Edição 272 | 08 Setembro 2008

“A Bossa Nova nos pôs diante de um sábio compromisso entre tradição e ruptura”

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Graziela Wolfart

João Vergílio Cuter pensa que a Bossa Nova não introduziu a sofi sticação na música popular e que só tendemos a pensar assim porque não temos memória musical

João Vergílio Gallerani Cuter possui graduação e doutorado em Filosofia, pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor na mesma instituição e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia. Apesar de se declarar não especialista no assunto, Cuter admira a Bossa Nova e a música brasileira, e participa de blogs e grupos de discussão sobre o tema na internet, que foi onde a IHU On-Line encontrou-o. Na entrevista que nos concedeu por e-mail, ele afirma que “a Bossa Nova estava ligada, sem dúvida, à classe média que emergiu com força e consistência no Pós-Guerra. Grande parte de seus artistas vinha da classe média, e a impressão que se tem é que grande parte de seu público também era de classe média”. E completa: “Tudo o que acontecia no Brasil no começo da década de 1960 trazia a marca das mudanças econômicas pelas quais o país vinha passando. Isso vale para a Bossa Nova, para a Jovem Guarda e até para os carros e liquidificadores”.

IHU On-Line - Na sua opinião, a criatividade da Bossa Nova se esgotou e o movimento se banalizou? Ou a Bossa Nova continua viva após 50 anos de existência?

João Vergílio Cuter - A Bossa Nova é menos um “movimento” do que uma constelação de manifestações artísticas muito diferentes entre si que tomaram como ponto de referência a obra de João Gilberto. O que costurava todas essas manifestações num todo mais ou menos coerente era principalmente um novo sistema de avaliação estética - uma nova maneira de “ouvir”, se preferirem. Muitos elementos desse sistema de avaliação continuam operantes, sem dúvida. Ouvimos Guinga  e Seu Jorge,  por exemplo, com uma percepção que não estava disponível na década de 1940. Essa maneira de ouvir, valorizando certas coisas, e não outras é uma herança clara disso que se costuma chamar de “Bossa Nova”.

IHU On-Line - Você considera que a produção da Bossa Nova foi a mais rica e sofisticada da música brasileira?

João Vergílio Cuter - Novamente, se não encararmos a Bossa Nova como um movimento unificado, fica muito difícil de responder a essa pergunta. Quem “pertenceu” à Bossa Nova? Roberto Carlos  está muito mais próximo de João Gilberto, na maneira de cantar, do que Elis Regina,  mas dificilmente diríamos que pertenceu à Bossa Nova, pois se transformou, como João Gilberto, na “bandeira” de uma outra turma, de um outro público. Lúcio Alves, que já estava cantando há mais de uma década quando a Bossa Nova surgiu, está tão próximo dos ideais estéticos da Bossa Nova quanto alguém poderia estar. Um desses ideais estéticos é, sem dúvida, a sofisticação, o apuro formal. O público da Jovem Guarda estava “se lixando” para isso - avaliava a música de um outro ponto de vista. Mas seria um erro achar que a Bossa Nova nos deu a produção mais rica e sofisticada da música brasileira. Pixinguinha e Ary Barroso são autores sofisticadíssimos. Qualquer pessoa que tente tirar uma música como “Na batucada da vida” no violão perceberá isso imediatamente. Orlando Silva foi um cantor sofisticadíssimo, que utilizava ornamentos musicais específicos para cada peça que interpretava - ouçam, por exemplo, o legatto que ele faz para recitar os versos iniciais de “Cidade brinquedo”, ou a delicadíssima e emocionante interpretação que ele dá para “Sertaneja”. Nada a ver com vozeirão, com exibição gratuita de dotes vocais. A Bossa Nova não introduziu a sofisticação na música popular. Só tendemos a pensar assim porque não temos memória musical, porque é praticamente impossível encontrar um disco de Lúcio Alves nas prateleiras de nossas lojas de discos.

IHU On-Line - Quem era o público alvo da Bossa Nova quando do seu surgimento? Quem se queria atingir?

