Edição 275 | 29 Setembro 2008

Cartas de Machado

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André Dick e Patricia Fachin

Analisando as correspondências enviadas por Machado de Assis, a pesquisadora Maria Cristina Cardoso Ribas apresenta outras faces do escritor brasileiro

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, Maria Cristina Cardoso Ribas comenta a pesquisa que resultou no livro recém lançado pela Editora PUC-Rio/7 Letras: Onze anos de correspondência: os machados de Assis. Em busca de trazer um diferencial para os leitores de Machado, a pesquisadora dedicou-se à leitura das correspondências machadiana. “Se cartas são para rasgar, para ler, responder ou ignorar, o certo é que juntam dizeres e palavras por dizer”. Nessa teia do dizível e indizível, Maria Cristina, apresenta “um outro sujeito de Machado”, “alguém que provavelmente deveria se construir no discurso epistolar, na correspondência com os amigos e companheiros de jornada”.

Maria Cristina Cardoso Ribas é doutora em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ela atua nos departamentos de Comunicação Social e Letras. Também é docente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde leciona Teoria da Literatura.

IHU On-Line - Professora, como e quando surgiu a idéia do seu trabalho?

“Este primeiro, intensivo e solitário contato com o Arquivo foi inesquecível: o fato de ter em mãos folhas amareladas pelo tempo, a materialidade do traço,da letra machadiana, ora nítida, ora trêmula, chegando a esgarçar-se  nos momentos de crise existencial e moléstia física,é algo que um estudioso de literatura e cousas humanas,sobretudo se apaixonado por Machado,  sempre sonhou experimentar.”
(RIBAS, 2008, p.22)

Maria Cristina Cardoso Ribas - Essa é uma história que começou em 2000. Por indicação do Departamento de Letras da PUC-Rio, fui conhecer o Arquivo Machado de Assis, no Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras, Arquivo que na época estava em construção. Fiquei fascinada com a possibilidade de vasculhar manuscritos, rascunhos, bulas de remédios, fotos, e fiz uma imersão de quatro anos para tomar os primeiros contatos com os documentos, os quais chamamos de fontes primárias. No ambiente especialmente preparado para preservação dos manuscritos que já tinham passado pelo processo de assepsia, temperatura muito baixa, lupa e luvas, me debrucei, sem pressa, na experiência minuciosa da leitura. Pude me defrontar com a letra, de próprio punho – elegante, desenhada, esgarçada e trêmula, iluminada pelas rasuras e manchas de mofo -, daquele que eu conhecia somente através de livros impressos. Depois foram mais três anos para escrever, reescrever, rasurar, finalizar o que sempre parece interminável.

IHU On-Line - Por que um livro sobre cartas?

“Ao primeiro olhar a letra de Machado é fina, o talhe, elegante. Mas olhar outra vez significa perceber a materialidade do traço. Cada risco parece acompanhar os dedos trêmulos do missivista, quando aquele ponto-instante da carta coincide com relato de moléstia, com estar acometido de algum mal.”
(RIBAS, 2008: 28)

Maria Cristina Cardoso Ribas - Durante a imersão no Arquivo, eu precisava decidir com quais documentos iria trabalhar. Fazer um recorte em meio a tantas informações foi tarefa delicada. Mas já sabia que qualquer leitura que eu empreendesse seria uma força a mais em diálogo com a produção ficcional machadiana. Pensei comigo mesma: em que “lugar” posso encontrar um diferencial, uma contribuição, ainda que mínima, para os leitores de Machado? Como chegar ao leitor especialista e ao leitor simplesmente interessado em sua obra e em sua atuação no Rio de Janeiro dos oitocentos? E, na profusão de tantas leituras sobre o autor de Dom Casmurro, que tipo de reflexão seria útil eu desenvolver, ainda mais considerando a oportunidade de ter diante de mim aquela oferta de conhecimento?

Foi assim que cheguei até a correspondência machadiana. Se cartas são para rasgar, para ler, responder ou ignorar, o certo é que juntam dizeres e palavras por dizer; que mentem, encobrem, desvelam... E quem sabe eu poderia encontrar, nessa teia dizível/indizível, algo que iluminasse os estudos sobre um autor tão significativo na formação da nossa cultura, uma voz tão presente na literatura brasileira. E com uma ressalva: eu me propus a reler as cartas com o objetivo não de fazer uma edição crítica ou uma coletânea de missivas transcritas para “facilitar” a sua leitura. Eu queria conhecer, se fosse possível, um outro sujeito Machado, alguém que provavelmente – achava eu – deveria se constituir no discurso epistolar, na correspondência com os amigos e companheiros de jornada. Enfim, uma leitura interpretativa. Mesmo porque a carta é um meio de nos abrirmos ao olhar alheio, à alteridade, de acessarmos e instalarmos o nosso correspondente, como diz Michel Foucault  (1969), no lugar do Deus interior. Eu diria, uma espécie de lampejo, um saudável insight que impede o afundamento no lago narcísico em que o egocêntrico está sempre prestes a mergulhar.

IHU On-Line - O que Machado revela nestes onze anos de correspondência?

