Edição 265 | 21 Julho 2008

Stalin e Roosevelt: uma troca de cartas reveladora

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Márcia Junges

Chefes de Estado soviético e americano mantinham uma correspondência freqüente e que demonstra uma relação amistosa, ao contrário da imagem divulgada no Pós-Guerra, analisa o filósofo e historiador Ângelo Segrillo

Roosevelt e Stalin trocaram mais cartas do que se pode supor, e o tom delas era amigável. Entretanto, a partir do clima “anti-soviético formado a partir do presidente Truman, não havia interesse da parte americana de divulgar correspondências que mostrassem um relacionamento mais amistoso entre os dirigentes dos EUA e da URSS durante a Segunda Guerra”, disse o historiador Ângelo Segrillo na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line desta semana. As questões formuladas a Segrillo são baseadas na obra de Susan Butler, Prezado Sr. Stalin (Rio de Janeiro: Zahar, 2008), recém-traduzida para o português. Segrillo, que é historiador da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Instituto Pushkin de Moscou, conta que, embora o livro não traga nenhuma reviravolta historiográfica, alguns fatos importantes vêm à tona. Um deles é o próprio “caráter bastante próximo e amigável entre os líderes desses dois países que normalmente eram vistos como inimigos”. Além disso, em questões sobre o futuro dos países colonizados, “Roosevelt parecia mais próximo à posição de Stalin que de Churchill”. Um dos pontos altos do livro é mostrar que a imagem de inimigos irremediáveis entre URSS e EUA foi “interrompida durante a Guerra e sua retomada no período da Guerra Fria não era uma inevitabilidade histórica, e sim resultado de escolhas políticas específicas”.

Segrillo é graduado em Filosofia, pela Southwest Missouri State University (SMSU), nos EUA, mestre em Língua e Literatura russa pelo Instituto Pushkin de Moscou, na Rússia, e doutor em História, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Reconstruindo a “Reconstrução”: uma análise das causas principais da perestroika soviética. Escreveu inúmeros livros, dentre os quais citamos Um brasileiro na Perestroika (Rio de Janeiro: Serthel, 1992), O fim da URSS e a Nova Rússia (Petrópolis: Vozes, 2000) e Rússia e Brasil em transformação: uma breve história dos partidos russos e brasileiros na democratização política (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005).

IHU On-Line - Por que apenas agora vieram à tona certas cartas entre Stalin  e Roosevelt /Truman,  omitidas na edição soviética da correspondência entre esses líderes? Que possíveis interesses mantiveram esses documentos fora da publicação naquela época?

Ângelo Segrillo - Não é que estas correspondências que faltavam não estivessem disponíveis. Elas estavam na biblioteca Franklin D. Roosevelt, depositária dos documentos pessoais do ex-presidente americano. Teoricamente, qualquer pesquisador ou pessoa poderia lê-las lá. Elas, entretanto, nunca tinham sido antes publicadas. Por isso, o que a autora do livro fez foi disponibilizar para o grande público (através da publicação) esta parte da correspondência também. No livro, a autora considera que o fato de que uma edição completa da correspondência entre Roosevelt e Stalin nunca tenha sido publicada tem a ver com os rumos que a política externa americana tomou com a Guerra Fria. No clima anti-soviético formado a partir do presidente Truman, não havia interesse da parte americana de divulgar correspondências que mostrassem um relacionamento mais amistoso entre os dirigentes dos EUA e da URSS durante a Segunda Guerra.

IHU On-Line - Quais são os fatos mais inusitados que esse diálogo epistolar revelam?

Ângelo Segrillo - O livro não traz nenhuma grande reviravolta em termos dos debates historiográficos já existentes até aqui sobre o assunto, mas revela, de maneira mais viva e pessoal, os detalhes das negociações entre os dois líderes, os pontos em que mais se aproximavam e os pontos em que havia tensão. Pela correspondência e pelos textos explicativos que acompanham, pode-se entender melhor os zigzags e reviravoltas nesse relacionamento. Alguns fatos “inusitados”, no sentido de serem diferentes da imagem que normalmente se tem deste período, podem ser apontados: 1) É relativamente surpreendente ver a quantidade de correspondências que tem um caráter bastante próximo e amigável entre os líderes desses dois países que normalmente eram vistos como inimigos; 2) É interessante notar que em vários momentos (por exemplo, sobre a questão do futuro dos países colonizados) Roosevelt parecia mais próximo à posição de Stalin que de Churchill; 3) Esse livro parece mostrar que Roosevelt pode não ter sido tão próximo de Churchill como normalmente é colocado; 4) Acompanhando a correspondência, tem-se a impressão que os soviéticos estavam certos em sua desconfiança sobre os sucessivos adiamentos (de 1942 para 1943 e depois para 1944) do desembarque da Normandia, que abriria uma nova frente ocidental (e aliviaria a carga alemã na frente oriental sobre a URSS); 5) Um fato pitoresco é o medo que Stalin tinha de voar (só voou uma vez na vida para ir à Conferência de Teerã): este pode ter sido um dos fatores que levou à realização da grande conferência da guerra em Ialta, na URSS, para onde Stalin foi de trem.