João Vergílio Cuter - A Bossa Nova estava ligada, sem dúvida, à classe média que emergiu com força e consistência no Pós-Guerra. Grande parte de seus artistas vinha da classe média, e a impressão que se tem é que grande parte de seu público também era de classe média. É preciso fazer estudos para se saber até que ponto isso é mesmo verdade, e fazer recortes mais finos. Mas, mesmo assim, é preciso ver as coisas com cuidado. De um certo ponto de vista, tudo que acontecia no Brasil no começo da década de 1960 trazia a marca das mudanças econômicas pelas quais o país vinha passando. Isso vale para a Bossa Nova, para a Jovem Guarda e até para os carros e liquidificadores.

IHU On-Line - Quais as diferenças estéticas e conceituais entre samba-canção, samba-choro, samba-sincopado e “Bossa Nova pura”?

João Vergílio Cuter - O que estamos chamando de “Bossa Nova pura”? João Gilberto? Nesse caso, por incrível que possa parecer, as identidades são muito mais importantes e numerosas do que as diferenças. O Luis Nassif  tem toda a razão quando nota que a grande sacada de João Gilberto foi perceber que poderia utilizar a batida de violão do Garoto para reinterpretar toda a tradição de que ele mesmo provinha. Não eram apenas os diversos tipos de samba. Até mesmo um bolero, como “Besame mucho”, cabe dentro da fórmula. No plano da interpretação vocal, João Gilberto retirou todos os ornamentos que pudessem estar ligados à expressão de emoções. De um ponto de vista “emocional”, digamos assim, você não verá diferença nenhuma entre sua interpretação do “Barquinho” e de “Ave Maria no morro”. Ele não declama a letra. Diz a letra, somente, e utiliza na interpretação o que poderíamos chamar de ornamentos “puramente musicais” - divisão, ritmo, harmonização sofisticada, precisão melódica. Isso transforma a letra num mero detalhe da canção como um todo. Nisso, é importante notar, ele quase não teve seguidores. Mesmo Nara Leão, que foi uma das que seguiu mais de perto a fórmula pura de João Gilberto, reintroduz um mínimo de expressão emocional em suas interpretações. Com Elis Regina, a emoção fará sua reentrada triunfal, bem no coração da Bossa Nova. Elis Regina é a antítese de João Gilberto, se os considerarmos isoladamente. O fato de podermos dizer que ambos pertenceram à Bossa Nova já deveria ser uma razão definitiva para não considerarmos a Bossa Nova um “movimento”.

IHU On-Line - Como se caracterizava a música popular pré-Bossa Nova? Quais as influências para a constituição deste novo movimento e quais os grandes nomes que oferecem um prelúdio à Bossa Nova?  

João Vergílio Cuter - Ninguém ofereceu nenhuma espécie de “prelúdio” à Bossa Nova. Ninguém “anteviu” nada. Nós é que, numa visão retrospectiva, e utilizando um sistema de avaliação estética que se fixou a partir de um certo momento, relemos a obra de um cantor estupendo como Lúcio Alves sob esse prisma - como se ele fosse um “precursor” da Bossa Nova. Se utilizarmos esse conceito um pouco fluido de “Bossa Nova” que se aplica tanto a João Gilberto quanto a Elis Regina, então ela já estava toda lá. Não “falta” nada, digamos assim, em Lúcio Alves. Ele não tinha que ter feito um milímetro além daquilo que fez para ser tão moderno e tão inovador quanto foi. Mas não se transformou em bandeira, em modelo, em ponto de referência. Continuou sendo até o final da vida aquilo que sempre foi - um dos maiores cantores que o Brasil já teve. Se tivesse começado a carreira depois de João Gilberto, poderia cantar exatamente como cantava, e seria considerado um cantor de Bossa Nova do mesmo jeito, e não como um cantor que tinha “um pé no passado”, e que não teria conseguido dar o “salto definitivo”.

IHU On-Line - O senhor pode explicar por que coloca João Gilberto como núcleo da Bossa Nova? Em que sentido considera que o músico foi inventado pela Bossa Nova?

