Edição 275 | 29 Setembro 2008

Grande sertão: veredas, um universo de alusões

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André Dick e Patricia Fachin

Por articular diferentes temporalidades num mesmo texto e a mesma subjetividade num mesmo personagem, Guimarães Rosa criou narrativas temporalmente complexas e modernas, considera Susana Kampff Lages

“Guimarães Rosa soube tirar partido das nuances da saudade luso-brasileira, que envolve uma constelação de representações afetivas e ideativas e que tem uma longa tradição na literatura e na cultura portuguesa”, avalia a pesquisadora Susana Kampff Lages. Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela ressalta que “todo o escritor é forte na medida em que mergulha fundo no seu próprio universo cultural e dele tira a matéria a partir da qual molda sua própria obra”. Em Grande sertão: veredas, destaca, “toda a ação do romance se constrói como produto da memória do narrador-personagem, que revê o passado, mas sem deixar de contemplar o momento presente e o futuro”.

Susana Kampff Lages, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), é graduada em Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-Rio), mestre na mesma área, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutora em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Entre suas obras, citamos Walter Benjamin: Tradução e melancolia (São Paulo: Edusp, 2002) e João Guimarães Rosa e a saudade (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003).

IHU On-Line - De que modo podemos interpretar a saudade em Guimarães Rosa? Ela representa uma característica do povo brasileiro?

Susana Kampff Lages - Não tão diretamente. Ela traduz um modo singular e subjetivo de lidar com o tempo. Guimarães Rosa soube tirar partido das nuances da saudade luso-brasileira, que envolve uma constelação de representações afetivas e ideativas e que tem uma longa tradição na literatura e na cultura portuguesa. Criou narrativas temporalmente complexas e modernas por articularem diferentes temporalidades num mesmo texto ou até, em uma mesma subjetividade, num mesmo personagem. A narrativa autobiográfica de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, é paradigmática da forma com que Rosa utiliza a saudade como operador de diferentes níveis temporais. Toda a ação do romance se constrói como produto da memória do narrador-personagem, que revê o passado, mas sem deixar de contemplar o momento presente e o futuro. Nessa simultânea articulação dos tempos opera a saudade rosiana.

IHU On-Line - Os personagens de Guimarães Rosa possuem um viés melancólico na maneira como são construídos? Se sim, de que modo ele se apresenta através da elaboração de imagens?

Susana Kampff Lages - A suave melancolia rosiana se traduz, sobretudo, em imagens recordadas, imagens acionadas por uma memória que se quer absoluta, integral, mas que sabe da impossibilidade de recobrir todo o passado. A melancolia rosiana resulta, em parte, dessa necessária falha da memória. Em Grande sertão: veredas, fazem parte desse universo imagético, como já observou Cavalcanti Proença, as imagens ligadas à Canção de Siruiz, a imagem da Nossa Senhora da Abadia, do manuelzinho-da-crôa, a pedra do Araçuaí, a névoa que acompanha algumas aparições de Diadorim. Cada uma dessas imagens constitui uma constelação de sentidos e um universo de alusões únicos, que se abrem a inúmeras interpretações.

IHU On-Line - Há uma religiosidade nos personagens de Guimarães? Como avalia uma certa visão metafísica que ele estabelece com os seus personagens por meio da visão do sertão?

Susana Kampff Lages - Guimarães Rosa era leitor e estudioso de textos das diferentes tradições religiosas, tradições que se fundam em textos complexos, que compõem narrativas muitas vezes paradoxais. Essa complexidade está ligada à forma com que esses textos são construídos, ao trabalho de linguagem que nelas se faz, calcado, sobretudo em representações de caráter antitético quando não paradoxal.

IHU On-Line - Guimarães Rosa possui uma mitologia extremamente pessoal, mas dialoga com autores estrangeiros, como James Joyce. Há, nele, uma tradução de leituras de vanguarda, por meio de sua linguagem experimental?

Susana Kampff Lages - É pertinente essa aproximação com Joyce, do ponto de vista da singular linguagem criada por Guimarães Rosa, uma leitura que foi feita pelos poetas do concretismo brasileiro; mas a obra de Joyce não pode ser considerada a única fonte do caráter enigmático e lúdico de sua linguagem. Há muitos outros fios da tradição literária que podem ser invocados, explicitamente indicados por Rosa, entre outros, na famosa entrevista que deu ao crítico alemão Günter Lorenz: Goethe, Dostoiévski, os textos de diferentes tradições místicas.

IHU On-Line - É possível entender alguns elementos do Brasil a partir das narrativas de Rosa? Como aparecem, nelas, as figuras do jagunço, do homem do interior do país, com sua linguagem e costumes, além das lendas, do folclore, de um universo também fantástico? 

Susana Kampff Lages - Todo o escritor é forte na medida em que mergulha fundo no seu próprio universo cultural e dele tira a matéria a partir da qual molda sua própria obra, acrescentando posteriormente elementos de outras culturas e tradições com as quais entra em contato seja em sua experiência de vida, seja através de leituras.

IHU On-Line - Existe uma predileção de Rosa pelo universo da infância, mostrando, por exemplo, em contos, sobretudo, a ligação entre pais e filhos?

Susana Kampff Lages - Freud, leitor privilegiado, entre outros, da tragédia grega, de Shakespeare  e dos autores clássicos alemães, mostrou que em toda a família há uma trama, um romance que se tece, repousando sobre segredos, tabus e atavismos familiares; Guimarães Rosa, que era leitor de Freud, soube aproveitar literariamente as intuições freudianas: um exemplo magistral, para além de toda a trama familiar de Riobaldo, é o enigmático conto A terceira margem do rio, em que o pai decide sem maiores explicações abandonar a família e ir morar numa canoa, permanecendo assim simultaneamente próximo e distante do filho, que se contagia com a loucura não falada, mas transmitida pelo pai.

Saiba mais...

>> A Profa. Dra. Susana Kampff Lage é responsável pela palestra A construção de imagens em Rosa. Confira as informações abaixo. 
Dia: 03-10-2008
Horário: 9h às 12h:
Palestrante: Profa. Dra. Susana Kampff Lages – UFF
Prof. Dr. Benedito Nunes – UFP
Mediadora: Profa. Dra. Maria Helena Campos Bairros – Unisinos
Local: Anfiteatro Pe. Werner

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