Edição 267 | 04 Agosto 2008

Jean Ladrière, filósofo de todas as ciências, pensador da esperança

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Philippe Van Parijs

Traduzimos e publicamos o artigo em memória de Jean Ladrière escrito por Philippe Van Parijs, publicado no jornal La Libre Belgique, 27-11-2007 e reproduzido pela Revue Philosophique de Louvain 106(2). Philippe Van Parijs é professor na Universidade Católica de Louvain, na Harvard University. É autor de uma vasta obra, da qual citamos os livros: O que é uma sociedade justa? (São Paulo: Atica, 1997) e Renda básica de cidadania (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006).

No dia 26 de novembro de 2007, morreu o filósofo Jean Ladrière, aos 86 anos de idade. Tanto no plano intelectual quanto no humano, ele foi um dos professores universitários belgas mais respeitados do século XX.

De origem armênia, por parte de sua mãe, ele era filho de um arquiteto, ele nasceu em Nivelles, para onde voltou quando se tornou professor emérito da Universidade Católica de Louvain.

Após a Segunda Guerra Mundial, ele retoma os estudos de matemática e filosofia. Sua tese de doutorado em filosofia foi: “Le role du théorême de Gödel dans le développement de la thérie de la démonstration”.  Professor no Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Louvain, ele dedica seus primeiros escritos aos fundamentos da lógica formal e à epistemologia das matemáticas. Mas suas publicações e seu ensino se desenvolvem rapidamente para além destes campos. É por meio dos seus cursos que Louvain descobre Wittgenstein e Popper, Chomsky e Habermas. Ele funda um centro de filosofia das ciências onde nenhum campo do saber é excluído. Seus míticos seminários das tardes de sexta-feira exploram a cibernética e a teoria das catástrofes, da teoria da evolução e a teoria da justiça, a metafísica de Whitehead e o marxismo contemporâneo.

Para além da apropriação crítica de uma literatura científica e filosófica imensa, Jean Ladrière é também o autor de uma obra pessoal rica e influente que se expressa na sucessão de livros redigidos com um grande saber e muita elegância. Os últimos três volumes da sua obra foram publicados em 2004: La foi chrétiennea et le destin de la raison (traduzida pela Editora Unisinos, neste ano, com o título A fé cristã e o destino da razão), Le temps du possible e L’espérance de la raison.

No centro da sua obra, está a relação entre a fé e a razão. “O que está em jogo”, afirmou numa entrevista (a íntegra desta entrevista está disponível em http://www.uclouvain.be/cps/ucl/doc/etes/2002.InterviewLadrierecomplet.pdf), publicada pela revista Louvain por ocasião do seu 80º aniversário, em fevereiro de 2002,  “não é uma simples confrontação, mas uma relação justificável, refletida e vivida, entre fé e razão. É esta a visão desta relação que, creio, subjaz na grande maioria dos textos que escrevi. Os outros textos são intervenções circunstanciais”.

Professor e autor, Jean Ladrière foi também membro devotado e eficiente de numerosas instituições, onde foi uma das pilastras: o Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Louvain, que ele presidiu por longos anos, especialmente na época da transferência para Louvain-la-Neuve, a Universidade Católica de Louvain, no seu conjunto, da qual foi uma das grandes personalidades emblemática, a Academia Real da Bélgica, para a qual foi eleito em 1977, o grupo Esprit, que ele contribuiu a animar nos anos 1950, o Instituto Internacional de Filosofia, o Movimento Internacional dos intelectuais católicos e o Centre de recherche et d’information sócio-politique – C.R.I.S.P., entre outros. Em todos os lugares, deixou a lembrança de uma presença humilde e competente, gozando de uma autoridade moral e intelectual tanto no interior quanto no exterior da instituição.

Católico comprometido, Jean Ladrière não era daqueles que achavam dever impor sua fé aos outros ou desprezar os que não a partilhavam com ele. Jean Ladrière era daqueles a propósito do qual seria quase que inconveniente falar de tolerância e honestidade intelectual, tão encarnadas estavam nele. A imensa cultura que possuía não o fazia para nada orgulhoso e impertinente. Ele possuía a grande capacidade de se maravilhar com uma simples anedota e, ao mesmo tempo, com um teorema. Tinha, desta maneira, uma capacidade excepcional de escutar atentamente, respeitosamente, generosamente, seus interlocutores, os mais modestos, os mais fanfarrões, de reformular mais precisamente as questões que lhe eram propostas, às vezes de maneira confusa. Procurava ilustrá-las, para que se salvasse o essencial das mesmas.

Jean Ladrière não tinha filhos, mas seus filhos espirituais, os inumeráveis doutorandos aos quais dedicou o melhor das suas horas, dispersos pelas universidades do mundo todo.

No final da entrevista acima citada, ele expressa sua atitude frente à morte que se aproximava: “Tenho o privilégio de viver além dos 80 anos e de continuar algum tipo de trabalho, ainda que num ritmo mais lento. Deste ponto de vista, posso dizer que tenho uma vida completa. Mas eu guardo, até este momento, o sentimento de não ter feito o que eu creio que deveria ter feito, e de sempre ter pela frente algo por realizar (...). De uma parte, me voltando para o passado (...), eu vejo sobretudo o caráter muito inadequado, bastante parcial e tímido, do que eu pude exprimir. E, doutra parte, me voltando para o futuro, eu sinto chamado a realizar um trabalho que ainda precisa ser feito, que de uma certa maneira seria o sentido do que eu tentei fazer durante o tempo passado, e que seria uma última tarefa. Naturalmente, eu não sei tudo nem se terei o tempo para me dedicar uma tal tipo de trabalho, nem se terei a visão e a energia necessárias para o realizar. Mas eu vejo, no momento, o tempo que me resta como o tempo de uma tarefa que ainda tenho que realizar. Eu me digo que esta maneira de viver o tempo é também uma maneira de se preparar para a morte. Mesmo que não possa mais escrever nada, eu me digo que, pelo menos, vivi na perspectiva, que permanece aberta até o fim, de uma tarefa que precisa ser realizada. De qualquer modo, aquilo que fiz ou não fiz, eu sei que não haverá uma adequação entre o que eu pude, eventualmente, fazer e o que eu poderia ter podido fazer. Por isso, desde já, me coloco inteiramente na misericórdia de Deus”.


Obras de Jean Ladrière traduzidas para o português:

A articulação do sentido. EPU, 1977.

Ética e pensamento científico. Letras & Letras, 1995

A fé cristã e o destino da razão. Ed. Unisinos, 2008.

Os livros mais recentes de Jean Ladrière:

L’articulation du sens, I. Discours scientifique et parole de la foi. Cerf, 1984;

L’articulation du sens, II. Les langages de la foi. Cerf, 1984;

Ethique dans l’univers de la rationalité. Fides, 1997;

Dieu, à la limite de l'infini. Une légitimation du discours théologique. Cerf, 2002;

Sens et vérité en théologie. L’articulation du sens, III. Cerf, 2004;

Les enjeux de la rationalité. Le défi de la science et de la technologie aux cultures. Liber Quebec, 2005.

A Revue Philosofique de Louvain 106(2), 2008, p. 248-269, publica o artigo “Comment et pourquoi, personnellement, je crois” (“Como e porquê, pessoalmente, eu creio”), de Jean-Ladrière, conferência proferida no dia 27-10-1999.

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