Edição 270 | 25 Agosto 2008

Roland Barthes: o intérprete dos signos

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André Dick

A crítica literária Leyla Perrone-Moisés analisa Barthes como um autor que tinha muita consciência do caráter histórico e provisório de qualquer discurso

Segundo Leyla Perrone-Moisés, a importância de Roland Barthes (1915-1980) para uma compreensão da cultura é fundamental. Por essa e outras razões, ela organiza a Coleção Roland Barthes para a Martins Fontes. Nela, já foram lançadas obras como O rumor da língua, O grão da voz, Sade, Fourier, Loyola, Fragmentos de um discurso amoroso, além de O neutro, Como viver junto e A preparação do romance  Volumes I e II – que reúnem aulas dadas pelo autor no Collège de France. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Leyla considera que “Barthes estudou várias manifestações culturais da sociedade, e deixou textos sobre várias delas” e, ainda, que “diferentemente dos sociólogos, o que lhe interessava não eram os fenômenos sociais por eles mesmos, mas o modo como estes eram expressos”.

Nesta entrevista, ela fala também sobre a ligação de Barthes com Derrida, filósofo que lhe indicou o fim do estruturalismo ortodoxo. Para a crítica brasileira, Barthes, “assim como se cansou do projeto totalizador da semiologia, aborreceu-se progressivamente com o dogmatismo do discurso político militante”. Barthes também se sentia honrado quando o chamavam de escritor. Por isso, como afirma Leyla, sua “escrita é precisa, original e saborosa como a dos verdadeiros escritores” e “hoje podemos dizer tranquilamente que Barthes foi um grande escritor, afirmação que lhe parecia abusiva”. Leyla ainda comenta sobre a contestação que Barthes fazia à mímesis aristotélica e sobre os livros que serão publicados este ano pela coleção dedicada ao autor, Sobre Racine e O sistema da moda.

Leyla Perrone-Moisés possui, pela Universidade de São Paulo (USP), graduação em Letras Neolatinas e doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa). É coordenadora do Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados da USP, desde 1988, e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP desde 1996. Publicou, entre outros, os livros Roland Barthes – O saber com sabor (São Paulo: Brasiliense, 1983), Flores da escrivaninha (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), Inútil poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro (3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001), Texto, crítica, escritura (3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005) e Vira e mexe, nacionalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

IHU On-Line - Em todos os livros da Coleção Roland Barthes, organizada pela senhora, há uma grande atenção dada, em suas introduções, aos elementos que os formaram, inclusive nos inéditos, em que há os vários interesses do escritor: por literatura, política, teatro, música, moda. Barthes, mais do que um crítico, foi um crítico de cultura, no sentido mais amplo, uma vez, que como a senhora já disse, ele não tinha um lugar definido?

Leyla Perrone-Moisés - De fato, ele foi um crítico de cultura, no sentido amplo. Formado em sociologia, Barthes estudou várias manifestações culturais da sociedade, e deixou textos sobre várias delas. Mas ele era um homem da linguagem e, diferentemente dos sociólogos, o que lhe interessava não eram os fenômenos sociais por eles mesmos, mas o modo como estes eram expressos. Ele acreditava que, nas formas linguageiras, podíamos ler os sentidos e a ideologia que fundamentam a sociedade.

IHU On-Line - Na introdução de O rumor da língua, realiza-se uma análise sobre as fases atravessadas por Barthes. No auge do estruturalismo, Barthes parecia querer atingir uma “ciência da literatura” e, mais tarde, após Derrida, teria tomado um caminho mais flexível. Barthes foi, como Derrida, filósofo presente também em seus estudos, um dos responsáveis por “encerrar” com o estruturalismo digamos mais ortodoxo? Há uma espécie de volta, por exemplo, aos elementos biográficos, em suas aulas inéditas reunidas em A preparação do romance?

Leyla Perrone-Moisés - Derrida  criticou o estruturalismo antes que Barthes o fizesse. Desde A escritura e a diferença (1967),  ele apontou o idealismo do signo lingüístico saussureano, no qual se inspirava o estruturalismo. Barthes se desgostou pouco a pouco da “ciência da literatura”, e rompeu com esse projeto em O prazer do texto (1973).  Não foi apenas em seus últimos cursos que ele reformulou as teses de sua fase semiológica.

Quanto à recuperação da biografia dos escritores, ele já havia proposto o estudo dos “biografemas” em Sade, Fourier, Loyola (1971),  e aplicado esta proposta a ele mesmo, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975).

Barthes não foi diretamente influenciado por Derrida, mas tinha muitas afinidades com o filósofo. Tratei das relações intelectuais e afetivas entre ambos no texto intitulado “Aquele que desprendeu a ponta da cadeia”, publicado em Jacques Derrida: pensar a desconstrução (Org. Evando Nascimento São Paulo: Estação Liberdade, 2005).

