Edição 274 | 22 Setembro 2008

Invenção - Danilo Bueno

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

André Dick

Editoria de Poesia

Nascido em Mauá (SP), em 1979, o poeta Danilo Bueno é graduado na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e atualmente realiza mestrado, na USP, em Literatura Portuguesa, sobre Jorge de Sena. Publicou três livros de poesia: Fotografias (Santo André: Alpharrabio Edições, 2001), Crivo (Santo André: Alpharrabio Edições, 2004) e Corpo sucessivo (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2008), com alguns poemas publicados antes em revistas como Cacto, Modo de Usar & Co., A Cigarra e Zunái.

Seus escritos apresentam, em primeiro lugar, a dispersão do sujeito na cidade grande, mostrando como a opressão do dia-a-dia desenha uma espécie de melancolia filtrada pela observação de ruas e moradias. A característica de projetar um certo indivíduo moderno, que está sempre vagando por ruas, cheias ou abandonadas, recebe um adensamento, sobretudo em Crivo, num poema como “centro”: “compra-se ouro / escrito num / jaleco / / (senhor de setenta anos) / / isto é comércio / frase de efeito / um corpo”. O horizonte, por sua vez, aparece sempre obstruído: “nenhum horizonte / recorte de telhado // apenas teto / janela / grade” (em “cerco”), e a ausência individual se manifesta em cada verso. A cidade, talvez representando o sujeito moderno, aparece, ao mesmo tempo, em construção e em desmanche, com a natureza que o cerca sendo ameaçada pelo crescimento urbano. Com isso, de certo modo, a casa representa uma exclusão muitas vezes forçada. Embora nela o tempo pareça não avançar, como em “vez” (“por seu turno / a gangrena / engrenagem / de um relógio”), e as fotografias de familiares mostrem a persistência do tempo, temos um sujeito que, através de uma certa reclusão domiciliar imposta, faz uma observação constante da rotina externa, o que impõe a presença constante, em sua poética, de ruas e caminhadas.

Em Crivo, como em seu primeiro livro, Fotografias, existe, também, um trabalho consistente de síntese, que lembra a poesia oriental, como em “varanda” (“luz elétrica / no tapete / onde o gato dormia / / a macieira / já não cabe / na jardineira / / o cal e o limo / inscritos / na fronte / / luar e música / pela janela”), e o poeta chama a atenção para detalhes que parecem imperceptíveis, sobretudo nos objetos e no corpo humano, como provam os versos de “Alba”: “o que das frestas ilumina: / manhã sobre a cama / pálpebras desfiando / ínguas – contornos / abertos – nudez abriga / toda geografia / corpo-mobília / os dias”. 
 
O enxadrista da sintaxe

Em seu livro mais recente, Corpo sucessivo, Danilo não foge à elipse e aos versos bem aparados, mas há uma profusão sonora que mais chama a atenção. Desse modo, o poeta parece menos preso a uma estrutura preestabelecida, embora continue arquitetando os versos de tal maneira que a leitura não é nunca fácil ou compreensível à primeira vista. A releitura, nesse caso, é peça-chave para se entender a poética de Danilo, que, embora utilize experimentações, não foge ao foco de construção. Até mesmo porque um de seus cenários prediletos – a cidade grande – é extremamente bem delineado, assim como seu choque com a natureza. Ou seja, a flor é um elemento central de sua poesia: ele a vê mesmo em meio a ônibus e à fuligem da metrópole, aos homens que trabalham segurando cartazes.

