Edição 274 | 22 Setembro 2008

Uma abordagem interdisciplinar da fome

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Graziela Wolfart

Para José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, a fome está incluída na miséria da alimentação, como sua manifestação mais grave e cruel

“Quando Josué de Castro trata da fome ele o faz de maneira interdisciplinar e permite um entendimento mais rico desse fenômeno. Essa vivência com a fome e com os famintos desde sua infância traz, certamente, essa forma humana de retratar esse drama.” A análise é de José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, que, na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, faz um releitura da obra de Josué de Castro para falar sobre o drama da fome no Brasil de hoje. Ribeiro explica que “a maneira como nos alimentamos revela diferentes formas de sociabilidade, sendo possível afirmar que a alimentação é um fenômeno rico em significados e, que neste sentido, ela é um dos elementos de nosso incessante processo de humanização”. José Raimundo possui graduação em Geografia pela Universidade de São Paulo, tendo sua monografia o título “O movimento da obra de Josué de Castro: uma releitura crítica a partir da Geografia e da Fome”. Atualmente, é mestrando em Geografia Humana também na USP, e sua dissertação intitula-se “A miséria na alimentação e a fome: uma abordagem geográfica a partir da metrópole de São Paulo”.

IHU On-Line - Como entender o sucesso da obra de Josué de Castro sobre o tema da fome? Podemos entender que foi pela sua forma humana (e com imensa força política) de retratar esse drama?

José Raimundo Ribeiro - Entendo que o sucesso da obra de Josué de Castro pode ser explicado por alguns fatores principais. O primeiro seria a maneira como ele descobriu a fome, ainda quando criança, na cidade do Recife. Essa vivência com a fome e com os famintos desde sua infância traz, certamente, essa forma humana de retratar esse drama. Também é interessante notar que as principais obras de Josué de Castro foram escritas de maneira ensaística, o que lhe permitia uma maior liberdade no tratamento do tema. Além disso, temos de ressaltar dois importantes trabalhos literários, “Documentário do Nordeste”, de 1937, e “Homens e caranguejos”, de 1967; neles, vemos a dramaticidade do fenômeno da fome narrada com maior liberdade e entrelaçada por outros elementos da vida cotidiana (a moradia, o transporte, o trabalho, a família). Outro fator que deve ser destacado, para que entendamos o sucesso da obra de Josué de Castro, é sua formação interdisciplinar. Aos 21 anos, Josué de Castro se formou em Medicina e logo em seguida começou a exercer a profissão em Recife, onde tomou contato novamente com o drama da fome e entendeu que esse é um fenômeno simultaneamente biológico e social. Assim, ele passou a estudar a fome através das Ciências Humanas, chegando até a Geografia Humana que passou a caracterizar seu método de estudo. Portanto, quando Josué de Castro trata da fome, ele o faz de maneira interdisciplinar e permite um entendimento mais rico desse fenômeno.

IHU On-Line - A que tipo de movimento o senhor se refere no seu trabalho sobre a obra de Josué de Castro?

José Raimundo Ribeiro - Refiro-me ao movimento de seu pensamento. É importante entender que o conhecimento não é uma revelação, não é algo dado e estanque. Também não há um caminho linear da ignorância ao conhecimento; esse caminho é cheio de complicações e meandros que comportam continuidades e descontinuidades. Assim, ao estudar a obra de Josué de Castro, procurei identificar o movimento de seu pensamento através dessas continuidades e descontinuidades. Deste modo, entendo que sua obra pode ser entendida com mais riqueza e profundidade, pois permite que tenhamos uma noção de totalidade de sua obra, sem deixarmos de considerar as diferenças entre as partes que a compõe. Além disso, é importante ressaltar que o movimento de uma obra não pode ser entendido separado do contexto em que ela foi escrita. Deste modo, a interpretação torna-se menos dogmática, pois relaciona a vida e a obra do autor, colocando o movimento do pensamento dentro do contexto do qual ele fez parte.

IHU On-Line - Que releitura o senhor faz hoje da geografia e da geopolítica da fome elaboradas por Josué de Castro?

José Raimundo Ribeiro - Faço uma releitura a partir de dois pontos de vista. De um lado, tento entender os fundamentos teórico-metodológicos que levaram Josué de Castro a elaborar uma geografia e uma geopolítica da fome. Nesse sentido, entendo que a Geografia Humana, enquanto uma Ciência que apresentava como objeto de estudo a relação entre o homem e o meio que ele ocupava (o meio geográfico), foi muito importante para que Josué de Castro pudesse realizar um estudo sobre a fome tanto em seus aspectos naturais como sociais. É interessante notar também que ele, ao tomar a fome como objeto de estudo, de algum modo desvia os rumos da própria Geografia Humana, pois, ao invés de ressaltar a identidade entre o homem e o meio geográfico, vai revelar como a fome é produto do desequilíbrio nessa relação. Assim, de algum modo, ele também já apresentava uma possibilidade de superação da Geografia Humana de tradição francesa. Por outro lado, procuro considerar nessa releitura a realidade vivida e estudada por Josué de Castro entre as décadas de 1930 e 1960. Isso significa que tanto a fome como suas formas de combate se apresentavam de maneira distinta naquele momento, e que, neste sentido, é importante que tenhamos consciência dos avanços e dos limites de sua interpretação para que possamos ter uma postura crítica e aprofundada sobre os conteúdos da fome hoje.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da contribuição de Josué de Castro para pensar a realidade da fome no Brasil de hoje? 

