Edição 275 | 29 Setembro 2008

Machado e Guimarães Rosa: dois modos de ver o Brasil

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André Dick e Patricia Fachin

João Hernesto Weber apresenta as diferenças na produção literária entre os escritores Machado de Assis e Guimarães Rosa

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, João Hernesto Weber, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), compara a produção literária de dois clássicos brasileiros: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Machado, explica o pesquisador, investigou “as possibilidades de ascensão social dos pobres na sociedade escravista do século XIX”, e mais tarde, na fase considerada “madura”, centrou “seu olhar na classe dominante escravista, escrevendo a partir da ótica que anima esse segmento social, em toda a sua perversidade”. Enquanto Machado escreve sobre uma sociedade urbana, Guimarães, com um foco geográfico bem mais amplo, “tenta estabelecer uma ponte entre esses dois universos, o universo letrado da urbs e o universo iletrado do interior”, assinala.

Membro do corpo editorial da revista eletrônica Mafuá, de Florianópolis, Santa Catarina, Weber é graduado em Letras - Português/Alemão, e mestre e doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

IHU On-Line - Qual é o retrato feito sobre a cidade e o sertão nas obras de Guimarães Rosa e Machado de Assis?

João Hernesto Weber – Machado de Assis é um escritor essencialmente urbano, retratando a sociedade brasileira do segundo Império. Seus romances, tanto os iniciais, como os da fase dita “madura”, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, têm por cenário a sociedade fluminense, restringindo-se a movimentação das personagens, numa cartografia de fácil acompanhamento, geograficamente à parte central do Rio, com a Rua do Ouvidor, os bairros do Catete, do Botafogo, e os teatros e cafés existentes à época na região central do Rio. É importante ressaltar, ainda assim, que a representação da cidade, mesmo em seus romances da fase “madura”, que abrangem um período histórico em que se acelera o processo de modernização do Rio, não se atém à descrição da cidade, em termos estritos, como forma de aclimatação do romance no Brasil, ao contrário do que faziam seus antecessores, em que a descrição da cor local se sobrepunha, muitas vezes, ao “drama moral” das personagens. Muitos dos romances, inclusive, se passam praticamente em ambiente doméstico, a casa senhorial surgindo como espécie de miniaturização do espaço social e geográfico mais amplo. Esse é um dos grandes ganhos de Machado, ao se pensar na literatura brasileira da época, e mesmo posterior, extremamente descritiva, em sua busca de recortar, desenhar o Brasil. Machado detém-se na análise dos caracteres, como ele próprio indica no conhecido ensaio sobre o “Instinto de nacionalidade”, desenho de perfis masculinos e femininos que gravitam, e é isto o que importa, conforme a dinâmica própria da sociedade brasileira da época.

O Brasil de Guimarães

Guimarães Rosa, de outra parte, debruça-se sobre o sertão brasileiro, afastado das cidades litorâneas, espaço voltado à produção pecuária, com suas personagens vivendo em constante movimento no sertão que se estende, no romance Grande sertão: veredas, do norte de Minas Gerais ao sul da Bahia, tendo como referência geográfica essencial o Rio São Francisco.  Geograficamente, o foco de Guimarães Rosa é, se lembrarmos Machado, bem mais amplo: o périplo de Riobaldo e Diadorim devora espaços, demanda chapadas e chapadões, e requer a descrição, por vezes permeada por profundo lirismo, dos rios, dos buritizais, da flora e da fauna, inclusive. Trata-se, nesse sentido, de uma outra cartografia, historicamente existente, mas que se dilui no espaço amplo do sertão que, à época da escrita do romance, estava deixando gradativamente de existir, devido ao próprio avanço da modernização sobre o interior do Brasil.

IHU On-Line - Como Guimarães e Machado trabalham suas personagens? De que maneira os dilemas sociais brasileiros são tratados através das histórias?

