Edição 268 | 11 Agosto 2008

Brasilidade. Identidade múltipla e caótica

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André Dick e Márcia Junges

Para o crítico literário Robson Pereira Gonçalves, “Macunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil”, mas uma obra de arte que inventa sentidos. Sua possibilidade de síntese reside na transfiguração dos “múltiplos que não se unificam neuroticamente na realidade brasileira”

Macunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil, antes é a obra de arte que inventa sentidos, rompe com as neuroses dos sentidos dados e aponta para uma identidade de última instância, que é uma identidade sem identificação”, defende o crítico literário Robson Pereira Gonçalves. A declaração faz parte da entrevista a seguir, que concedeu com exclusividade por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “a possibilidade se síntese em Macunaíma estaria nessa transfiguração que a narrativa faz daqueles múltiplos que não se unificam neuroticamente na realidade brasileira, porque a busca da unidade numa identidade é uma busca neurótica, é apagamento das diferenças”. Questionado se o brasileiro ainda tem a sua muiraquitã, ele responde que ela, “tal como uma perversão, simboliza os nossos males e nossas aversões ao trabalho, ao conhecimento e saber e, muito mais, à construção de uma sociedade mais justa. Nessa esteira, a muiraquitã é o jogo do bicho, as loterias que assolam esses sonhos e embalam a esperança – individual – de nos tornarmos felizes”.

Graduado em Letras, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Robson é mestre em Letras, pela Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com a tese, já publicada, Macunaíma: carnaval e malandragem (Santa Maria: Imprensa Universitária, 1982). Doutorou-se em Lingüística e Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese A questão do sujeito em Fernando Pessoa. Ele leciona na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos O sujeito Pessoa - Literatura e psicanálise (Santa Maria: Edição Mestrado em Letras-UFSM, 1995), Fábulas da província - Crônicas sobre arte e cultura (Santa Maria: Edição Mestrado em Letras-UFSM, 1999) e Fábulas da subjetividade - Literatura & psicanálise (Santa Maria: UFSM/Reitoria/PRAE, 2002).

IHU On-Line - De que modo Macunaíma pode ser visto sob o ângulo carnavalesco da cultura brasileira? Ele pode ser percebido por meio de quais elementos na obra?

Robson Pereira Gonçalves - Já que se trata de uma entrevista, diria por conforto que a percepção carnavalesca do mundo é operada por quatro categorias: a familiaridade, onde são suspensas as restrições às normas sociais e ao relacionamento humano; a excentricidade, que afasta a repressão e a censura; as mésalliances que, pelo carnaval, aproximam o sagrado do profano, o sublime do grotesco, o sério do cômico, o bem do mal; e a profanação, onde a arbitrariedade encerra, através do carnaval, todo um sistema de relações paradoxais com relação às extravagâncias narrativas e onde a paródia é o seu lugar comum. Nessa perspectiva, é bom lembrar que Macunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil, antes é a obra de arte que inventa sentidos, rompe com as neuroses dos sentidos dados e aponta para uma identidade de última instância, que é uma identidade sem identificação. Essa identidade é múltipla e caótica porque torna indiferentes, pelo não-senso, todos os traços que organizam a brasilidade. Nessa medida, Macunaíma e seu ideal de brincar, de prazeirar o sintoma brasileiro, torna-se falange daquela alegoria primordial de uma construção de sentido, por isso é que a obra bem diz a emergência de uma identidade.

IHU On-Line - Até que ponto o personagem de Mário de Andrade se insere na categoria da “dialética da malandragem”, trabalhada por Antonio Candido?

Robson Pereira Gonçalves - Macunaíma, na herança do sargento de milícias Leonardo, age e fala entre dois pólos: o da ordem, sociedade organizada das instituições e do poder econômico e político, e o da desordem, aquele dos trabalhadores aviltados, dos assalariados e aviltados pela sociedade. Sua actancialidade nos mostra a possibilidade dialética de uma síntese através de um caminho terceiro que, na melhor das hipóteses, reuniria e aproximaria as características de um lado e outro na construção de uma outra sociedade. Seria uma empresa assaz “encompassada” e a-histórica, todavia poderia resultar numa sociedade mais justa e maneira (positiva) pela inventividade, sintoma característico do brasileiro.

IHU On-Line - Ao apresentar vários folclores, a reprodução de uma fala brasileira, de narrativas orais indígenas e crendices populares, de desenvolvimento da cidade de São Paulo, qual é a visão sociológica que Mário de Andrade oferece sobre o Brasil através de sua rapsódia?