IHU On-Line - No seu livro Aula, Barthes dá uma espécie de resposta aos acontecimentos de Maio de 68, haja vista que ele foi considerado um conservador pelos alunos, como a senhora lembra na introdução feita ao volume de inéditos Política. 40 anos depois, como analisa o pensamento mais voltado à política de Barthes. Ele estaria sintetizado em seus artigos e aulas, como aquelas reunidas no livro O neutro?

Leyla Perrone-Moisés - Na introdução a que você se refere tratei longamente das conflituosas relações de Barthes com a política. Ele não abandonou, até o fim da vida, a fundamentação marxista de suas posições. Mas, assim como se cansou do projeto totalizador da semiologia, aborreceu-se progressivamente com o dogmatismo do discurso político militante que, segundo ele, produzia uma doxa diversa da doxa social burguesa, mas igualmente autoritária. Por temperamento, Barthes não era um revolucionário, mas um anarquista.

IHU On-Line - Barthes é um autor atemporal, mas que viveu seu tempo: estão em sua obra experiências como o contato com a cultura oriental, com o cinema francês dos anos 60, com uma guinada anti-acadêmica etc. Num dos seus ensaios sobre a obra de Barthes, ele teria vivido, no fim de sua vida, “a triste época da ‘morte das ideologias’, da desconfiança nos signos, da saturação das mensagens reduzidas ao simples estado de ruído”. Na sua opinião, Barthes anteviu uma era que se aprofundou nessa perda de referências?

Leyla Perrone-Moisés - Eu não diria que Barthes é “um autor atemporal”, porque ele era muito consciente do caráter histórico e provisório de qualquer discurso, inclusive do seu. Eu diria que ele é “um autor de longa duração”, já que, quase quarenta anos depois de sua morte, a maior parte de suas propostas teóricas se mantém atual.

Com a agudeza de visão que o caracterizava, ele viu os sinais da chamada “pós-modernidade”, e deixou vários registros dessa intuição. Certamente não teria lhe agradado viver uma época de perda de referências, porque toda a sua obra foi pautada em determinados valores éticos e estéticos da modernidade.

O imaginário de Lacan via Barthes

Ele já se interessava pela psicanálise antes de ler Lacan,  mas o fato de este afirmar que “o inconsciente é uma linguagem” o atraiu para sua obra. Entretanto, como fez com vários pensadores de outras áreas, Barthes usou os conceitos de Lacan de modo pessoal e pouco ortodoxo. Para o psicanalista, o “imaginário” é o campo do auto-engano e da neurose. Barthes resgatou o imaginário como fonte da criação artística, e reivindicou a exploração se seu próprio imaginário nos cursos que proferiu no Collège de France.

IHU On-Line - Em Altas literaturas, a senhora fala do escritor que também atua como  crítico. Em livros como Fragmentos de um discurso amoroso, Incidentes e Roland Barthes por Roland Barthes, o crítico francês, que se sentia honrado quando alguém o chamava de escritor, apresenta, fascinado que era por Proust, um lado romancista, recortando fragmentos de sua história, ou ela apenas entreviu essa passagem e é difícil avaliá-lo sob tal perspectiva?

Leyla Perrone-Moisés - Barthes foi escritor enquanto ensaísta. Sua escrita é precisa, original e saborosa como a dos verdadeiros escritores. A partir de seu momento histórico, e depois dele, as distinções genéricas rígidas foram abandonadas na prática da literatura e, atualmente, o ensaio está plenamente integrado em muitas obras de ficção. Por isso, hoje podemos dizer tranquilamente que Barthes foi um grande escritor, afirmação que lhe parecia abusiva.

No fim de sua vida, saudoso da grande literatura do passado, concebeu o projeto de escrever um romance. Mas ele era demasiadamente crítico para poder voltar a um gênero que reconhecia como plenamente realizado no passado. Para ele, escrever um romance seria fazer uma obra como a de Proust,  e esta já estava feita.

Num colóquio dedicado a Barthes em março deste ano, em Paris, foi exposta uma tese interessante. A de que A preparação do romance  é uma obra conceitual, como aquelas produzidas nas artes plásticas. A obra (o romance) foi substituída pela descrição de seu projeto e de sua fatura, descrição que se torna ela mesma obra de arte

A presença poética em Barthes

Barthes se dedicou muito mais ao estudo da prosa de ficção do que à poesia. Em O grau zero da escrita,  ele manifestava certo desconforto com a poesia moderna, que lhe parecia inóspita. Mas ele reconheceu a importância de Mallarmé  na história da literatura e, desde a Aula,  referiu-se a ele com freqüência. A poesia também está muito presente em A preparação do romance, sob a forma do haicai japonês, estudado por ele com extraordinária sensibilidade.

