Edição 275 | 29 Setembro 2008

Guimarães Rosa, um amante do saber

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André Dick e Patricia Fachin

A literatura rosiana é filosófica, afirma Luiz Rohden

Para o professor Luiz Rohden, a metafísica da língua de Guimarães Rosa “expressa a vida que não se deixa açambarcar pela razão pura nem pela lógica matemática, mas recorre à intuição, à inspiração ‘sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão’”. Segundo ele, trata-se de uma linguagem que articula elementos realistas com irracionais, literais com metafóricos. Grande sertão: veredas é um romance metafísico porque tenta “explicitar a vida de modo totalizante e é tramada por uma totalidade movente onde o particular e o universal, o divino e o humano, o jagunço e o doutor se encontram e instauram uma terceira realidade, uma nova meta-realidade”, define.

Rohden é graduado em Filosofia, pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, Belo Horizonte, e mestre e doutor na mesma área, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente do curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, ele também é editor da revista Filosofia Unisinos. Confira a seguir a entrevista concedida à revista IHU On-Line, por e-mail.

IHU On-Line - Na sua visão, como se desenha uma aproximação de Guimarães Rosa com o conceito de metafísica, por meio da relação entre seus personagens (num romance como Grande sertão: veredas) e do sertão no qual vivem?

Luiz Rohden - Em entrevista concedida a G. Lorenz,  Guimarães declarou: “considero a língua como meu elemento metafísico [...] o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha [...] isto provém do que eu denomino a metafísica da minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica”. Estas expressões retratam uma concepção própria de metafísica desenvolvida por ele que pode ser sintetizada na pretensão de Riobaldo, no Grande sertão: veredas: “eu queria decifrar as coisas que são importantes”.

Seu labor literário é metafísico à medida que os seus livros eram, como ele mesmo dizia, “simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida”, espelhado na clássica questão da metafísica tradicional “o que é o ser?”. Sua metafísica da língua expressa a vida que não se deixa açambarcar pela razão pura nem pela lógica matemática, mas recorre à intuição, à inspiração “sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana”. Trata-se de uma linguagem metafísica que articula, conjunta e coerentemente, elementos realistas com irracionais, literais com metafóricos, de modo que nela não reina mais a lógica binária, dualista, mas a lógica do terceiro intuído e incluído.

Grande sertão: veredas constitui uma trama metafísica, pois nele Riobaldo narra sua vida, mas espelha e ecoa o humano, porque o objeto em questão é universal, retratado em temas como amor e ódio, vida e morte, tempo cíclico e tempo linear. Trata-se de uma metafísica porque procura, na verdade, explicitar a vida de modo totalizante e é tramada por uma totalidade movente onde o particular e o universal, o divino e o humano, o jagunço e o doutor se encontram e instauram uma terceira realidade, uma nova meta-realidade que não é captável para tipos como João Bexiguento, mas apenas para aqueles que se ocupam em decifrar as coisas que, de fato, são importantes e pelas quais vale a pena viver.

IHU On-Line - É possível entender alguns elementos do Brasil a partir das narrativas de Rosa? Como aparecem, nelas, as figuras do jagunço, do homem do interior do país, com sua linguagem e costumes, além das lendas, do folclore, de um universo também fantástico?

Luiz Rohden – Claro. A própria formação da identidade do Brasil e do brasileiro pode ser rastreada em sua obra à medida que retrata e reflete sobre os conflitos entre a cidade e o sertão, entre a civilização e o dito atraso, entre o doutor e os jagunços. Estas polaridades são tomadas e refletidas em sua obra segundo o viés da dialética dialógica sem que haja supremacia de um ou de outro dos pólos.

Além disso, os protagonistas – ou heróis que são uma espécie de anti-heróis – na obra de Rosa são os simples, os cegos, os pobres, os loucos, as mulheres, os jagunços, as crianças, aqueles que possuem vez e voz.

Retomando os costumes, as lendas, o folclore, Rosa reflete sobre os conflitos morais do Sertão. Embora não faça ciência da moral, o caminho reflexivo sobre ética em Rosa se faz mediante a linguagem, a estética, a narrativa sem a pretensão de elaborar conceitos e imperativos universais como Aristóteles ou Kant. Neste sentido, é no solo sertanejo das gerais, conservando suas minas míticas, poéticas, culturais que a literatura rosiana explicita questões morais de cunho universal. A título de exemplo, veja-se o conto “Famigerado”, no qual, por um lado, o famoso Damázio trocou as armas pelo uso da linguagem para pautar sua ação; e o doutor, sob a égide do Princípio da Caridade, soube realizar, com ele, uma hermenêutica da sua vida.

IHU On-Line - O senhor afirma que a obra de Guimarães Rosa “carrega um modo de filosofar, de tal maneira, que os horizontes entre a filosofia e a literatura parecem por vezes se diluir”. Como essas duas Ciências se entrelaçam na obra do autor? Podemos dizer que Guimarães também era um "filósofo”?

Luiz Rohden - Partindo do fato de que a filosofia se propõe a discutir temas universais: bem-mal, amor-ódio, parte-todo, vida-morte, e ‘palavreá-los’, traduzi-los em linguagem, nós podemos dizer que a literatura rosiana é filosófica. Talvez a diferença mínima seja de que no primeiro caso, de modo geral, há uma preocupação em elevar aqueles temas e suas reflexões ao nível de uma conceitualização e sistematização discursiva, ao passo que no segundo caso aqueles mesmos temas são elevados ao real através de imagens, de metáforas, mas que nem por isso perdem o caráter de universalidade que os torna comuns. Eu ousaria dizer, inclusive, que a filosofia de Rosa espelha-se nos diálogos platônicos, nas confissões agostinianas, no poema de Parmênides, nos aforismos de Heráclito,  nos ensaios de Montaigne  e distancia-se dos tratados lógico-analíticos que expulsam do seu bojo a poesia, o mito, a vida em sua mobilidade. Assim, se compreendemos por filósofo um amante apaixonado pelo saber, pela compreensão da vida, do mundo – e não um profissional ou burocrata do saber ou um retórico manipulador de palavras e de poder –, podemos dizer que ele o foi sem dúvida.