João Hernesto Weber – No caso de Machado de Assis, o foco está na personagem, em seus “dramas morais”. Nos romances iniciais, principalmente a partir de A mão e a luva, interessam os dramas surgidos da relação socialmente assimétrica entre as agregadas, como Guiomar, Helena, Estela, Lalau, e os herdeiros da casa patriarcal. Machado, no dizer de Roberto Schwarz,  na seqüência de Lúcia Miguel-Pereira,  parece investigar, em seus primeiros romances, as possibilidades de ascensão social dos pobres na sociedade escravista do século XIX, perscrutando, “de baixo para cima”, as eventuais brechas à ascensão, sem deixar de expressar, ao mesmo tempo, uma espécie de moralismo dos pobres, que, se com mérito, merecem a ascensão social, enquanto outros – no caso, outras, pois os perfis femininos são o foco da narrativa – sucumbem. Já nos romances “maduros”, Machado vai centrar o seu olhar na classe dominante escravista, escrevendo a partir da ótica que anima esse segmento social, em toda a sua perversidade. Basta, para tanto, lembrar o que Brás Cubas diz de Eugênia, a “coxa de nascença”. Aqui inverte-se o olhar, em relação aos primeiros romances, desvendando Machado o que vai pelo âmago da sociedade escravista, em sua constelação preenchida por senhores, dependentes e escravos. A denúncia das atrocidades, velada pela forma solta, digressiva, aparentemente risonha, mostra-se em toda a sua dimensão: é romance de forte escavação social, nas condições da sociedade local.

Percepção rosiana

Em Guimarães Rosa, se encontram dois planos, seja na descrição do sertão, o que remete à questão anterior, espaço geográfico concreto e também transfigurado, seja no trato das personagens. As personagens pertencem, concretamente, e historicamente, ao mundo da jagunçagem, lembrando, em muito, o Brasil interiorano da República Velha, com sua ordenação social centrada na figura dos coronéis e seus jagunços, longe do poder de polícia do poder instituído nas cidades litorâneas. As personagens representam tudo isso, mas representam, também, pelo poder de duplicação que Rosa lhes imprime, um tempo imemorial, de luta entre os poderosos chefes do sertão, num espaço épico em que as aventuras patrocinadas pelos heróis, no tempo narrado por Riobaldo, estão envoltas em brumas que asseguram, a esses mesmos heróis, sua mais absoluta inocência, entre o Bem e o Mal, um o duplo do outro. Isso vem da forma, inclusive, adotada por Rosa, a lembrar não somente a “fúria de Aquiles”, ou a épica clássica, mas também o romance de cavalaria, com sua História de Carlos Magno e dos doze pares de França, sem deixar de faltar, também, o mistério representado pela donzela-guerreira, Diadorim. A própria narrativa é dupla, nesse sentido: ao tempo do narrar, Riobaldo, no range-rede, fazendeiro estabelecido, não somente rememora o tempo pregresso, como se indaga sobre ele. Com isso, isto é, com a indagação sobre o tempo pregresso, esvai-se também a inocência da épica em favor do romance, do herói em dúvida, em busca de uma explicação minimamente razoável para a sua existência, ou mesmo penitência, diante da irrealização de seus ideais. Este é o Riobaldo velho, a sonhar, ainda, com Diadorim.

IHU On-Line - Por que o sertão, no seu entendimento, costuma ser estudado como um espaço metafísico na obra de Rosa?

João Hernesto Weber – Às vezes, acredito, por má-vontade, desprezo para com a história, vinculado, esse desprezo, a teorias neo-idealistas, que transformam tudo em texto, que tem como referente, no máximo, outros textos, sem vínculos com a realidade histórica objetiva. Mas é de se observar que o romance de Rosa apresenta uma possibilidade que faz a leitura facilmente resvalar para o estudo do sertão como espaço metafísico, como afirma a questão proposta. O romance, em sua parte inicial, é indagação sobre o sentido da existência, como colocava acima. Daí transforma-se tudo: a terra, o homem, a luta, o sertão em um “espaço metafísico”, resta um passo. A duplicidade do romance também o propicia: tudo é historicamente datado, mas também não o é, pelo princípio que o rege, entre a concretude do sertão brasileiro e a transfiguração desse mesmo sertão, proporcionado pela forma. Mas se o romance carrega em si, como afirma Antonio Candido,  o princípio da reversibilidade, algo deve ser reversível, isto é, deve haver dois lados, o da história objetiva e o da sua transfiguração literária. Elidir simplesmente um dos lados, no caso, o da história concreta, pode interessar a alguns, mas não a todos, principalmente a quem, como eu, ainda pretende ver os nexos entre literatura e história.