João Vergílio Cuter - De um certo ponto de vista, isso expressa apenas uma obviedade: João Gilberto não criou nada além daquilo que criou - um modo próprio de interpretar canções e de utilizar um certo acompanhamento de violão, que ele herda de Garoto. O que aconteceu, porém, foi que ele se viu posto no centro de um movimento de revaloração da música popular. Por uma série de razões, as pessoas passaram a avaliar as músicas como “boas” ou “más” de uma outra maneira, e tomaram João Gilberto como uma espécie de padrão de referência. Se alguém estivesse defendendo a tese de que um cantor não tinha que ter potência vocal para ser um bom cantor, João Gilberto (e não Mário Reis) era o exemplo a ser dado. Diversos cantores começam a se apresentar acompanhados apenas de um violão, e novamente ele era a referência. Se uma pessoa tocava um violão numa festinha, usava a batida semelhante à de João Gilberto, e aquele modo de tocar era positivamente valorizado. “Bossa Nova” é o nome que se deu a esse novo sistema de avaliação da música popular - um sistema suficientemente elástico para comportar expressões musicais extremamente diversificadas no seu interior. João Gilberto teria sido um músico tão grande quanto foi independentemente de ter sido eleito como padrão de referência de toda uma geração. Lúcio Alves jamais cumpriu esse papel, e por isso não é considerado o “criador” da Bossa Nova. É esse o João Gilberto que foi “inventado” pela Bossa Nova: o padrão de referência, o metro com que muitos outros artistas anteriores e posteriores a ele passaram a ser medidos. Ele inventou um novo modo de interpretar canções? É claro que inventou. Mas todo grande cantor inventa um modo novo de interpretar canções, e o dele, eu repito, teve pouquíssimos seguidores. É isso, aliás, o que faz de João Gilberto um cantor genial: ele é sui generis, diferente de tudo que veio antes e depois. O que ele definitivamente não inventou foi a Bossa Nova. Foi inventado por ela: seu lugar na história da música popular, como “fundador” de uma espécie de “movimento”, foi criado pelas pessoas que passaram a ver nele um ponto de referência fixo. Poderia ter sido Lúcio Alves? Poderia ter sido Lúcio Alves; por que não? Acontece que não foi ele o eleito, só isso.

IHU On-Line - Em que medida a Bossa Nova fez com que as pessoas passassem a avaliar a música popular utilizando uma outra escala de valores? Que valores são esses?

João Vergílio Cuter - Toda época caracterizada por uma grande explosão criativa costuma ser seguida por outra em que essa criatividade acaba se diluindo. É nessa hora que surgem os epígonos - artistas que produzem obras “à maneira” de seus antecessores, mas já sem o mesmo sabor de coisa nova, tendo que, muitas vezes, exagerar em determinados aspectos, numa busca de novidade a qualquer custo. Não são necessariamente maus artistas. São como garimpeiros que tentam explorar um veio em vias de extinção. Os dois grandes momentos da nossa música popular foram as décadas de 1930 e de 1960. As décadas de 1940 e 1950, apesar de terem artistas de primeiríssima grandeza, tinham no centro do palco alguns desses epígonos. Para pessoas que, por qualquer motivo, têm um convívio intenso com a música, isso começa a ser um pouco irritante. Começa a surgir o desejo de algo novo - de uma nova escala de valores, desvinculada daquele universo antigo. Creio que nas décadas de 1940 e de 1950 havia no ar uma necessidade difusa de se buscar uma expressão mais natural das emoções, e de se dar ênfase a outros aspectos do talento musical que não se resumissem à mera capacidade de emitir agudos e graves no limite da voz humana. Uma série de artistas começa a explorar esse novo território, e alguns conseguem se impor no mercado em função de um talento inegável. Mas ainda são um pano de fundo do cenário mais geral. Exceções à regra. O que João Gilberto apresenta, quando volta da Bahia, é um modelo musical que leva ao limite alguns desses valores difusos. Ele não diminui simplesmente a carga emocional de suas interpretações, nem reformula a expressão das mesmas. Ele zera a emocionalidade. A interpretação nos emociona, pois é maravilhosa, mas não há nenhuma tentativa de traduzir, na forma de ornamentos, uma emoção que estaria “na alma do cantor”. Ao mesmo tempo, dono de uma afinação invejável, ele não se limita a conter a exibição de potência vocal. Ele zera essa exibição, pondo toda a ênfase em outros aspectos, como a precisão rítmica e melódica. Essa radicalidade é que propiciou sua transformação de artista em bandeira. Seu primeiro LP, além disso, acabou assumindo um tom programático. O título - Chega de saudade - era quase uma palavra de ordem. Isso fez com que todo aquele novo sistema de avaliação, que estava difuso, viesse para o primeiro plano, transformando o cantor João Gilberto no João Gilberto que criou a Bossa Nova.