IHU On-Line – Como podemos compreender o “filósofo” que habitava a figura de Guimarães Rosa? 

Luiz Rohden - Como em todo processo, é preciso lê-lo, conhecê-lo para compreendê-lo. É necessário romper a imagem de um autor difícil, pois sua proposta literária consistiu em compreender e explicitar em palavras – “eu sei o nome das coisas” – o sentido originário das coisas, da vida, do mundo por meio da linguagem narrativa. O filósofo Rosa se revela a nós quando nos chama a atenção para o fato de que “vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes”.

IHU On-Line - Que aspectos filosóficos se sobressaem na obra de Guimarães Rosa, principalmente no conto “O espelho”?
Luiz Rohden
- Eu não teria dúvida em afirmar que este conto poderia ter como subtítulo ou ser descrito como “um breve e agradável, mas nem por isso menos profundo, tratado sobre a alma ou constituição da subjetividade ou da identidade humana” espelhada numa das suas afirmações: “Se sim, a ‘vida’ consiste nesta experiência extrema e séria; sua técnica - ou pelo menos parte - exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra?”.

Neste sentido, se quisermos encontrar um paralelismo na história da filosofia podemos detectar na obra rosiana aquilo que se convencionou chamar de filosofia existencial – onde o ser só pode ser compreendido enquanto ser-no-mundo –, colocando-se na esteira dos filósofos e das correntes filosóficas que se insurgiram contra as perspectivas totalitárias, vazias e dogmáticas. Na esteira de uma filosofia “humanista” Rosa, enquanto escritor, estava identificado e preocupado com o destino do próprio homem tematizado em conceitos filosóficos como narração, existência, experiência.  É por isso que sua obra faz uma constante crítica ao reducionismo do conhecimento humano ao plano da consciência ou da abstração vazia. Em sua literatura filosófica, deságuam rios de todos os lados, do oriente ao acidente, das concepções mítico-religiosas até as experiências religiosas dos indígenas e sertanejos do interior de minas.

IHU On-Line – Que questionamentos filosóficos são lançados por Guimarães? Como suas indagações nos fazem repensar a sociedade brasileira e questões centrais da vida humana?

Luiz Rohden - Podemos dizer que seu cuidado para com a linguagem constitui uma autêntica terapia da linguagem nos moldes de Wittgenstein.  Neste sentido, a linguagem é o medium no qual questões antropológicas, éticas e políticas são postas em questão de modo que o universal concreto é explicitado em sua obra. Na minha opinião, Grande sertão: veredas é um romance metafísico na medida que nele o todo e a parte, o universal e o particular, o uno e o múltiplo encontram-se tematizados e entrelaçados já no próprio título. E não se confunda metafísico com metaempírico. Um questionamento autenticamente metafísico, filosófico, é aquele no qual aquele que pergunta põe-se em questão ao perguntar sobre um objeto investigado [Deus, alma, mundo, natureza], ou seja, suas reflexões ecoam e procuram dar uma resposta às suas questões, angústias e anseios.

IHU On-Line - De que maneira figuras como Plotino, Santo Agostinho, Kierkegaard exerceram influência na produção literária e filosófica de Guimarães Rosa?

Luiz Rohden - Ao atribuir o valor dos componentes da sua obra, ele conferiu a mais alta cotação – quatro pontos – ao traço metafísico-religioso, contra três pontos para a poesia, dois para o enredo e um para o cenário e realidade sertaneja. Concordo com a opinião de Benedito Nunes,  para quem “o neoplatonismo é apenas uma rubrica genérica da visão do mundo de Guimarães Rosa. Designaria o vislumbre da transcendência para além e dentro da alma – o ‘quem das coisas’ ou da ‘sobre coisa’ na experiência comum – o despontar das afinidades secretas entre seres, o aceno de conversão do homem a si mesmo”. Na verdade, ele assumiu o neoplatonismo, “em sua fonte primeira – Plotino,  qual “nega o curso fatal do Destino como encadeamento causal necessário (influência dos astros ou de demônios) de agentes exteriores” tematizado na experiência do pacto de Riobaldo.

Os estádios estético, ético e religioso encontram-se e constituem o texto rosiano. Na esteira do pensador dinamarquês,  Rosa foi um crítico impiedoso de sistemas filosóficos vazios, destituídos de sangue e de vida, e defensor de um modo de pensar em que vida e linguagem, prática e teoria precisam ser conjugadas no mesmo tempo. Além disso, deles ele incorporou em sua literatura o fato de que há realidades que a razão não capta e para as quais são necessárias outras antenas e uma linguagem apropriada, no caso, poético-mítica.

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Seminário Nacional de Literatura: Machado e Rosa
Minicurso: Filosofia nas veredas da literatura roseana
Prof. Dr. Luiz Rohden – Unisinos
Dia 30-09-2008
Horário: 14h às 18h30min
Local: Sala 1D107

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>> Luiz Rohden já participou de outra edição da IHU On-Line. Confira a entrevista no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Entrevista:

* Gadamer: alegre, simpático e simples. Edição nº 9, Nosso adeus a Hans-George Gadamer, de 18-03-2002.

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