“(...) ainda que a letra de Machado no texto das cartas seja desenhada através de uma pena ora firme, ora esgarçada, clara ou reticente, e sempre assinada por um missivista afetuosíssimo e diplomático que parece controlar muito bem o que diz, ainda assim a prática usual é ignorar o legível para dedicar-se a decifrações do improvável, porquanto centradas no ego do leitor.”
(RIBAS, 2008, p. 30)

Maria Cristina Cardoso Ribas - Você foi justo ao ponto, porque esta foi a minha primeira grande questão. Ou dilema. Nos meus (des)caminhos de leitura, logo percebi que Machado frustrava a leitura curiosa, rastreadora de revelações da intimidade do Senhor, do admirador, compadre e amigo Machado de Assis. Ou seja, as cartas “não diziam” ou melhor, “diziam nada”. Ou então falavam daquilo que já era do conhecimento do destinatário. As informações novas eram meramente formais: datas, nomes, avisos; ou pedagógicas: conselhos, ânimo, desabafos de doenças. E essa foi, para mim, a mais importante revelação. A discrição de Machado e o seu caráter declaradamente anti-polemista levam-no à omissão de dados que reverberariam em confissões da vida familiar, que questionariam o estigma de absenteísmo político, trariam o tema da tão falada esterilidade, enfim, do que favorecesse, por parte do leitor, a relação projetiva vida biográfica e produção literária. Todas estas são expectativas que Machado missivista desdenha ou simplesmente ignora, porque em onze anos de correspondência, ele passa ao largo destas questões. E este digno – e, completo, estratégico – silêncio de Machado sobre eventuais curiosidades ou provocações acerca da “personalidade literária” acaba nos apontando sua irrelevância para o estudo da literatura e abrindo espaço para outras – e mais produtivas – leituras. Ao ler literatura, ao ler a correspondência machadiana, é preciso, ao invés de decifrar signos, produzir sentidos a partir dos jogos discursivos do narrador e do missivista. Assim, voltamo-nos para considerar os processos reiterados da escrita nas cartas, o que inclui: chamar a atenção sobre si, sobre o próprio corpo, identificar as modulações discursivas, as omissões, pressuposições, intertextualidades, as negativas. Enfim, fazer uma leitura pelo avesso e entender que o destinatário explícito na epígrafe das cartas nunca é nomeado e como tal transborda-se a si mesmo, ao mesmo tempo em que aponta para outros destinatários não nomeados, os quais, por sua vez, podem abarcar desde escrever para si mesmo, para a sociedade da sua época, para a posteridade. Ou, ainda, escrever para reforçar os vínculos independentemente do conteúdo da mensagem, escrever porque era uma prática social vigorosa no século XIX, escrever para o outro repetindo o que diria para si mesmo, enfim, marcar, no registro da escrita, o exercício da memória e assim eternizar-se, multiplicar-se – na contramão da propalada esterilidade. 

IHU On-Line - Que perfil de Machado de Assis nós podemos encontrar em seu livro?

Maria Cristina Cardoso Ribas - Um sujeito cético, constituído por constantes auto-exames e sem auto-complacência; alguém que reconhece a dimensão e os limites de ser epilético no século XIX, sem remédios ou atenuantes que não seja aprender a lidar com “esse mal” e que declara ter, no Miguel Couto, um médico de alma, que lhe trouxe a graça, embora não o exima da “natureza madrasta”; um escritor que trabalhava em Ministérios e Secretaria de Ministérios – no Império e na República -, que transitava com maestria na elite intelectual dos oitocentos sem alardear sua origem na pobreza do Morro do Livramento como status de alavanca social. Alguém com habilidade diplomática, com uma consciência invejável acerca de si próprio, de seus companheiros, do contexto histórico que atravessou, dos jogos sociais e, mais que tudo, da matéria humana. Um homem que acredita nas forças curadoras – e transformadoras – das musas, da poesia, da arte.

IHU On-Line - Qual a importância do “bruxo do Cosme Velho” para o leitor do século XXI?

Maria Cristina Cardoso Ribas - Conforme entendo, grandes autores devem ser encarados não somente pelo que representam isoladamente, mas pela tradição que podem vir a inaugurar, ou seja: devem ser encarados como práticas discursivas que produzem não apenas a sua própria obra, mas a possibilidade de formação de outros textos. E isso sem se tornar um avatar, uma vez que se dissolve na multiplicidade de vozes que ecoam em novas formulações. Neste sentido, Machado é polifônico, e por isso podemos encará-lo como formador de novas tradições, o que é de suma importância para a cultura brasileira, para a nossa formação discursiva. Claro que para isso é fundamental ouvi-lo, conhecê-lo, agüentar (quando se reconhece) os golpes que desfere nas hipocrisias sociais, transitar por sua obra sem apenas cumprir formalmente uma obrigação didática ou mandato social. Penso que as contribuições de Machado são tantas, que o melhor é considerar sua leitura um convite para que cada leitor possa construir e herdar algum tipo de estímulo, conhecimento, inspiração, auto-exame.

Trecho da Carta de Machado a Magalhães de Azeredo (14-I-1894)

“Quero dar-lhe ainda outro conselho: é o jus dos velhos, - ou dos mais velhos, se me permite a vangloria. Não duvide de si. Receio muito que este sentimento lhe ate as asas. Hade de sempre haver quem duvide de seu talento; deixe essa tarefa a quem pertence par droit de naissane. O seu direito e dever é crer nele e mostrá-lo. Não descreia das musas; elas fazem mal às vezes, são caprichosas, são esquivas, mas entregam-se nas horas de paixão, e nessas horas os minutos valem por dias.”
Machado de Assis

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