IHU On-Line - Como aparece num dos textos de A aventura semiológica,  Barthes era contrário à visão aristotélica de mímesis. Alunos dele, como Antoine Compagon, em O demônio da teoria, contestam muitos argumentos de seus argumentos, voltando a Aristóteles como uma espécie de guia ainda definitivo da literatura. Era objetivo de Barthes desconstruir o discurso clássico? Mais: o discurso de Barthes se tornou “clássico” como o de Aristóteles, mesmo com menos distância para avaliarmos isso, ou essa aproximação é indevida?

Leyla Perrone-Moisés - A importância de Aristóteles, não só para o estruturalismo, mas para toda a moderna teoria literária, é grande demais para ser tratada numa resposta de entrevista. Barthes não contestou Artistóteles,  contestou apenas a concepção da mímesis como reflexo do real. Na verdade, sua concepção do realismo como “efeito de real”, já está presente na Poética de Aristóteles. Quanto a Compagnon,  ele é um excelente teórico e o melhor discípulo de Barthes, mas a meu ver mais conservador do que o mestre (veja-se Os anti-modernos).

IHU On-Line - A coleção que a senhora organiza relançará dois livros de Barthes: O sistema da moda e Sobre Racine. O primeiro é voltado a uma análise semiótica do mundo do vestuário e Sobre Racine despertou a conhecida polêmica de Barthes com o crítico francês Raymond Picard, a qual a senhora analisa em seu livro sobre Barthes. O que torna esses livros ainda tão contemporâneos e atraentes para o leitor atual?

Leyla Perrone-Moisés - O sistema da moda, publicado no auge da semiologia, pertence àquela fase que Barthes renegou posteriormente. Apesar disso, o livro foi pioneiro ao tomar o discurso sobre a moda como tema, e continua indispensável para os estudiosos do assunto.

O alvoroço provocado por Sobre Racine, na época de sua publicação, e sua rejeição pelos professores da Sorbonne eram mais do que justificados. O tempo deu a vitória à “nova crítica”, inspirada nas ciências humanas. Sobre Racine, cuja revisão fiz há alguns dias, é um livro deslumbrante, um dos melhores escritos por Barthes como crítico. É um livro de grande inteligência e honestidade, pois questiona os fundamentos ideológicos da crítica literária. É pena que os leitores brasileiros atuais talvez não conheçam suficientemente a obra de Racine e sua fortuna crítica, para avaliar as inovações trazidas por Barthes à leitura do autor clássico. De qualquer modo, o capítulo teórico final, intitulado “História ou literatura?” permanece espantosamente vivo. Todos os críticos literários e professores de literatura deveriam ler com atenção esse capítulo.

IHU On-Line - Como pensa que Barthes veria o mundo da literatura, a qual dizia amar de um “modo dilacerante”, dominado muitas vezes pelos estudos multiculturais que parecem antes estudar qualquer elemento extraliterário menos os livros e obras?

Leyla Perrone-Moisés - O amor de Barthes pela literatura era “dilacerante” porque ele pressentia, no fim de sua vida, a banalização da prática literária e o desprestígio que atingiria os estudos dessa área. Por ter-se apoiado na sociologia e na psicanálise, e por ter sido um desmistificador das ideologias, Barthes abriu caminho aos “estudos culturais”. Mas se tivesse visto a literatura tratada como mero documento, e utilizada para fins militantes, como ocorre nos “estudos culturais”, certamente os teria rejeitado.

 

Saiba mais sobre Barthes

Roland Barthes nasceu em Cherbourg, em 1915, e morreu em Paris, em 1980. Numa entrevista concedida a Jean Thibaudeau (In: Inéditos, vol. 4 – Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005), ele disse: “Meus estudos foram primeiramente no liceu de Bayonne, depois em Paris, no liceu Montaigne e em seguida, até o fim, no liceu Louis-Le-Grand. Dois meses depois de começar o bachearelado em filosofia, no dia 10 de maio de 1934, tive uma hemoptise e fui fazer um tratamento livre nos Pireneus, em Bedous, no vale do Aspe. Esse incidente interrompeu minha ‘vocação’: como era ‘bom em letras’, até ficar doente queria fazer a École Normale Supérieure; mas, voltando a Paris em 1935, contentei-me em preparar uma licenciatura em letras clássicas [..]”. A partir dos anos 1960, Barthes fez parte do movimento estruturalista, influenciado pelo lingüista Ferdinand de Saussure.

Ele utilizou a análise semiótica em revistas e propagandas, destacando seu conteúdo político. Em Mitologias, por exemplo, analisa os sistemas de códigos que nos são transmitidos e adotados como padrões. Segundo ele, esses conjuntos ideológicos eram às vezes absorvidos sem que se notasse, o que possibilitava e tornava viável o uso de veículos de comunicação para a persuasão.  

Entre suas obras, se destacam O grau zero da escrita (1953), Elementos de Semiologia (1965) S/Z (1970), O prazer do texto (1973), Roland Barthes por Roland Barthes (1975) e Fragmentos de um discurso amoroso (1977).

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