José Raimundo Ribeiro - Gostaria de destacar duas contribuições que entendo ser centrais e mostram a atualidade da obra de Josué de Castro. A primeira contribuição refere-se à maneira como o conceito de fome é formulado por Josué de Castro. Em Geografia da fome, depois de mais de 14 anos estudando os problemas da alimentação, ele apresenta a fome através de três pares conceituais: a fome é individual ou coletiva; endêmica (sempre presente) ou epidêmica (ocorrendo em surtos); e total (que seria a inanição) ou parcial/oculta (fenômeno no qual a falta permanente de determinados elementos nutritivos leva lentamente grupos inteiros à morte, mesmo que esses comam todos os dias). Com essa conceituação Josué de Castro tem a intenção de revelar como o fenômeno da fome é muito mais freqüente e devastador do que se imagina, pois atinge a milhões de pessoas que mesmo comendo todos os dias passam fome. Trata-se, em outras palavras, de considerar não apenas aqueles que morrem de fome, como também aqueles que vivem dramaticamente com fome. Essa contribuição é muito atual. Basta lembrarmos a repercussão do lançamento do “Programa Fome Zero” em 2003, pois naquele momento foi recorrente o discurso (inclusive no meio universitário) de que a fome no Brasil seria um fenômeno limitado que não justificaria a existência de tal Programa. Não há nada de errado em criticar o “Programa Fome Zero” e suas formas de atuação, porém não é possível concordar com a afirmação de que a fome no Brasil seja um fenômeno de pouca relevância. Outra contribuição atual para pensar a realidade da fome, não apenas no Brasil como em todo mundo, é a desnaturalização da fome. Para Josué de Castro, a fome se configura como um fenômeno social, produzido pelo homem, e não pode ser explicada somente a partir de elementos naturais. Ao identificar a fome endêmica na Zona da Mata do Nordeste, uma região que apresentava todas as características naturais necessárias à produção suficiente de alimentos para sua população, Josué de Castro nos dá um exemplo de como a fome é um fenômeno produzido socialmente. Ainda no que se refere à desnaturalização da fome, Josué de Castro se contrapõe aos discursos malthusianos que tentam, através de uma abordagem demográfica, responsabilizar o próprio faminto pela fome. Não é difícil, ainda hoje, nos depararmos com esse tipo de discurso que vê no “excesso de população” a principal causa da fome.

IHU On-Line - Quais as diferenças entre fome e miséria na alimentação?

José Raimundo Ribeiro - Não se trata exatamente de uma diferença. A fome está incluída na miséria da alimentação, como sua manifestação mais grave e cruel. No entanto, entendemos que é necessário considerar também os processos de deterioração da alimentação. A tentativa é a de revelar que a alimentação não pode ser entendida como uma necessidade puramente elementar ou funcional (sendo sua função garantir a sobrevivência). Uma análise estacionada nesse nível reivindica somente a sobrevivência e não a vida. A maneira como nos alimentamos revela diferentes formas de sociabilidade, sendo possível afirmar que a alimentação é um fenômeno rico em significados e, que neste sentido, ela é um dos elementos de nosso incessante processo de humanização. 

IHU On-Line - O drama da fome é mais cruel nas metrópoles ou nas localidades mais afastadas dos grandes centros? Por quê?

José Raimundo Ribeiro - É difícil responder essa pergunta, pois não há como negar a radicalidade do fenômeno da fome, seja nas metrópoles ou no campo. A fome, enquanto drama vivido cotidianamente, é sempre cruel. As estratégias de sobrevivência do faminto, no campo e na cidade, certamente são diferentes, mas são sempre degradantes e revelam a desumanidade inerente à sociedade capitalista. O que é importante de ser destacado é o fato de que no Brasil, assim como em muitos outros países, o fenômeno da fome não está restrito ao campo. Há, em geral, uma crença de que na cidade as pessoas conseguem se virar e não passam fome, mas isso não é verdade. Novamente Josué de Castro mostra sua importância e atualidade, pois não se trata de considerar somente aqueles que morrem de fome, mas também, como já afirmamos, aqueles que vivem uma vida toda com fome, e isso é muito mais comum do que se imagina nas grandes cidades. Para se ter uma idéia, a última PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE), realizada em 2002, indica que quase 40% da população total brasileira estava em situação de insegurança alimentar, e destes quase 80% viviam nas cidades.

