Edição 272 | 08 Setembro 2008

Invenção - Chantal Castelli

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André Dick

Editoria de Poesia

Chantal Castelli nasceu em São Paulo (SP), em 1975. Graduou-se em Letras e defendeu dissertação de mestrado sobre a poesia autobiográfica de Carlos Drummond de Andrade na USP. Atualmente desenvolve, na mesma universidade, pesquisa de doutorado sobre o livro Lição de Coisas, também de Drummond.

Além de ter publicado poemas em diversas antologias e revistas impressas, como Cacto (SP), Azougue (SP) e Jandira (MG), e eletrônicas, como Zunái, em 2000, lançou seu primeiro livro individual, Memória Prévia (São Paulo: Com-Arte). Assim como o poeta que estuda, Drummond, Chantal tem uma predileção pela imagem memorialística. Mas ela não dilui o mestre itabirano, e sim segue um caminho de imagens mais sintéticas, depuradas. É como se ela reunisse uma “coleção de cacos e suas flores mínimas”, como escreve no poema “Constelação”, preferindo o recurso da elipse e da fragmentação, além de inserir uma estranheza no discurso, tornando-o menos coloquial, mesmo quando apresenta imagens e figuras referentes diretamente ao cotidiano. Como Drummond e boa parte da tradição moderna brasileira, Chantal visualiza também cidades e gentes do interior, como em “Outra fotografia de Guimarães Rosa” (“Um pé descalço e outro não / o vaqueiro lamenta a rês perdida; / e Rosa / um joelho curvado e outro não / penitencia-se / à meia-luz / da madrugada”) e em “Rosa e o vaqueiro” (“Borbulha a água / e a sede do gado / / O café vertido / no meio-fundo da xícara / derrete insetos / é laço entre os braços / dos dois”). Do mesmo modo, há uma recuperação de espaços familiares que estão ausentes, como em “Revelação”, em versos como “Tento decifrar / uma foto que não há: / ao lado da janela meu pai / e eu / e nosso reflexo no vidro / de uma tarde morta. / / O retrato impossível me fita, / imagem-lembrança de desejo, / provando mudo / que o que resta / não é jamais o uso / dos melhores sonhos, / mas apenas a idéia / viajando na carne” – destacando-se, aqui, a imagem da “idéia”, da, lembrança, “viajando na carne”, ou seja, a ausência se fazendo presente. Neste sentido, há uma tendência de Chantal visualizar pessoas que remetem a lugares e sensações da infância, como nos versos “um dia volto / [...] / ao quarto contíguo / ao tempo em que os pais / receitavam, contra asma, / bicicletas”. No entanto, mesmo essas figuras familiares não garantem uma segurança (a mãe lembra um “rosto sem pátria”), e quem se enuncia poeticamente parece querer apenas os cômodos de um jardim, como em “Diástole”, embora o noticiário internacional traga assuntos que movem também a poesia, em poemas como “Estase” e “Photographia de Promptuario”.

Janela da memória

 Em outros escritos, como “Constelação”, com sua “janela da memória”, Chantal sintetiza também sua poética, voltada a um reagrupamento de imagens dispersas por meio de um olhar sensível. Em “Sem título”, há uma reconfiguração do encontro amoroso: “Não um poema / que descrevesse o desenho / de tua mão / procurando-me esta manhã; / sendo que é / de impalpável fibra / esse aceno. / / Mas um poema / que soubesse dizer / ao menos da perfeita mudez / dessa hora, do primeiro / esboço de luz / saudando o entendimento / de nossos corpos”. O corpo, ao mesmo tempo, é relacionado a objetos, procurando a desautomatização lingüística: “Há um vaso cuja garganta é tão estreita / que não se pode ver o fundo; / um vaso onde nem o dedo mínimo / de um recém-nascido / chega a roçar mais que os lábios”. Existe, com isso, uma constante sensação de desamparo, de o corpo estar solitário, mas extremamente ligado à natureza, como em “Sobre o próximo verão”: “A noite / (não mais alívio), / pausa que recolha o dia / sob as telhas da brisa /onde deitemos / sem qualquer ambição”.

Nos poemas que enviou à IHU On-Line, escritos a partir de passagens pela cidade de Brasília, Chantal compõe uma poesia ao mesmo tempo árida e emotiva – mostrando um talento que desempenha também como fotógrafa, que remete também à menção incessante aos olhos, às pálpebras, de Memória prévia (em versos como “A pálpebra - / felina pupila alonga- / se noturnamente”). As imagens, como em seus outros poemas, parecem revelar apenas um vazio. No entanto, quando o leitor presta mais atenção, descobre elementos existenciais que passam despercebidos, mas são relevantes para o entendimento da escrita.

 

Onde dor é saudade

Na Romênia e aqui
esperando notícias
do jovem arquiteto
em visita ao Oriente
- “quinze dias ao menos
para se amar alguma coisa”.

Mas sobe um pó vermelho às janelas;
a terra vermelha em tudo
que outro arquiteto inventou,
as janelas para medir
o lugar olhado das coisas.

...

 

 

 

 

 

 

na seca
o pneu dos carros
no asfalto
são crianças gritando
no pátio da escola

(para quem escuta
de dentro do quarto
quando perde a hora)

é como ver
sua população doméstica
beber água
na pia do banheiro:
o traseiro empina
um tigre no regato

nem toda beleza
é cadela, meretriz

 

 

 

 

 

 

 

No lago

Não foi fácil escolher o melhor entre os meninos.
Tive de lembrar-lhes a vaca que vimos atolada
no campo, o empenho involuntário do corpanzil,
os espasmos inúteis para sair do brejo.
Sórdida como a visão de um menino que se afoga
e pede socorro.
Disse isso para que todos entendessem a clareza
dessa vontade:
ele é magro e forte o bastante
para deixar-se sugar
por esse verde turvo;
saberá ir e não voltar,
como uma vaca paciente
e sem memória.

 

 

 

 


      Para Francisco Alvim   


vocês acham que não, mas é tão necessário
ainda esse espírito,
porque se anda pela rodoviária
e é uma gente sem cabelo, sem dente,
sem nariz,
mas que produz sombra, existe
– apesar da sombra aqui ser tão vertical,
quase como se fosse sempre meio-dia,
essa luz tão boa para fotografar arquitetura
sem tentar decifrá-la;
os edifícios, como os homens,
incapazes de se organizar sem política,
ao contrário de  folhas, raízes, ventos, insetos.

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