IHU On-Line - A linguagem de Guimarães Rosa reproduz a fala dos sertanejos, com uma recriação das palavras. De que maneira essa linguagem cria um equilíbrio entre o erudito e o popular?

João Hernesto Weber – Já se disse que Guimarães Rosa teria inventado um idioma próprio, como se não buscasse, como substrato lingüístico para a sua criação literária, o dialeto caboclo-sertanejo existente no sertão. Isso é não querer reconhecer, também, a história subjacente ao romance, transformando-se o discurso de Riobaldo num discurso virginal, linguagem pura, não contaminada pela história. De outra parte, a questão aponta, muito bem, para a possibilidade de uma tentativa de diálogo entre o erudito e o popular. O substrato lingüístico sertanejo compõe a camada popular da fala de Riobaldo, mesclada, por sua vez, com o erudito, a possibilitar o próprio diálogo entre o escritor, o sertão e o leitor medianamente culto da cidade letrada. Esse sempre foi um dos dilemas da literatura no Brasil. O romance que tentasse buscar o interior como matéria literária – e o interior, para além do mundo urbano, sempre esteve aí, a solicitar representação literária – sempre se deparou com este impasse: como abordá-lo, do ponto de vista lingüístico e formal? Normalmente, ocorre aquilo que Lúcia Miguel-Pereira denomina de “atitude de turista”. É o romancista culto, citadino, que vai ao interior e registra modos de ser típicos do caboclo, do caipira, sem deixar de registrar, também, a fala “errada” do caboclo. Mesmo no romance mais sério dos anos 30, como em Graciliano Ramos,  encontramos esse dilema. Paulo Honório gasta dois capítulos, diz ele, para tentar tornar seu romance verossímil; em Vidas secas, as personagens não falam, grunhem... Há, no caso de Vidas secas, toda uma empatia do autor com a vida dos oprimidos do sertão, mas há a sombra da impossibilidade do diálogo efetivo. Guimarães Rosa tenta estabelecer uma ponte entre esses dois universos, o universo letrado da urbs e o universo iletrado do interior, através da “inteligibilidade”, digamos, que, através da língua culta urbana, imprime ao dialeto sertanejo, na tentativa de estabelecer um diálogo entre os dois mundos. Tenta uma mediação. Não por acaso, Riobaldo é um elemento mediador por excelência: ele é escolarizado, sabe ler e escrever, sabe aritmética e estudou história pátria. Sua fala é sertaneja, em seu vocabulário, em seus torneios sintáticos, e é compreensível, ao mesmo tempo, para um homem escolarizado da cidade. Com o procedimento, cabe também frisar, retira o preconceito que sempre recaía sobre o falar “errado” dos homens do interior brasileiro, tornando-os seres singulares, em seu enraizamento histórico. O sertão, finalmente, adquire voz, independentemente da ótica ideológica que alimenta o romance, em sua proposta, também é de se ver, de diálogo entre o passado sertanejo e o presente da modernização tardia do país. 

IHU On-Line - Como as obras de Machado ajudam a compreender o contexto social e político do Brasil do século passado? Os seus personagens continuam atuais. Por quê?

João Hernesto Weber – Machado viveu em um período extremamente importante da vida brasileira, o da passagem do trabalho escravo ao trabalho formalmente livre, o da passagem da Monarquia à República. É um dos momentos decisivos da formação brasileira, com suas heranças de “longa duração”, a se refletirem na vida nacional ainda hoje, em termos de sua organização política e social, o país sempre enredado entre a modernização possível e o atraso a atravancar as relações políticas, sociais, pessoais inclusive. Para se conhecer este país, Machado é essencial: ele não só vasculhou o perfil da classe dominante escravista, como acompanhou o surgimento de novos agentes sociais que nasceram no bojo do escravismo e que carregam, hoje ainda, traços típicos da formação social brasileira anterior à “revolução burguesa”, inconclusa. A errância de suas personagens, entre a loucura em busca de identidade própria e o desprezo para com os “de baixo”, parece-me dado constitutivo da formação social brasileira. Para conhecer essa formação histórica em sua intimidade, nada melhor do que a leitura de Machado, um escritor, sob esse aspecto, atualíssimo.