IHU On-Line - Com base nessa troca de correspondência, poderia explicar com mais detalhes sobre a ajuda que os EUA ofereceram à URSS logo após sua invasão pela Alemanha?

Ângelo Segrillo - O livro deixa bem claro que Roosevelt fez uma aposta estratégica importantíssima naquele momento. Muitos no Departamento de Estado e da Defesa dos EUA queriam aproveitar para deixar a URSS e a Alemanha sangrarem um ao outro (“matando dois coelhos com uma só cajadada”). Roosevelt teve uma visão de longo prazo e forneceu uma ajuda muito forte aos soviéticos tanto em termos de suprimentos como de equipamentos militares, o que foi fundamental para a resistência dos russos a longo prazo. Como afirma o livro, as remessas começaram já em outubro de 1941. Logo no primeiro ano, os soviéticos receberam por mês 400 aviões e 500 tanques, além de uma longa lista de suprimentos, matéria-prima e equipamentos militares: borracha, alumínio, cobre, cobalto, aço, chumbo, geradores, telefones de campanha, fios telefônicos, rádios, motocicletas, uniformes, equipamento cirúrgico, trigo, açúcar, jipes, caminhões, metralhadoras etc. No total da Guerra, os soviéticos receberam 11,3 bilhões de dólares da época (equivalentes a cerca de 150 bilhões de dólares atuais) em ajuda dentro deste programa chamado Lend-Lease.

IHU On-Line - E sobre a divisão da Alemanha no pós-guerra, que detalhes são mencionados nas cartas?

Ângelo Segrillo - A correspondência não entra em muitos detalhes sobre a divisão da Alemanha no pós-guerra, pois este assunto foi discutido na Conferência de Potsdam  em julho-agosto de 1945, quando Roosevelt já tinha morrido e sido substituído por Truman.
 
IHU On-Line - Por que, para o grande público, a imagem que se passava era de que Stalin e os presidentes americanos eram inimigos completos, quando na verdade não apenas trocavam correspondências, mas se apoiavam em alguns aspectos?

Ângelo Segrillo - Esta imagem dos dois países como inimigos que temos hoje é proveniente da Guerra Fria. A imagem de inimigos foi inicialmente criada com a Revolução Russa de 1917,  pois ela foi anti-capitalista e os países capitalistas tiveram más relações com a nova Rússia soviética. Entretanto, é interessante notar que houve uma interrupção desta imagem durante a Segunda Guerra Mundial. Quando EUA e URSS se tornaram aliados na Guerra, uma profunda campanha de propaganda foi realizada nos EUA, com apoio de Roosevelt, para que o público americano aceitasse a nova aliança e passasse a ver os russos favoravelmente. Hollywood, inclusive, participou deste esforço de propaganda com filmes como Missão em Moscou, que mostrava o embaixador americano em Moscou com uma visão extremamente positiva dos “corajosos russos” que estavam lutando contra os fascistas.

Este é um dos pontos altos do livro. Mostrar que esta imagem de inimigos irremediáveis foi interrompida durante a Guerra e sua retomada no período da Guerra Fria não era uma inevitabilidade histórica, e sim resultado de escolhas políticas específicas.

IHU On-Line - Pessoalmente, o senhor acredita que o Pós-Guerra teria sido diferente caso Roosvelt tivesse permanecido no poder? Por quê?

Ângelo Segrillo - História contrafactual é um exercício perigoso. Não sei se seria possível evitar um confronto entre países capitalistas e socialistas no pós-guerra, mas acho que Roosevelt tinha uma visão diferente de Truman e, caso prosseguisse vivo, o relacionamento EUA e URSS poderia ter sido menos inamistoso do que veio a ser.

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