocados. O manicômio, por exemplo, para onde são enviadas as pessoas que ficam cegas, é um verdadeiro inferno, mostrando a desorganização que a humanidade chega quando é incapaz de se guiar por si própria. Esse ambiente faz jus ao que a personagem da mulher do oftamologista diz no livro: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos para não viver inteiramente como animais”. Os seres humanos passam a se guiar basicamente pelo instinto. No entanto, a pergunta que é feita por Saramago e Meirelles traduz com competência é a seguinte: será que o ser humano, basicamente, não se governa por instintos, ou seja, que, mesmo podendo enxergar, não continua muitas vezes cego? Por isso, existe no livro de Saramago a perda da autonomia: o ser humano, deparando-se com uma fatalidade inexplicável – ficar cego –, vê que está, como nunca, apegado à materialidade e ao instinto de sobrevivência, de precisar comer e beber água. Esse apego e esse instinto o levam exatamente a perder a autonomia de escolha e enfrentar o que não parece poder evitar, por ser humano: o instinto. Gael García Bernal, na pele de um homem que toma a liderança do manicômio por estar com uma arma, talvez esteja em seu melhor momento no cinema, numa atuação curta, mas de fôlego. Ele é a representação perfeita de que os cegos parecem voltar à Idade da Pedra. E o instinto acaba por despir a todos: os humanos são reduzidos às necessidades fisiológicas e à necessidade de banho.

Um certo maniqueísmo – de se dividir os cegos em grupos de bons e maus – não prejudica, assim como o livro, o filme de Meirelles. Para dar alimentos aos “bons”, os cegos maus exigem favores sexuais das mulheres. As cenas que foram consideradas mais polêmicas no filme de Meirelles se referem a esses detalhes, e algumas foram cortadas da edição final. No entanto, Meirelles mantém o tom agressivo da descrição de Saramago, que fala em “homens com as calças arriadas” que se empurram “uns aos outros como hienas em redor de uma carcaça”, e em mulheres que vomitam umas nas outras. No entanto, perto da agressividade descrita por Saramago, Meirelles é até complacente com o espectador, mantendo apenas o jogo entre luzes e sombras que utiliza ao longo do filme. Neste mundo em trevas e caótico, é essencial a figura da mulher interpretada por Julianne Moore. Ela tem uma atuação extraordinária – o que não é pouco, em se tratando de uma atriz que tem em seu currículo filmes como As horas. Sua figura nada fica a dever para a personagem escrita por Saramago; ela acrescenta muito ao papel: o de uma figura capaz de proporcionar segurança a centenas de homens perdidos. No livro, esta personagem tinha uma força especial, como a do Cão das Lágrimas, que lambe as lágrimas dos cegos – mas no filme aparece apenas de relance. Ela representa um resquício de humanidade e de revolta justa, sendo especialmente expressiva a cena em que adentra uma Igreja com suas figuras religiosas vedadas, no altar e nos vitrais, como se também estivessem cegas. Ela, por enxergar, estaria apta a guiar o próximo em tempos de trevas? Saramago renuncia à idéia de que uma figura masculina deve coordenar todos os movimentos e a história como um herói grego imbatível. Mostra como é insuportável carregar, individualmente, o peso da humanidade. Coloca como fio condutor a mulher, que enfrenta a violência por se encontrar numa situação-limite, como outra personagem da filmografia de Meirelles: a Tessa, ativista dos direitos humanos de O jardineiro fiel. Ambas querem salvar a dignidade e a autonomia da escolha e, mesmo que a sociedade esteja curvada, mostrar que ainda há uma saída. Em Ensaio sobre a cegueira, sobrevive, afinal, quem consegue enxergar o outro sem efetivamente conseguir ver.

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