IHU On-Line - De que maneira a obra de Machado dialoga com o “motivo do duplo”, que faz parte da tradição européia do século XIX? Que obras poderiam caracterizar de maneira mais intensa este diálogo?

João Hernesto Weber – O “motivo do duplo”, ou “Das Doppelgängermotiv”, é tópico recorrente na literatura do século XIX, não somente em termos europeus estritos, no sentido das literaturas dominantes, mas, diria até que com mais ênfase, na periferia desse mesmo centro dominante. Sua predominância ocorre no conto, com E. T. A. Hoffmann,  Poe,  Gogol,  Dostoievski,  por exemplo, ou em Kafka.  “O homem de areia”, de Hoffmann, ou “William Wilson”, de Poe, ou “O capote”, de Gogol, só para citar alguns, são exemplares da fratura do indivíduo diante da modernização. “Das Unheimliche”, lembrando Freud,  que baseia o seu ensaio em “Der Sandmann”, de Hoffmann, é o “estranho” que habita, ao mesmo tempo, o lar do indivíduo, sósia de si mesmo. É tema recorrente, e é espelho, a meu ver, da busca de identidade na periferia do sistema, a refratar, no entanto, o próprio sistema, em seu centro. Essa percepção perpassa a obra de Machado, com maior destaque nos contos, que, por sucintos, trabalham constantemente essa questão. Diria, até, que o motivo do duplo articula, em grande parte, os seus contos a partir de Papéis avulsos, de 1882, mas que se encontra, também, num romance como Memórias póstumas ou, em Quincas Borba, na figura de Rubião, um duplo de D. Pedro II,  duplo também de um Napoleão III,  na leitura de John Gledson.  Nos contos, é o problema do artista que se quer erudito e só consegue produzir música popular, em sua irrealização constante; é o espelho em que Jacobina, sem alternativas, busca a sua identidade; são as mulheres volúveis, entre a irrealização e o devaneio; é a igreja do diabo que é a duplicação da igreja de deus, esta por sua vez o duplo daquela. Nisso tudo, há que se ver uma possibilidade de leitura do local, bem entendido. O duplo indica, também, para além da fratura e irrealização do indivíduo, a própria fratura que perpassa o país, entre o não ser e o ser outro, para lembrar, aqui, Paulo Emílio Salles Gomes.  Diria, em conformidade com o princípio da “redução estrutural” proposto por Antonio Candido, que o duplo nos contos machadianos representa a própria redução estrutural da fratura do país.

IHU On-Line - O senhor diz que Machado tinha interesse em apresentar o momento local em suas obras. Podemos dizer que isso acontecia justamente porque naquele período havia interesse em consolidar uma literatura brasileira?

João Hernesto Weber – Toda a tarefa que Machado se impôs como escritor vai nesse sentido. A segunda parte do ensaio “Instinto de nacionalidade” é isto: um projeto de construção de uma literatura brasileira, não amarrada, no entanto, ao cor-localismo. Primeiramente, Machado mapeia a literatura existente à época da escrita do ensaio (1873); depois trata dos gêneros literários, tentando perceber as lacunas da formação literária brasileira. Afirma, por exemplo, que o romance de análise de caracteres é raro no Brasil. O que Machado, depois, vai intentar fazer? Romances de análise de caracteres. Afirma que o conto, apesar de gênero aparentemente fácil, que afasta os escritores, é de difícil execução. O que Machado vai fazer, na seqüência? Escrever cada vez mais contos, a somarem, no conjunto de sua obra, mais de duzentos. Nesse sentido, pode-se afirmar que Machado foi, sim, um autor empenhado em consolidar uma literatura brasileira, sem as limitações impostas pelo momento, mas extremamente expressiva do momento por que passava o país.

Saiba mais...

Seminário Nacional de Literatura: Machado e Rosa
Mesa-redonda: A cidade e o sertão: espaços do Brasil
Participantes:
Prof. Dr. João Hernesto Weber – UFSC
Profa. Dra. Juracy Assmann Saraiva - FEEVALE
Mediadora: Profa. Dra. Eliana Pritsch – Unisinos
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Horário: 9h às 12h

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