IHU On-Line - Qual a importância de Garoto para a "invenção" da Bossa Nova, enquanto arte?

João Vergílio Cuter - A respeito disso, a melhor coisa a fazer é remeter o leitor ao blog do jornalista Luis Nassif. A descoberta é dele. Basta ouvir as gravações que estão disponíveis ali. Não se trata de mera semelhança. A batida é exatamente a mesma. http://www.projetobr.com.br/web/blog?entryId=4400

IHU On-Line - Como o senhor descreve o período histórico e político brasileiro no surgimento da Bossa Nova?

João Vergílio Cuter - É um período de enorme efervescência cultural, em que a idéia de renovação estava no ar. Valeria a pena comparar a música de João Gilberto à arquitetura de Oscar Niemeyer . Como João Gilberto, Oscar Niemeyer também se transformou num símbolo, num ícone, num ponto de referência. Ambos passaram a simbolizar um Brasil que mudava rapidamente, adquirindo feições novas. Reparem que Niemeyer faz na arquitetura algo muito semelhante àquilo que João Gilberto fez em sua música. Ao invés de fazer com que o ornamento fosse um acréscimo à estrutura, Niemeyer faz com que a própria estrutura do prédio seja o ornamento. É basicamente isso que João Gilberto faz quando canta. A estrutura musical deve ser auto-suficiente, apagando a subjetividade do cantor, que não se “despeja” mais sobre a música. É isso que dá às suas interpretações esse ar absolutamente enxuto, minimalista. Ninguém fez isso com mais radicalidade do que ele.

IHU On-Line - Em que medida a Bossa Nova pode nos ajudar a pensar o Brasil?

João Vergílio Cuter - A Bossa Nova, em suas múltiplas faces e manifestações, nos pôs diante de um sábio compromisso entre tradição e ruptura. Ressaltei há pouco a radicalidade com que João Gilberto rompeu com um certo modelo de interpretação musical. Mas é importante ressaltar igualmente o quanto ele se mostrou atento, ao longo de toda a sua carreira, à tradição de que ele era herdeiro. Grande parte de suas interpretações recriam sucessos das décadas de 1930 e 1940, trazendo-os de volta a um ambiente contemporâneo, e fazendo-os conviver em perfeita harmonia com a música de Tom Jobim. Não se tratava, ali, de uma transposição mecânica da novidade externa, como aconteceu com a Jovem Guarda, mas de uma reformulação do nosso passado que, mesmo quando tentava superá-lo, mantinha-se atento a ele. Isso perpassa toda a geração de cantores e compositores que surgiu na década de 1960 em torno do rótulo “Bossa Nova”. É por isso mesmo que a Bossa Nova despertou um interesse externo que a Jovem Guarda nunca foi capaz de despertar. Ela tinha raízes em nossa cultura, até mesmo nos momentos em que estava negando parte dessa tradição cultural, na tentativa de dar um passo adiante. Eu acho que isso é uma lição sobre a qual valeria a pena refletir.

IHU On-Line - Qual a importância do programa “O fino da bossa”, que era comandado por Elis Regina, para a constituição e a propagação do movimento Bossa Nova?

João Vergílio Cuter - O programa foi o melhor exemplo daquilo em que eu tenho procurado insistir: o caráter de “constelação” que a Bossa Nova teve, enquanto movimento. Só o nome de Elis Regina já deveria servir para nos alertar para esse ponto. Ela é, como eu já disse, a antítese completa de João Gilberto. Ela dá respostas completamente diferentes aos mesmíssimos problemas estéticos que João Gilberto tentou enfrentar. Tratava-se de superar uma certa expressão estereotipada das emoções. Só que, ao invés de zerar esse tipo de expressão, o que ela faz? Rompe com o estereótipo. Se é para expressar emoções, vamos expressá-las, mas de forma psicologicamente sustentável, ou seja, com autenticidade e força. A potência vocal, quando exibida, nunca é gratuita. Tem sempre um porquê, e um momento preciso para acontecer. Além disso, a voz solta vem sempre associada a piruetas técnicas complicadíssimas, que deixam bastante claro ao ouvinte que potência vocal é apenas um pequeno detalhe do edifício.

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