Edição 267 | 04 Agosto 2008

Filme da semana: Do outro lado

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Guion Center, no Shopping Nova Olaria

Ficha técnica:

Título original: Auf der Anderen Seite
Gênero: Drama
Tempo de duração: 122 minutos
Ano de lançamento (Alemanha / Turquia / Itália): 2007
Direção: Fatih Akin
Elenco: Nurgül Yesilçay, Baki Davrak, Tuncel Kurtiz, Hanna Schygulla, Patrycia Ziolkowska, Nursel Köse

Sinopse: Ali (Tuncel Kurtiz) vive com o filho Nejat (Baki Davrak) e convida Yeter (Nursel Köse), uma prostituta, para morar em sua casa. Ela tem uma filha chamada Yeter, que não vê há anos.
Depois de um incidente, Nejat vai à Turquia tentar encontrá-la. Ao mesmo tempo, Yeter, que faz parte de um movimento rebelde, procura a mãe na Alemanha.

Um exercício de alteridade

O filme Do outro lado, produção conjunta entre Turquia, Alemanha e Itália, é dirigida pelo cineasta Fatih Akin, de Contra a parede. Premiado em Cannes/2007 na categoria de roteiro (do próprio diretor) e representante da Alemanha na disputa pelo Oscar/2008 - não chegou aos cinco finalistas -, ele é, ao mesmo tempo, interessante e problemático.

O interesse se dá, sobretudo, em razão de sua narrativa, em que seis vidas se entrecruzam e se modificam radicalmente. Na Alemanha, Ali Aksu (Tuncel Kurtiz) é um viúvo que acaba se envolvendo com Yeter (Nursel Köse), uma prostituta. Ambos são de origem turca. Com a justificativa que só a Deus se permite à solidão, ele a convida para morarem juntos. Ali tem um filho, Nejat Aksu (Baki Davrak), professor em uma universidade, que logo fica amigo de Yeter. Esta lhe diz que seu sonho é reaver sua filha, que não vê há anos. No entanto, acontece um incidente com Yeter. Isso é motivo para Nejat ir para a Turquia tentar encontrar a sua filha desaparecida. A partir deste ponto, se percebe como o incidente faz com que Nejat desperte um pouco de sua vida entediada e viaje para o país de origem, ou seja, no momento em que se afasta da figura paterna - do qual parece ser a antítese, sobretudo porque Ali vive, digamos assim, voltado para os prazeres etílicos e do corpo -, ele tenta reencontrar suas raízes.

Ao mesmo tempo, e isso aparece no filme depois de toda essa seqüência de acontecimentos, o diretor mostra a vida da filha de Yeter, Ayten Öztürk (Nurgül Yesilçay), que pertence a um movimento revolucionário de Istambul, na Turquia, contrário aos preceitos da União Européia e à globalização e que luta pela integração das mulheres. Ela vem para a Alemanha procurar sua mãe e acaba se envolvendo com uma universitária, Charlotte Staub (Patrycia Ziolkowska), filha de uma senhora protetora, Susanne (Hanna Schygulla, musa do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder). São, em suma, esses seis personagens que, ao longo da trama, acabam se envolvendo, mesmo que indiretamente. Dividido em três blocos, o filme aponta um caminho narrativo interessante, que lembra, em alguns pontos, o plurilíngüe Babel.

A todo momento, se percebe que a solidão divina, referida inicialmente, pertence também a cada um dos personagens. Ou seja, mesmo a jovem Ayten, que luta por uma causa libertária, parece isolada, querendo apenas encontrar a figura materna, que não vê há anos. O filho professor, Nejat, por sua vez, apesar de viver com o pai, mantém uma certa distância dele. O mesmo acontece com Susanne, incapaz de se aproximar da filha Charlotte. Essa distância acaba sendo, de certa maneira, também política: os ideais de cada um são distintos. Enquanto Ayten é idealista e vive uma trajetória conturbada, Nejat é um literato, preferindo a sala de aula e as livrarias, e seu pai é alheio a assuntos menos superficiais. Do mesmo modo, quando Ayten vai morar na casa de Charlotte, acaba se desentendendo com a mãe desta, que concorda com a União Européia, na visão daquela um “mal”. Há, no fundo disso, um conflito político, mas que o cineasta Fatih Akin vê com certa delicadeza.

