Edição 275 | 29 Setembro 2008

Uma carta a Guimarães Rosa

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Marcus Motta

Convidado para participar desta edição especial da IHU On-Line sobre as obras de Guimarães Rosa e Machado de Assis, Marcus Alexandre Motta, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apresenta, no texto a seguir, sob a forma de carta escrita a Guimarães Rosa, o pensamento elaborado a partir da fala de Riobaldo, o jagunço narrador de Grande sertão: veredas, obra-prima do escritor mineiro.

Motta é graduado em História, pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutor em História, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre suas obras, destacamos Desempenho da leitura – Sete ensaios de Literatura Portuguesa (Rio de Janeiro: Sette Letras, 2004).

Uma carta a Guimarães Rosa
Marcus Alexandre Motta

19 de setembro de 2008

Amigo Rosa,

Eu me havia esquecido de mencionar no telefonema anterior algumas frases que sempre me põem em arrepios. Logo que coloquei o telefone no gancho, reparei que não havia tratado deste assunto com você. Sei que não me disse nada quando telefonei; porém pouco importa. Escrevo para perguntar qual seria a sua opinião sobre algo que penso acerca de algumas falas do Riobaldo.

Mas antes devo mencionar que ainda não descobri o porquê de não creditarem a você o título de pensador de uma terra ainda nova. Em suas viagens ao sertão das Minas Gerais, encontrou a língua da aventura, o nosso português, ainda a nominar as coisas e os acontecimentos. Não sei mesmo qual é o motivo de não enxergarem, em Grande sertão: veredas, essa tarefa filosófica. Será que não conseguem admitir que a aventura filosófica seja herdada pela literatura, aqui neste lado do Atlântico? Não percebem que contar, o verbo da aurora do pensamento, seja, no livro, o valor e o alcance das suas linhas?

Irritante, não? Mas deixemos todos descasarem nas suas redes de eficácia, sonhando com buquês de realidade. Tentei falar sobre isso quando liguei. Mas só ouvi a minha respiração ressoando no aparelho.

Não perderei tempo, pois é de assunto decorrente que quero tratar com você. Em certo momento, Riobaldo declara, se não me falha a memória: “eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada.”

Riobaldo atravessa “as coisas”. Isso é magnífico! Percebo de imediato que ele atravessa; logo, não as conhece, por ser incapaz de medir suas resistências. Apresento tal raciocínio porque não consigo compreender a idéia de conhecimento sem pressupor a noção de resistência. A sensação é a de que só conhecemos o que nos resiste. Será que você está de acordo? Mas isso me leva a perceber que Riobaldo atravessa “as coisas” por ser capaz de reconhecê-las como coisas percorridas.

Fiquei a meditar sobre essa frase muitas vezes. Guimarães, fico sempre me sentindo um imbecil quando quero compreendê-la. É por este motivo que escrevo esta carta. Deve estar pigarriando após sorrir na confortável poltrona de couro preta.

Mas vamos lá, o correio se apressa ante a lerda escrita. Se Riobaldo as atravessa, o faz dizendo: no meio da travessia não vejo! Penso que o não vejo! apresenta-se reconhecendo um vazio que se atravessa, as coisas. As coisas, algo vazias, algo sem resistência, é um tipo de trama da idéia dos lugares de saída e de chegada. Até aqui vai, não é?

Mas Riobaldo diz antes disso: só estava era entretido... Entretido?! Tal palavra me faz pensar. Agora quase o vejo se deliciar, como se dissesse: aonde ele quer chegar? Não consigo deixar de refletir que você tenha nos colocado um problema, qual seja: o de que estamos a viver um acontecimento permeado de transes de divertimento quando contamos ou nos contamos.

Isso quer dizer — espero que não tenha deixado já a carta de lado e foi caminhar; se pensou nisso, espere. Isso quer dizer que, na minha mente, você descobriu ser a verdade impotente como razão das coisas, nesse chão imaturo e vasto. Será que você vai concordar com esse pensamento? Se estiver atento às linhas que escrevo com total admiração, aceite essa minha exclamação: Rosa, você descobriu que a verdade, aqui, é uma modalidade de sentimento!

Uma modalidade de sentimento, sim! Agora deve estar dando atenção ao que escrevo, será? Modalidade de sentimento do eu atravesso as coisas, de Riobaldo. E, se assim for, torna-se útil para cada um de nós, brasileiros, compreender que o eu atravesso as coisas esteja beirando o modo de agir comum dos homens nessa terra ainda nova, confeccionando a nossa história natural fictícia.

Sei que estou a filosofar, mas não consigo me impedir de ver que você fez o mesmo quando escreveu o Grande sertão: veredas. Se as nossas vidas são um atravessar as coisas, como Riobaldo ensina, é porque qualquer um vive as coisas, aqui, atravessando-as; algo bastante próprio a uma modalidade de sentimento, aceita?