IHU On-Line - Como se constitui hoje o mapa da fome no Brasil?  

José Raimundo Ribeiro - Pensando na fome no Brasil hoje seu mapa é certamente muito diferente daquele apresentado por Josué de Castro em Geografia da fome na década de 1940. Na década de 1930, Josué de Castro, fez uma regionalização do espaço brasileiro a partir da dieta básica nos diferentes lugares do Brasil. Essa dieta era considerada o resultado da relação do homem com o meio geográfico e foi feita principalmente a partir do estudo da alimentação do camponês. Em Geografia da fome, Josué de Castro retoma essa regionalização e define as áreas de fome no país. Porém, o processo de urbanização (acompanhado da industrialização), que se consolidou desde então, redefiniu a alimentação do brasileiro e impôs uma maior homogeneidade a ela. Um exemplo claro disso é a própria instituição da cesta básica, que é composta por uma série de alimentos idênticos para todo país. Assim, mesmo havendo ainda hoje grandes diferenças entre os principais alimentos consumidos nas diferentes partes do território brasileiro, seria muito difícil regionalizá-lo a partir das dietas da população. Além disso, como indicamos anteriormente, o fenômeno da fome também se urbanizou. Assim, um novo mapa da fome teria de revelar a urbanização desta. De todo modo, gostaria de ressaltar que, para Josué de Castro, o mapa era um meio para entender a realidade e não a finalidade de seus estudos. Atualmente, alguns estudos vêm colocando os mapas como resultado de seus estudos, mapas elaborados unicamente através de índices estatísticos (ou seja, muito diferentes dos mapas produzidos por Josué de Castro), como se eles, por si só, pudessem explicar os fenômenos representados. Por isso, entendemos que a produção de um novo mapa da fome se constitui como um desafio, mas que não pode ser entendido como o resultado final de uma pesquisa, pois não explicaria por si só os conteúdos desse fenômeno.

IHU On-Line - A partir de Josué de Castro, quais seriam as possíveis soluções para o fim da fome no Brasil? Como ele veria o programa Bolsa Família, do governo federal?

José Raimundo Ribeiro - Josué de Castro sempre defendeu a realização do que ele denominava de “plano sistematizado de política alimentar”. Esse plano estava fundamentado em diversas ações que visavam melhorar a produção, a distribuição e o consumo dos alimentos. Entre as ações defendidas por Josué de Castro estão: a realização de uma reforma agrária, como modo de combater o latifúndio e a monocultura; o incentivo técnico e financeiro ao camponês; o estímulo ao cooperativismo; a construção da infra-estrutura necessária para a circulação e distribuição dos alimentos; uma larga campanha que ensinasse e incentivasse os bons hábitos alimentares à população; o controle e orientação da produção de alimentos tendo como objetivo a satisfação das necessidades alimentares da população. Nesse sentido, penso que o Bolsa Família não possa ser caracterizado como esse plano sistematizado reivindicado por Josué de Castro. Se, por um lado, ele aumenta o poder aquisitivo da população, e isso é importante, por outro, seus efeitos não são suficientes para garantir a alimentação adequada de todos os brasileiros. É importante ressaltar também que o governo federal não apenas não realizou a reforma agrária, como também têm incentivado o agronegócio que não produz alimentos para a população brasileira, vide o caso da soja, e mais recentemente da cana de açúcar para a produção de “biocombustíveis”.

IHU On-Line - Como entender a existência da fome num país de tanta abundância de alimentos como o Brasil?

José Raimundo Ribeiro - Primeiro é necessário se perguntar se há de fato uma abundância de alimentos em nosso país. A produção agrícola brasileira é muito grande, porém é alarmante o fato de que o Brasil precise importar arroz, feijão e trigo, para ficarmos apenas com alimentos mais consumidos pelos brasileiros. Isso demonstra que o país não tem uma “soberania alimentar”, reivindicada por diversos movimentos sociais e que pode ser identificada já na obra de Josué de Castro. De qualquer modo, a pergunta é válida, pois o Brasil teria condições de produzir alimentos suficientes para alimentar toda sua população e é necessário responder por que não o faz. Nesse sentido, entendo que é imprescindível se aproximar de uma crítica da economia política que revela como o capitalismo nos impõe uma enorme inversão, a de que os bens materiais, enquanto mercadorias, não existem para satisfazer as necessidades dos homens, mas para realizar a valorização do valor. Em outras palavras, sob o capitalismo não importa para o produtor de alimentos (assim como para o produtor de qualquer outra mercadoria) como e por quem essa mercadoria será utilizada, mas se ela vai lhe render o retorno pelo capital que ele investiu no processo. Além disso, o sentido do desenvolvimento do capitalismo é o de poupar cada vez mais mão-de-obra, o que produz uma massa enorme de desempregados que depende do dinheiro para poder adquirir os alimentos necessários para sua sobrevivência. 

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