O problema de Do outro lado começa quando se percebe que a intersecção entre esses conflitos não é costurada da maneira mais eficaz pelo diretor. Ou seja, se na primeira parte do filme, há duas figuras muito fortes, Ali e Yeter, a prostituta, quando eles saem da cena, é visível que o filme fica sem seu principal alicerce. Isso porque a segunda parte da trama, apesar de mostrar os conflitos juvenis, não chega a criar um adensamento, sobretudo pela fraqueza interpretativa das duas atrizes. Em nenhum momento elas convencem em seus personagens, e a trama é menos ágil em relação às outras duas partes. Yeter tem o comportamento de uma plebéia num campo de guerra e em nenhum momento transparece a revolta de alguém que luta num movimento rebelde. É de se perguntar por que o diretor acabou escolhendo uma atriz tão contrária àquela que faz sua mãe, extremamente concentrada. A personagem que se envolve com ela também é sustentada por uma interpretação fraca.

No entanto, o que há de relevante nesse núcleo da trama é que as duas personagens trazem questionamentos interessantes. Vendo a trajetória de cada uma, pode-se perguntar se existe liberdade universal quando não há, muitas vezes, liberdade própria; se é possível afastar-se de uma pessoa mesmo quando ela é diferente e existe a necessidade de ajudá-la; se é válido lutar por um movimento quando não há luta nem por quem está ao lado; e, sobretudo, se é possível impedir a globalização quando a vida dos personagens depende dela, quando envolve, no bom sentido, o respeito pelo outro, pelo “diferente”. O diretor acaba, mesmo com essas atrizes de uma precariedade interpretativa notável, fazendo com que essas perguntas ganhem relevo — e Do outro lado se constitui numa importante peça para lidar com a alteridade.

Movimento e distância

Esta alteridade que promovem os personagens acaba trazendo à tona outra questão: das figuras básicas familiares. É destacável a maneira como o diretor enfoca o distanciamento entre pais e filhos sem cair na pieguice. Se o pai de Nejat, Ali, é a figura que concentra a primeira parte, Susanne, preocupada com o envolvimento da filha Charlotte com Ayten, sustenta a parte derradeira. A personagem tem uma presença excepcional, marcada principalmente pela atuação de Hanna Schygulla. Essas figuras básicas vão se fazendo em cima de um mundo que está em constante movimento. Sob esse ponto de vista, a figura do pai ou da mãe representam, antes de mais nada, uma espécie de lacuna, uma ausência. No entanto, os filhos e os pais, em Do outro lado, de forma paradoxal, só sentem o reencontro — ou o preenchimento dessa ausência — com a própria ausência, ou seja, esta parece indicar uma espécie de fortalecimento que reergue cada um dos personagens. O trânsito de ônibus, trens, barcos, aviões e as corridas de cavalo - a que Ali gosta de assistir, junto com o filho - irrompem num filme em que o movimento implica, ao mesmo tempo, uma espécie de distanciamento entre os personagens, fortalecido pela fotografia agridoce de Rainer Klausmann. No entanto, este distanciamento implica, ao mesmo tempo, respeito. Daí o cineasta, de algum modo, apesar de mostrar a rebeldia, para tentativa de transformação da sociedade, dar a sensação de indicar que só há um encontro e uma mudança efetiva quando o indivíduo confronta figuras paternas. Ou seja, os personagens só se encontram por meio de suas figuras básicas, mesmo que para isso seja preciso viajar de um país para outro.
A partir desse ângulo, torna-se mais significativa a cena em que Ayten assiste a uma aula de Nejat, sem que os dois se conheçam, por puro acaso. Nejat está no pulpito em frente à classe, lendo sua aula, enquanto Ayten dorme. É como se Nejat representasse um universo literário que entedia a menina pela qual, mais tarde, irá procurar na Turquia - sem saber que ela está não está mais lá, e sim na Alemanha, à procura de sua mãe. Mesmo que esses encontros casuais sejam sintomas da globalização, se percebe que esta não interfere a subjetividade, ou seja, os personagens se mudam, mas levam consigo os espaços de onde saíram. A globalização, a partir dessa idéia, é o que está em trânsito, disperso e impreciso. Do mesmo modo, ela transparece quando se mostra Ayten viajando com Charlotte num carro, enquanto, num trem - em cena também da primeira parte do filme - estão Nejat e sua mãe Yeter, a qual procura na Alemanha, estando ainda, naquele momento, viva. Os destinos não se encontram, mas a possibilidade de encontro é sempre mais subjetiva do que real.

Do outro lado, nesse sentido, parece indicar não apenas a ligação entre os países enfocados (Turquia e Alemanha), mas a própria transformação pela qual os personagens passam. Como se, do outro lado, existisse uma figura humana que precisasse não apenas ser confrontada, mas de algum modo compreendida, numa espécie de exercício da alteridade. Isso é demonstrado especialmente na cena final, em que a espera é inevitável para um reencontro - mesmo que ele traga a mesma ausência de antes.

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