Robson Pereira Gonçalves - Mário de Andrade propôs em sua ficção uma reunião dessas narrativas nacionais, por isso rapsódia, reunião de contos. Até poder-se-ia afirmar que Mário estava com o intuito, nacionalista e cordial, de exacerbar pelos múltiplos a tal identidade brasileira num sentido positivo. Entretanto, o que o autor está a aludir é aquela premissa de uma identidade sem identificação, mal-estar fundante da cultura brasileira. Nessa esteira, aponto que sua perspectiva era colocar a nu e/ou denunciar a neurose nacional que compõe esse conjunto de falares. A perspectiva daqueles múltiplos planos (mitos, ritos, folclore) que justificam a tal orientação sociológica do texto merece ser vista de um outro ângulo, aquele que conjuga tais regionalismos, rituais, mitos falares e sotaques como um “atravessamento” dos múltiplos sentidos (significados) da brasilidade para se chegar à referência maior do “não-caráter”, que é uma identidade sem-sentido, ou sem identificação. Tal herança, macunaímica, aponta para o mazombismo  do Brasil Colônia, onde impera o arquétipo dessa desventurada e malévola tradição de o brasileiro não saber se situar no aqui e no agora de sua língua e do que realmente quer, mas alhures e conforme os ventos das experiências. A nacionalidade se faz no sintoma da língua e o sentido da Arte na criação de significâncias. Dessa forma, a possibilidade de síntese em Macunaíma estaria nessa transfiguração que a narrativa faz daqueles múltiplos que não se unificam neuroticamente na realidade brasileira, porque a busca da unidade numa identidade é uma busca neurótica, é apagamento das diferenças.

IHU On-Line - Quais aspectos satíricos você destacaria como fundamentais no contexto da obra depois de 80 anos?

Robson Pereira Gonçalves - Vários são os aspectos e passagens da narrativa e que se inscrevem como espelho nos dias de hoje. Pode-se falar do episódio da "Carta pras Icamiabas", onde Macunaíma escreve aos tapanhumas  sobre suas andanças na civilização num português barroco, bem ao gosto do Padre Vieira,  e ilustra neuroticamente essa vertente num ato falho sensacional onde transparece sua ignorância com a língua ao trocar versículos da bíblia por testículos e assim por diante. Em outra passagem, "A pacuera do oibê", Mário de Andrade ironiza as identificações de Macunaíma e a civilização – o herói sem caráter leva como lembranças uma galinha Legorne, o relógio Pathek e o revólver Smith-Wesson, símbolos de outra civilização e que seriam inúteis no Uraricoera, pois que não representariam avanços culturais e, muito menos, sociais. Esta é a sina do brasileiro, o de ser nostálgico e barroco quando fala de si e de suas fantasias, mentiras e falsas premissas. Por tudo isso, num outro episódio – "Macumba" –, Macunaíma vai pedir proteção no terreiro da tia Ciata e se depara com deputados, ladrões, senadores, gatunos e toda a gente e pede proteção de Exu, uma contradição com as coisas do bem e dos valores ditos cristãos. É a deformação do caráter e da ética que ainda grassa em nossa terra e, pelo exemplo, coloca todas as classes no mesmo saco.

IHU On-Line - O personagem Macunaíma normalmente é visto como um retrato do que costuma ser o estereótipo do brasileiro: malandro, preguiçoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), ingênuo, desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sendo feita? Que paralelos você traçaria entre o “herói sem caráter” e o brasileiro do jeitinho? É possível aproximá-los? Por quê?

Robson Pereira Gonçalves - Uma das lições que tiramos do Macunaíma é que a personagem-título parece refletir mimeticamente os tais múltiplos que compõem a cultura brasileira, todavia não constrói o sentido de um caráter. Se assim o é, pode-se afirmar com segurança que hoje, mais do que nunca, aquela aproximação é relevante e imperiosa para se entender de vez porque ainda vivemos nessa miséria ética, intelectual, moral. Hoje, se tem uma cumplicidade malandra, seja nas relações sociais, seja, e para pior, nas relações de governo, judiciário, legislativo e povo. Portanto, uma aproximação do Macunaíma com o “jeitinho” dos brasileiros deve estar espelhada na assunção que hoje se percebe da malandragem, dos avessos, dos maneirismos negativos em todos os segmentos sociais. Notadamente nas instituições que deveriam zelar pelas relações de um projeto Brasil, onde o estatuto da ética e da moral conformariam um tertius na relação ordem versus desordem. Se antes imperava uma ordem sedimentada na força, na defesa incondicional das classes autoritárias, hoje se observa o império da desordem institucional, da violência urbana. Seria esse o nosso destino, o de ser como Macunaíma um “brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação”?

IHU On-Line - O brasileiro ainda busca o seu muiraquitã? Qual seria ele? Há um projeto de Brasil ou “pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" continua sendo um dito atual?

Robson Pereira Gonçalves - Na questão da saúde, mormente se tenha avanço na medicina social, ainda abarrotamos nossos hospitais com os Jecas Tatus (vide Monteiro Lobato), tanto pelo descaso com a educação quanto pela ignorância que se nos povoa. Até hoje não sei qual seria o tal projeto Brasil, se o do dístico da bandeira – ordem e progresso – ou esse sentimento ufanista de ser brasileiro, a terra do sol e de Deus, porém sem leis e sem fronteiras e que em nome de discursos populistas para a ignara multidão faz ressurgir a esperança dos renunciadores à vida, pois um nirvana os espera atrás das palavras do líder. O que resta é uma fantasia, a tal da muiraquitã, que tal como uma perversão simboliza os nossos males e nossas aversões ao trabalho, ao conhecimento e saber e, muito mais, à construção de uma sociedade mais justa. Nessa esteira, a muiraquitã é o jogo do bicho, as loterias que assolam esses sonhos e embalam a esperança – individual – de nos tornarmos felizes.

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