Edição 274 | 22 Setembro 2008

O alimento tornou-se uma mera mercadoria

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Graziela Wolfart

O pesquisador do Ibase Francisco Menezes pergunta: que sistema é esse que não comporta que as pessoas se alimentem de forma suficiente?

Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), anuncia: “O mundo se depara, nesse momento, com um enorme desafio. O sistema de produção e consumo alimentar é insustentável econômica, social e ambientalmente”. Para ele, “a raiz do problema está no fato do alimento ter se transformado em mera mercadoria”. No entanto, Francisco sugere uma solução. “Mudar esse quadro somente será possível com o convencimento de governos e sociedades que alimento é um direito de todos.”

Francisco Menezes é também membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do qual já foi presidente, e fundador e coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN). É economista, com mestrado em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

IHU On-Line - Como entender que a desnutrição calórico-protéica do brasileiro reduz-se ao mesmo tempo em que se acentua o crescimento da obesidade em todas as categorias de renda?

Francisco Menezes - A desnutrição calórico-protéica vem se reduzindo desde a década de 1990 e, mais recentemente, essa tendência se acentuou. Isto se deu por uma série de fatores combinados, entre os quais podemos citar o barateamento relativo dos alimentos; a melhoria do acesso à renda entre os mais pobres; maior acesso à informação; disponibilidade de políticas públicas destinadas aos grupos socialmente mais vulneráveis, entre outros. Mas, ao mesmo tempo, passou-se a observar, também no Brasil, um fenômeno que já se mostrava preocupante em outras partes do mundo, com destaque para os Estados Unidos, ou seja, o crescimento do sobrepeso e da obesidade. No presente, esse problema se registra, sobretudo, entre as camadas sociais com baixa renda. Mais uma vez, são vários fatores combinados determinando essa tendência. Mas alguns têm maior importância: os alimentos de maior densidade calórica são geralmente mais baratos. Cada vez se oferece mais refrigerantes, biscoitos e outros produtos de quase nenhum valor nutricional, mas com quantidade de açúcar elevada. A meu ver, a maior parte da população adulta sabe o que é uma alimentação mais saudável e a menos saudável. Porém, é muito forte a necessidade de consumir uma alimentação com “substância”, que dê “sustentação”, como é falado. Iniciativas de educação alimentar precisam começar a trabalhar esses aspectos.

IHU On-Line - Quais os principais desafios em relação à segurança alimentar e nutricional no mundo?

Francisco Menezes - O mundo se depara, nesse momento, com um enorme desafio. O sistema de produção e consumo alimentar é insustentável econômica, social e ambientalmente. A raiz do problema está no fato do alimento ter se transformado em mera mercadoria. Mudar esse quadro somente será possível quando governos e sociedades se convencerem de que o alimento é um direito de todos.

IHU On-Line - Como entender a crise dos alimentos? Os biocombustíveis contribuem para isso?

Francisco Menezes - A crise dos alimentos revela a insustentabilidade desse sistema. E ela ocorre por conta de uma visão que só enxerga o lucro, a partir dos alimentos. Foi resultado de diversos fatores: a especulação com alimentos transformados em títulos de bolsas de mercadorias; a expansão brutal da produção de etanol a partir do milho realizada pelos Estados Unidos; a alta do preço do petróleo, com os desdobramentos sobre os preços dos insumos químicos e do transporte dos alimentos; os problemas climáticos resultantes do aquecimento do Planeta e a incapacidade dos países estabelecerem regras justas e adequadas para a comercialização dos alimentos. Agora, não me venham falar que os chineses, indianos e brasileiros é que causaram a crise, pois estão comendo mais. Que sistema é esse que não comporta que as pessoas se alimentem de forma suficiente?

IHU On-Line - O que é preciso ser feito para que a alimentação seja considerada um direito e não uma mercadoria?

Francisco Menezes - Em primeiro lugar, é preciso que se adquira a consciência desse direito, que deve ser garantido por políticas públicas, como obrigação do Estado. Mas é necessário, também, que se construa toda uma regulamentação de forma tal que qualquer indivíduo, sem dificuldades, possa cobrar esse direito. No Brasil, já temos a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, toda ela baseada no princípio da alimentação adequada. Falta agora a regulamentação que dê condições de exigibilidade desse direito.

IHU On-Line - Como o senhor construiria o mapa da fome no Brasil de hoje? Quais os números em relação à fome que mais assombram?

Francisco Menezes - Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que o país está fazendo extraordinários avanços na luta contra a fome, nos últimos cinco anos. Isto não quer dizer que o problema foi solucionado. Ele ainda atinge um grande número de pessoas e, enquanto houver um brasileiro sem ter seu direito à alimentação garantido, não podemos sossegar. Em pesquisa do Ibase, avaliando as condições de segurança alimentar do público do Bolsa Família, no momento em que os preços dos alimentos começavam a subir, chegamos a 11,5 milhões de pessoas vulneráveis à fome. Ela ainda é mais forte no Nordeste rural, mas aparecem bolsões de miséria, onde a fome pode ocorrer, em todas as regiões do país.

IHU On-Line - Que relação podemos estabelecer entre o alimento, a soberania de um povo e a dignidade um ser humano?

Francisco Menezes - Provavelmente, a maior ameaça à soberania de um povo ocorre quando este tem sua capacidade de alimentação comprometida. Então, fica-se frágil para ceder a qualquer coisa. E nossa dignidade vai embora. Por isso que a soberania alimentar é estratégica para todos os países.

IHU On-Line - Qual a importância de resgatar a memória de Josué de Castro? Em que sentido o senhor acha importante revelar a realidade da fome, como ele fez?

Francisco Menezes - Josué de Castro foi um visionário, que deixou uma imensa contribuição não só para o Brasil, mas para todo o mundo. Precisaria de muito espaço e tempo para falar dele. Mas resumo essa contribuição no que me parece chave, em toda sua obra: a denúncia de que a fome é obra dos próprios homens, desmistificando a idéia de que, como uma fatalidade, as pessoas estariam fadadas a viver com ela.

IHU On-Line - O senhor acredita que o Brasil, com suas atuais políticas públicas, está conseguindo aliar crescimento econômico e redução da desigualdade?

Francisco Menezes - Acabam de sair os dados da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (PNAD), do IBGE, que confirma isso. É um fato raro ocorrer crescimento com redução de desigualdade, mas as políticas de transferência de renda, de estímulo ao trabalho formal, além da melhoria educacional do trabalhador brasileiro, estão levando a esses resultados alvissareiros. Uma das medidas que devem seguir essas conquistas é a construção de condições para que os mais pobres possam ingressar no mercado de trabalho ou obterem renda a partir de seus próprios empreendimentos.

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