Edição 268 | 11 Agosto 2008

Síntese do Brasil, nosso veneno e nossa delícia

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André Dick e Márcia Junges

Para ser deglutido, ao invés de devorado, Macunaíma é um livro cubista, de crítica nacionalista e faz uma colagem de inúmeros aspectos. Polimorfi a do personagem é nosso veneno e nossa delícia, define a crítica literária Noemi Jaffe

De acordo com a escritora Noemi Jaffe, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a polimorfia do anti-herói Macunaíma, ora formiga, ora pé de urucum, ora preto retinto, é um dos traços principais e mais belos da obra. Assim, Mário de Andrade “sintetiza o Brasil, tão difícil de definir e, em muitos casos, insolúvel também por causa dessa dificuldade. Nosso veneno e nossa delícia”. Um livro cubista, de forte crítica nacionalista, é uma “colagem de vivências, amizades, lendas indígenas e mitológicas de vários países, língua falada e escrita, história antiga e moderna”. Para Jaffe, esse não é um livro para ser “devorado”, mas para ser deglutido aos poucos, “indo, voltando, relendo”.
Jaffe é colaboradora do jornal Folha de S. Paulo. Atua como professora do ensino médio e escritora. É doutora em Literatura Brasileira pela USP. Escreveu Macunaíma (São Paulo: Publifolha; Coleção Folha Explica, 2001) e Ler palavras, ver imagens (São Paulo: Global, 2003).

IHU On-Line - Até que ponto os acontecimentos da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, do crescimento da cidade, da amizade com Oswald de Andrade e outros intelectuais, foi importante para Mário de Andrade ter escrito Macunaíma? E, dentro desse contexto, na sua visão, quais foram as influências literárias de Mário de Andrade ao escrever Macunaíma?

Noemi Jaffe - No livro Roteiro de Macunaíma, de Cavalcanti Proença , a maior parte das influências que Mario de Andrade sofreu na escrita de Macunaíma está relatada. O próprio Mário dizia que seu livro era um “plágio”. Na verdade, Macunaíma é uma colagem de vivências, amizades, lendas indígenas e mitológicas de vários países, língua falada e escrita, história antiga e moderna. Acredito que tudo que Mario de Andrade tinha vivido e sobre o qual tinha refletido entrou na produção de Macunaíma, que é um livro cubista, mas com forte crítica nacionalista.

IHU On-Line - Quais são os principais experimentos da obra em termos de estrutura, enredo, linguagem e estilo, por meio de sua textualidade? Nesse sentido, como Mário faz a reutilização do folclore, a reprodução de uma fala brasileira, de narrativas orais indígenas e crendices populares, e como se dá o enfoque sobre o desenvolvimento da cidade de São Paulo, em oposição a outros espaços que continuam ainda inexplorados país afora?

Noemi Jaffe - Como disse acima, a obra tem vários elementos cubistas, como o multiplicidade de pontos de vista narrativos, a confusão espacial e temporal, a não linearidade e a mistura de registros. O capítulo “Carta pras Icamiabas”, por exemplo, gera muita dificuldade de compreensão da parte dos leitores, que muitas vezes não compreendem a linguagem empostada e a função narrativa do capítulo no meio do livro. Mas é só prestar um pouco mais de atenção (aliás, atenção é fundamental na leitura desse livro), para ver que é uma crítica ao parnasianismo e a um certo oportunismo misturado com ingenuidade, da parte do personagem. Macunaíma também faz uma crítica emocionante ao desenvolvimento, no capítulo de sua chegada à cidade, que é surpreendentemente válida até hoje. O livro mostra muito bem as diferenças de urbanização e de desenvolvimento social nas várias regiões do Brasil, que infelizmente ainda perduram.

IHU On-Line - Quais foram as críticas obtidas na época do lançamento do livro? Quem leu Macunaíma estranhou a utilização de uma terminologia e de uma sintaxe estranhas?

Noemi Jaffe - Sim, Macunaíma obteve recepção dúbia, de celebração por parte dos modernistas e de seus entusiastas, e de muita rejeição também. Como aliás, ainda acontece.

IHU On-Line - O personagem Macunaíma costuma ser visto como um retrato do que costuma ser o estereótipo do brasileiro: malandro, preguiçoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), ingênuo, desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sendo feita? Que paralelos você traçaria entre o "herói sem caráter" e o brasileiro do jeitinho? É possível aproximá-los? Por quê?

Noemi Jaffe - Há muitos enganos nessa redução de Macunaíma a esse estereótipo, a meu ver, como também no próprio estereótipo dessa imagem do brasileiro. A obra Macunaíma contém muitos elementos críticos ao próprio personagem e à sua dificuldade em levar as coisas adiante. Mas mostra um Macunaíma amoral, não imoral, muitas vezes melancólico, que tem um objetivo e parte em busca dele até consegui-lo (a muiraquitã) e que sabe lançar grandes maldições sobre quem não o soube receber, além de boas interpretações sobre o Brasil também (pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são). Por outro lado, o estereótipo do brasileiro malandro e improvisador também não corresponde à realidade. Como diz Chico Buarque , “o malandro pra valer, não espalha, aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal” e a guerra no Rio já não trata mais de malandros ingênuos.

IHU On-Line - Como entender a polimorfia do “anti-herói” que ora é formiga, ora é pé de urucum, ora é preto retinto?

Noemi Jaffe - É um dos traços principais e mais belos de Macunaíma, a meu ver. Dessa forma, ele sintetiza o Brasil, tão difícil de definir e, em muitos casos, insolúvel também por causa dessa dificuldade. Nosso veneno e nossa delícia.

IHU On-Line - Que aspectos você destacaria quanto à crítica que Mário de Andrade faz a língua portuguesa escrita? Seguindo esse caminho, que parecia, sobretudo, uma crítica ao parnasianismo, continua contemporânea a tentativa de Mário “abrasileirar” a linguagem também literária?

Noemi Jaffe - Acredito que continua muito atual. Ainda vemos uma certa hegemonia de padrões desnecessários na linguagem jornalística, teórica e principalmente na linguagem acadêmica, muitas vezes presa a rigores do século XIX.

IHU On-Line - Como o desprezo pelo mecanismo geográfico-temporal convencional dá cadência à obra?

Noemi Jaffe - É essa dança assimétrica e, em certa medida, difícil, que confere graça (entre outras coisas) a Macunaíma. Não é certamente um livro para devorar (trocadilho incluso). É um livro para deglutir lentamente, indo, voltando, relendo. É uma cadência vertiginosa e também lenta.
 
IHU On-Line - Há estudos de respeito sobre a obra Macunaíma (como os de Gilda Mello e Souza , Haroldo de Campos , M. Cavalcanti, entre outros). Poderia destacar, como especialista, alguns que considera de maior relevância para compreender o personagem marioandradino?

Noemi Jaffe - Adoro os dois estudos, com suas contradições e tendo a concordar com os dois, embora eles sejam até contraditórios (mas suas abordagens são muito distintas). Gosto muito também dos ensaios de José Miguel Wisnik , que abarca as diferenças de forma mais circular, e de Alfredo Bosi. Além de lembrar sempre como é fundamental o livro de Cavalcanti Proença.

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