Edição 275 | 29 Setembro 2008

Machado “nunca foi um lutador de praça pública”

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André Dick e Patricia Fachin

Para o crítico literário gaúcho Luis Augusto Fischer, Machado de Assis se tornou um grande autor por ter escapado da armadilha nacionalista

“Uma das coisas que Machado mais fez foi acabar com clichês de representação”, disse o escritor Luis Augusto Fischer, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Mas isso, explica, não quer dizer que o autor brasileiro não tenha criado personagens que representam o Brasil. E ele exemplifica: “Brás Cubas é um retrato da elite corrupta, educada, que rejeita o trabalho, mas é simpática; José Dias, o personagem de Dom Casmurro, é um tipo humano encontrável no Brasil ainda hoje, o puxa-saco que fica em volta do poder para angariar simpatias e favores”. Segundo Fischer, a literatura de Machado se consagra, justamente, porque ele “conseguiu pensar na ficção, porque realizou ficção de grande maturidade e alcance, porque foi um grande leitor dentro da sua ficção, reprocessando a tradição ocidental dentro de sua obra”.

Fischer é mestre e doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde 1984, é professor adjunto de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFRGS. Entre seus livros, citamos Contra o esquecimento (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001), Para fazer diferença (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002), Literatura gaúcha – história, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI, 2004), De ponta com o vento norte (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004), Quatro negros (Porto Alegre: L&PM, 2005) e Machado e Borges (Porto Alegre: Arquipélago, 2008).

IHU On-Line - Como o senhor aproxima o universo fantástico de Borges com o de Machado de Assis, autores basilares para entender a literatura latino-americana, e a influência que ambos tiveram de Edgar Alan Poe?

Luis Augusto Fischer - As aproximações são ao mesmo tempo muitas e poucas, conforme o ângulo da leitura. De um lado, do lado escasso, daria para dizer que os dois têm poucas relações, porque Borges nunca leu Machado (nem o contrário, por motivos de tempo: Borges nasceu em 1899, e Machado faleceu em 1908) e porque afinal os dois trataram de temas bastante diversos. Pelo lado abundante, pode-se dizer muita coisa, como eu tentei dizer num ensaio de 90 páginas, em meu livro Machado e Borges: cada um deles precisou discutir com os nacionalistas de seu tempo; praticaram crítica e criação; os dois foram leitores muito costumeiros da tradição inglesa, quando a fonte francesa era mais prestigiosa; e assim por diante. Sobre a influência de Poe: não tem dúvida de que Machado e Borges leram Poe e foram tocados por sua obra. Em Machado, que traduziu seu poema “O corvo”, creio que se nota uma marca em alguns contos, cuja estrutura - que para Poe devia fazer convergir todas as ações e impasses para um fim estrondoso, revelador - relembra as de Poe, e a mesma coisa se pode dizer de Borges. Por outro lado, vale dizer que nem Machado nem Borges fizeram apenas contos assim; na obra de ambos há bastante variedade formal. Os dois sul-americanos, além disso, devem ter-se beneficiado do modo como Poe registrou a vida das multidões e dos homens isolados, fenômenos da cidade moderna, massiva, terrível e ao mesmo tempo fascinante.

IHU On-Line - Machado e Borges possuíam uma visão a respeito do nacionalismo. Quais as semelhanças e diferenças, em relação a este tema, entre ambos?

Luis Augusto Fischer - Em linhas gerais, ambos rejeitaram a idéia de que para ser um escritor nacional (brasileiro ou argentino) fosse imperativo o sujeito escrever sobre paisagem ou figuras locais. Para os dois, o que importava era ser bom escritor, “ter um sentimento íntimo de seu tempo e lugar”, nas palavras de Machado, mas tratando de qualquer tema, local ou não local. Foi assim que os rejeitaram o indianismo e o gauchismo, respectivamente, como obrigatórios.

IHU On-Line - De que forma Machado e Borges conseguem se tornar autores tão centrais, mesmo sendo autores latino-americanos, que costumam ficar um pouco esquecidos, na periferia? Nesse sentido, quais os autores que mais os influenciaram e como eles interferem na formação da literatura dos países a que pertencem?

Luis Augusto Fischer - Eles se tornaram grandes autores, capazes de falar para qualquer leitor, justamente por terem escapado da armadilha nacionalista. Não é que não tenham tratado de temas e questões de seu tempo e lugar - Machado falou, e muito, de figuras da sociedade escravista do Segundo Império brasileiro, como o agregado ou como o favor, tanto quanto Borges discorreu, e muito, sobre sua Buenos Aires natal, sobre a cidade antiga, derrubada pela modernização. A questão, portanto, é menos de saber quem os influenciou, e mais de saber como eles entenderam essa necessidade de superar o âmbito doméstico. Quanto a leituras, eles tiveram em comum os céticos e ironistas franceses (Montaigne, Pascal, Voltaire, em doses diferentes) e os ensaístas ingleses do século XVIII e XIX, além de Shakespeare.

IHU On-Line - Os personagens de Machado representam uma identidade brasileira?

Luis Augusto Fischer - Depende do que se entende por “identidade”. Creio que uma das coisas que Machado mais fez foi acabar com clichês de representação. Não quer dizer que não tenha personagens que, vistos de modo não trivial, representam o Brasil: Brás Cubas é um retrato da elite corrupta, educada, que rejeita o trabalho, mas é simpática; José Dias, o personagem de Dom Casmurro, é um tipo humano encontrável no Brasil ainda hoje, o puxa-saco que fica em volta do poder para angariar simpatias e favores.

IHU On-Line - De que modo se entrelaçam, na obra de Machado, o conto, a crônica e o romance, aliando esses gêneros a uma influência de idéias filosóficas de sua época, assim como da psicologia e de idéias darwinistas, cientificistas?

Luis Augusto Fischer - Machado de fato praticou literatura como um comentário às idéias de seu tempo, e portanto é verdade que em seus contos e romances, assim como nas crônicas, vamos encontrar o debate sobre darwinismo (O alienista é um exemplo). O Machado maduro, em todos os casos, cultivou um agradável ceticismo e um saudável materialismo.

IHU On-Line - O seu posicionamento crítico, no texto “Instinto de nacionalidade”, é adequado ao que ele trabalha em sua obra, assim como sua posição sociopolítica, em relação, por exemplo, ao abolicionismo?

Luis Augusto Fischer - Sobre a relação entre o Machado cidadão e o Machado escritor, por exemplo no que se refere ao tema da abolição da escravatura, pode-se dizer que há bastante coerência. Ele nunca foi um lutador de praça pública, assim como não foi um tribuno de qualquer causa. Era cético mesmo, na vida e na literatura; tenho a impressão de que ele apreciava bastante D. Pedro II, e por isso não era antimonarquista, nem ardoroso defensor da República. Quanto ao escravismo, está claro que ele repudiava, mas antes dos 40 anos, sua ficção exibe escravos conformados à sujeição, gente de baixo que sonha em manter-se em baixo mesmo, sem questionar o poder, traços que desaparecem depois de 1880.

IHU On-Line - Por que, na sua opinião, Machado é visto como o grande escritor brasileiro, pelo menos na prosa? O que ele possui para que seja lido geração após geração, em comparação com outros escritores, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector etc.?

Luis Augusto Fischer - Porque conseguiu pensar na ficção, porque realizou ficção de grande maturidade e alcance, porque foi um grande leitor dentro de sua ficção, reprocessando a tradição ocidental dentro de sua obra. A relação com pósteros é difícil de avaliar e depende de caso a caso. Com Clarice Lispector  não vejo ponto de contato relevante; com Guimarães Rosa há em comum pelo menos uma enorme vontade de fazer obra superior ao seu tempo (e conseguir); com Graciliano, compartilha Machado uma profunda descrença em tudo, mas em Machado isso se disfarça em ironia, ao passo que em Graciliano vira amargura.

Leia Mais...

>> Luis Augusto Fischer já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.
Entrevista:
“Cem anos de solidão foi uma revelação”. Edição 221, intitulada Cem anos de solidão. Realidade, fantasia e atualidade: os 40 anos da obra Gabriel García Márquez, de 28-05-2007.

Saiba Mais...

>> Luis Augusto Fischer está participando do Seminário Nacional de Literatura e Cultura Brasileira: Machado e Rosa, no dia 01-10-2008.
Minicurso: Machado e Borges
Prof. Dr. Luís Augusto Fischer – UFRGS
Local: Sala 1D107
Horário: 14h às 18h30min

Mesa-redonda: Diálogos com Rosa
Participantes:
Profa. Dra. Kathrin Rosienfield - UFRGS
Profa. Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy - UFRGS
Prof. Dr. Luís Augusto Fischer – UFRGS
Mediador: Prof. Dr. Cláudio Elmir – Unisinos
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Horário: 19h30min às 22h.

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