Quero registrar que se outros me lessem, agora, me tomariam com louco e não acreditariam que eu posso estar escrevendo isso para você. Mas eles não crêem em fantasmas. Eu sim, e em todas as suas fantasmagorias. Continuo. Para piorar, Riobaldo fala: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia”. Bem, no meio da travessia era o que na sua fala anterior o não vejo se apalavrava.

É, e ainda não querem dar a você o título de pensador de nossa terra ainda nova. Deixemos de lado os outros, eles são cansativos com as suas certezas. Quando leio aquela fala de Riobaldo, percebo (tomara que aprove) que ele, ou você, quem sabe, está nos dando uma pista de que o real é compreendido na ação da consciência quando vive o sentimento de atravessar.

É fabuloso! Se o real só se dispõe para gente no meio da travessia, é possível pensar que nada se pode obter dele que o faça ser conhecido. Melhor: o único conhecimento que se tem dele é, prontamente, o não vejo! Mas isso é reconhecê-lo, destituindo-o de esclarecimento e sentindo-o.

Devo comentar, antes de prosseguir, que é quase possível que você não tenha sido lido com a atenção merecida. Como não houve ninguém, até agora, e não falo de mim, interessado em tomar suas linhas e criar uma bela e rigorosa teoria sobre a nossa cultura?

Sei que não dá confiança para isso, é um artista e, logo, ri dos que não fazem, pois fez. Em outro momento, Riobaldo aclimata: “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Inacreditável frase. De alguma maneira percebo que você está nos ensinando que o pensamento, nessa terra moça e vasta, evita acordar com qualquer limite. Penso que você fez Riobaldo falar que nenhuma limitação é possível ao pensamento, pois lhe falta a trama singular que o lugar opera.

Está cansado. Levante os olhos e descanse o nariz dos seus pesados óculos, pois vou continuar. Depois, rasgue a carta com desprezo ou zelo por mim. Quer dizer que você poderia ter pensado que nesse nosso solo o lugar é um elemento com poder menor que o pensamento? Isso seria ótimo, se assim pudesse ser e aprendêssemos.

Em outro momento, Riobaldo fala que o sertão está em toda parte. Como foi possível a você descobrir a lei formal de nossa cultura? Penso nela sempre. Só chego à seguinte reflexão: a razão é porque o sertão se faz surgir sem capturar o lugar de sua sombra. Vou melhorar o raciocínio. Tal condição expressa ser o sertão o desatino da própria imagem; ou seja: suas coordenadas são as mesmas do pensamento, parindo-se para incorporar qualquer idéia dos lugares de saída e de chegada e atravessando as coisas.

Dessa você vai gostar, caso não, faça o que deve fazer, rasgue. Ora, o Grande Sertão: Veredas é o contar, tornado balanço do que se conta na aflição sentimental do vazio que se atravessa, sagrando a travessia do pensamento numa terra ainda nova. Algo como trabalhar as potências do contar em vão. Ali, aqui é mais correto, onde repousa a aurora do pensamento, na qual o contar ganha um infinitivo geral do conhecimento no sertão de todas as partes, o reconhecer apenas e só é a nossa modalidade de pensamento: eu atravesso as coisas.

Não vou demorar mais. O que tenho a dizer foi dito. Outras cartas escreverei. Mas prefiro telefonar para você, mesmo que não me atenda e nunca fale. Sinto a nossa distância. Eu aqui a reclamar que ninguém quis herdar a sua tarefa. Pressinto que estará um pouco irritado pela comum idéia sobre o seu livro. Confio que não esteja comigo, após ler essa carta.

Gostaria de me dirigir a você de maneira mais direta, sem apelar para distância. Mas como ainda não me é possível, recebo um fundo da leve tristeza do entardecer. Creio até que foi nessa hora do dia que Riobaldo conta.

Gostaria de chegar próximo de você. Chegar e caminhar ao seu lado sem falar, apenas atuando na cena desta proximidade. De qualquer forma, aqui estão as minhas palavras. Algo como uma promessa de me manter lendo.

Atenciosa e abusivamente, rasgue.

Marcus Alexandre Motta


Leia Mais...

>> Marcus Motta já participou de outras edições da IHU On-Line. Confira uma entrevista e um artigo dele, no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Entrevista:

* Antônio Vieira: um jesuíta milenarista. Edição nº 196, A globalização e os jesuítas, de 18-09-2006.

Artigo:

• Conversando com Vieira. Edição nº 244, Antônio Vieira. Imperador da Língua Portuguesa, de 19-11-2007.

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