Danilo Bueno trabalha com a sintaxe de maneira singular, manejando os poemas a partir de um núcleo em que os versos vão se construindo, às vezes de forma linear, às vezes de forma enviesada. De modo geral, em Corpo sucessivo, esse núcleo é feito a partir do trabalho sonoro. No seu poema “alguns cavalos”, por exemplo, há um aspecto lingüístico que remete ao jogador de xadrez russo Alexander Alekhine: “Alekhine lançava aos golpes / aqueles mesmos cavalos, / em ângulos que implodem / além da tensão do arco / / tal um balé, demolido / a cada passo, ínsito / somente em si desarmado”, formando uma curiosa tessitura de versos. Ou em “baque e torpor”: “rosas racham / pleno meio-dia / caía / / parecia abater-se / (luz e nítida imagem) / silêncio por vezes agonia”. Ou em “metamorfoses”: “permanecer o mesmo / ao resolver-se outro / dentro de todos / / escombro de encontros / atônito / simulacro de assombros / / monstro / epígono de anônimos”.

Nos poemas que enviou à revista IHU On-Line, Danilo utiliza o paralelismo, a repetição de palavras, no encadeamento de funções sintáticas semelhantes, criando uma mobilidade para paisagens ou conceitos que se repetem. Há, nessa repetição, ao mesmo tempo, uma polifonia e uma colagem, assim como a lembrança de uma frase do artista plástico Marchel Duchamp no primeiro poema. “D’ailleurs, c’est toujours les autres qui meurent” (“Aliás, são sempre os outros que morrem”) são as palavras que o artista plástico pediu para gravar em seu túmulo.


Somos os poetas de Deus
Somos os poetas do povo
Somos os poetas da crítica
Somos os poetas doutrinários
Somos os poetas eruditos
Somos os poetas modernos
Somos os poetas da tecnologia
Somos os poetas pós-utópicos
Somos os poetas dos estilos históricos
Somos os poetas do absoluto e do real
Somos os poetas da ideologia
Somos os poetas de fim de semana
Somos os poetas canônicos
Somos os poetas de carreira e de gabinete
Somos os poetas das revistas eletrônicas
Somos os poetas sem qualidades
Somos os poetas municipais
Somos os poetas das minorias
Somos os poetas engajados
Somos os poetas das mansardas
Somos os poetas tradutores
Somos os poetas acadêmicos
Somos os poetas malditos
Somos os poetas blogueiros
Somos os poetas dos poetas
Somos os poetas das capelinhas
Somos os poetas contemporâneos
Somos os poetas épicos
Somos os poetas visuais
Somos os poetas portugueses
Somos os poetas inclassificáveis
Somos os poetas da MPB e do samba
Somos os poetas da poeticidade
Somos os poetas dos galardões
Somos os poetas do júri
Somos os poetas de aspirina e idéia fixa
Somos os poetas do corpo do amor da síncope
Somos os poetas da obra diamantina
Somos os poetas dos banheiros públicos
Somos os poetas visionários
Somos os poetas cosmopolitas
Somos os poetas inéditos
Somos os poetas e seus epitáfios
D'ailleurs, c'est toujours les autres qui meurent
E os mortos e os semivivos e os que ainda irão
Morrer

 

 

 

 

Uma praça vira estacionamento
Uma esquina vira estacionamento
Um casarão centenário vira estacionamento
Um prédio utiliza três subsolos de estacionamento
E muitos carros ainda param do lado de fora!
Uma rua só de estacionamentos à esquerda
Estacionamentos fecham quadras inteiras
Vallets levam carros para estacionamentos invisíveis
Há estacionamentos só para motos
No supermercado o estacionamento é gigante
Macunaíma confundiu pessoas com carros!
Os carros não param os carros não param
De sair das casas dos condomínios de cinco vagas
Há estacionamentos pagos com moedas
E os que não aceitam cheque há mensalidades
Para estacionamentos com pacotes promocionais
O cinema Tangará virou um estacionamento
Calçadões foram tomados por estacionamentos
Um motorista é um estacionamento 24 horas
Nunca as concessionárias tiveram tantos
Pátios-estacionamentos
Perto de templos estacionamentos não negociam
Casas são estacionamentos perto dos estádios
Casas recém-demolidas, ainda com azulejos à mostra
São estacionamentos de padarias ou
Drogarias arrasa-quarteirão

...
Não se esqueça
Há fileiras de carros todo o tempo
Sem estacionamento
Enquadradas na equívoca possibilidade das ruas

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição