Edição 265 | 21 Julho 2008

O nazismo como essência da pós-modernidade

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Márcia Junges

Se compreendermos pós-modernidade pela constatação do fracasso dos “ismos” do século XIX, então o nazismo é sua própria essência, “expressão máxima dessa aterradora e sempre presente possibilidade da Civilização Ocidental, a irrupção da barbárie”, afirma o engenheiro Saul Kirschbaum



“O extermínio físico somente foi possível por ter sido precedido pelo extermínio moral. Os judeus, ciganos, homossexuais, foram primeiro desumanizados, desindividualizados, rebaixados a números, condenados à exclusão pelo fato mesmo de pertencerem a um determinado grupo. O regime, totalitário, se encarregou de criar uma imensa burocracia, recrutada e treinada para suprimir quaisquer considerações éticas a respeito das tarefas recebidas”, acentua o engenheiro Saul Kirschbaum. Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade por e-mail, à IHU On-Line, ele afirma que o número exato de vítimas do Holocausto “é eticamente irrelevante, e sua discussão uma tentativa de desviar a atenção” para a marca da barbárie, ou seja, a possibilidade de se assassinar populações inteiras em escala industrial. Sobre as influências teóricas de Hitler, Kirschbaum acredita que “qualquer texto é suscetível de múltiplas leituras, dependendo da ótica do leitor”. Talvez, acredita ele, Hitler não tenha, propriamente, distorcido Hegel ou Nietzsche, mas os compreendido em “uma dimensão que nos aterroriza. Para nos tranqüilizarmos, precisamos pensar que ele distorceu”.

Kirschbaum é graduado em Engenharia Elétrica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Administração, pela Fundação Getúlio Vargas São Paulo (FGV-SP), e mestre e doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica, pela Universidade de São Paulo. Sua tese intitulou-se Ética e literatura na obra de Samuel Rawet. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros é um dos organizadores de Dez Ensaios para Samuel Rawet (Brasília: LGE Editora, 2007). A entrevista, a seguir, foi concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Confira.

IHU On-Line - Quais são os principais traumas que persistem entre a comunidade judaica em função do Holocausto?

Saul Kirschbaum - É difícil falar em “comunidade judaica”. Precisaríamos especificar: a comunidade judaica de Israel? A do Brasil? A dos Estados Unidos? A da Argentina? Em Israel, cada vez que o presidente do Irã ameaça “varrer Israel do mapa”, não há como não pensar na iminência, ou pelo menos na possibilidade de uma nova Shoá . Na Argentina, com um longo e pesado passado de anti-semitismo, um evento como o atentado contra a sede da Amia certamente traz de volta os fantasmas da era nazista. No Brasil, aparentemente, só os mais idosos ainda sentem um certo estranhamento por sua condição judaica, que poderia ser visto como um fator que alimentaria sentimentos anti-semitas mais violentos por parte da população hegemônica. Nos Estados Unidos, ao que parece, os judeus não sentem nenhum tipo de estranhamento.

IHU On-Line - Sua história pessoal é marcada pelo Holocausto? De que forma?

Saul Kirschbaum - Na minha primeira infância, todos os judeus Ashkenaz  de Porto Alegre com quem tive contato tinham familiares entre as vítimas da Shoá, ou estavam reencontrando parentes e amigos que tinham conseguido sobreviver. Mas eu era muito pequeno para entender o que estava acontecendo. Somente muito mais tarde fui capaz de entender por que minha avó paterna estava continuamente adoentada e pouco acolhedora: tomei conhecimento de que meu avô paterno tinha ajudado muitos dos seus parentes a vir para o Brasil logo que começou a ascensão do nazismo, e não tinha feito o mesmo esforço em prol dos parentes de minha avó, o que resultou em um clima de permanente tensão entre eles, já que minha avó responsabilizava meu avô pela morte de todos os parentes dela. Esta situação, bastante típica, o sentimento de culpa por não ter feito todos os esforços possíveis para ajudar parentes e amigos a sair da Europa oriental antes da Shoá, foi tema de um conto de Samuel Rawet, “Réquiem para um solitário”, publicado em Contos do imigrante, de 1956.

IHU On-Line - Como você compreende a construção do anti-semitismo que recrudesceu na Alemanha do pós-guerra?

Saul Kirschbaum - Persiste na Alemanha (como em vários outros países europeus) a mais triste herança da era nazista: o ódio ao estrangeiro, ao imigrante que compete pelas vagas no mercado de trabalho (particularmente as de nível mais baixo) e ameaça as relações pessoais entre os alemães “puros”. Ao estranho, com costumes diferentes, visto como não-assimilável. O racismo persiste, como evidencia a recente aprovação, pelo Parlamento europeu, de medidas mais restritivas contra os imigrantes ilegais. Neste contexto, os esforços institucionais para banir o legado nazista e impedir seu retorno são vistos, especialmente pelos jovens, como tentativas de culpabilizar toda a população, de obrigá-los a assumir a culpa de seus pais, a geração da guerra. “Ora”, eles pensam, “se nem ao menos tínhamos nascido”. Para os judeus no imediato pós-guerra, a derrota é vista como uma tragédia devida a erros estratégicos dos generais e à conspiração dos judeus com os inimigos da Alemanha. Por sua vez, os turcos agora, apesar da abundância econômica, são identificados como os responsáveis pelas eventuais dificuldades do dia-a-dia, pelo desemprego, pela pressão sobre a previdência social.

IHU On-Line - Em Mein kampf, Hitler afirma ter lido Hegel e Nietzsche, além de se declarar um admirador de Wagner. Em que medida Hitler compreendeu e distorceu o pensamento desses filósofos e compositor?

Saul Kirschbaum - A idéia de “distorcer” conota uma intencionalidade perversa. Por outro lado, qualquer texto é suscetível de múltiplas leituras, dependendo da ótica do leitor. Certamente, não se pode afirmar que Hegel e Nietzsche tenham sido nazistas, ou proto-nazistas, ou mesmo simpatizantes do nazismo (ao contrário de Wagner,  cuja recuperação e interpretação dos mitos germânicos foi instrumental para a elaboração do ideário nazista, e por quem a admiração de Hitler era notória). Mas, se o nazismo, o totalitarismo, a barbárie, são possibilidades concretas, apesar de extremas, da Civilização Ocidental, então deve ser possível encontrar aspectos que corroborem essas possibilidades em muitos pensadores. Neste sentido, talvez Hitler não tenha, propriamente, distorcido o pensamento dos filósofos, mas apenas compreendido em uma dimensão que nos aterroriza; para nos tranqüilizarmos, precisamos pensar que ele distorceu.

IHU On-Line - Além do extermínio físico, os nazistas promoveram um verdadeiro extermínio moral por onde passaram. De que forma a mentalidade nazista pôde ser aceita numa Europa evoluída? Por que as pessoas não se levantaram contra esse totalitarismo?

Saul Kirschbaum - O extermínio físico somente foi possível por ter sido precedido pelo extermínio moral. Os judeus, ciganos, homossexuais, foram primeiro desumanizados, desindividualizados, rebaixados a números, condenados à exclusão pelo fato mesmo de pertencerem a um determinado grupo. O regime, totalitário, se encarregou de criar uma imensa burocracia, recrutada e treinada para suprimir quaisquer considerações éticas a respeito das tarefas recebidas. Uma gigantesca máquina de propaganda recebeu a atribuição de convencer a população de que as dificuldades vividas pela Alemanha eram conseqüência da presença maléfica dos grupos que estavam sendo excluídos, pois impediam a caminhada da Alemanha rumo ao seu futuro glorioso, de outra forma garantido pela supremacia racial dos alemães; ao mesmo tempo, a prática da brutalidade contra os adversários do regime, do fato consumado, espalhou o terror, impedindo que as pessoas se levantassem. Muitos intelectuais, reduzidos à impotência, optaram por emigrar.

IHU On-Line - Qual é a base da teoria de que o número de vítimas do Holocausto é uma impossibilidade, que foi superestimado?

Saul Kirschbaum - A teoria de que o número de vítimas da Shoá foi superestimado se baseia: a) na falta de estatísticas confiáveis, já que muitos judeus foram “gaseados” assim que chegaram aos Campos de Extermínio, antes mesmo de serem cadastrados nos registros administrativos dos Campos, ou simplesmente assassinados a tiros, pelos einsatzcomandos, sem maiores preocupações de registro; b) na alegada falta de tecnologia e equipamentos (câmaras de gás e fornos crematórios) para matar e cremar tantas pessoas; c) numa suposta “conspiração judaica”, interessada em exagerar o número de vítimas para extorquir o “mundo civilizado”, especialmente os alemães; d) em que não houve propriamente uma Shoá, sendo o elevado número de vítimas judias apenas conseqüência das condições de guerra – afinal, os alemães não poderiam desviar muita alimentação para consumo dos prisioneiros, e as más condições higiênicas nos Campos favoreciam o alastramento de epidemias de tifo etc. Na verdade, o número exato de vítimas é eticamente irrelevante, e sua discussão uma tentativa de desviar a atenção: a marca da barbárie é a própria possibilidade do assassinato “industrial” de populações inteiras.

IHU On-Line - O nazismo é uma expressão da pós-modernidade ou é sua própria essência, representando a falência de valores e o niilismo moral?

Saul Kirschbaum - É necessário um consenso prévio sobre o significado da expressão “pós-modernidade”. Se a entendermos como a constatação do fracasso dos “ismos” do século XIX (comunismo, socialismo, liberalismo, positivismo), que prometiam um futuro jubiloso de progresso material permanente e a conseqüente melhoria moral da humanidade, então, sim, o nazismo é a própria essência da pós-modernidade, é a expressão máxima dessa aterradora e sempre presente possibilidade da Civilização Ocidental, a irrupção da barbárie; é a possibilidade do Campo de Concentração em escala internacional.

IHU On-Line - Como a marca do ódio do homem contra o homem deixada pelo nazismo perpassa e inspira Lévinas a construir um sistema em que a Ética e alteridade são os pilares principais?

Saul Kirschbaum - O ponto de partida da reflexão levinasiana é que a primazia da liberdade do sujeito, constitutiva da ontologia ocidental, serve de suporte para a postulação da plena realização do Eu. O Outro se apresenta, então, como um obstáculo ao desenvolvimento do Eu em todo o seu potencial, e deve, por isso, ser suprimido. A liberdade é assassina, e a relação entre os homens é marcada pelo ódio. Esta reflexão inspira Lévinas a propor “a ética como filosofia primeira”, e a infinita responsabilidade pelo Outro em lugar da primazia do Eu.

IHU On-Line - Em que aspectos o pensamento de Lévinas é uma resposta e uma contraposição à filosofia nazista? A dominação do Ser na filosofia ocidental cede espaço ao Outro na filosofia Lévinasiana?

Saul Kirschbaum - Lévinas já havia percebido, em seu ensaio de 1934, “Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlérisme”, que “a filosofia do hitlerismo [...] põe em questão os próprios princípios de uma civilização”. Como assinalou Miguel Abensour, no ensaio que acompanha aquela obra, “[t]rata-se de uma civilização, ou antes de uma anti-civilização instalada na brutalidade do fato de ser, na brutalidade do fato consumado. [...] Daí a advertência final de Lévinas em De l’évasion: ‘Toda civilização que aceita o ser, o desespero trágico que ele comporta e os crimes que ele justifica, merece o nome de bárbara’” [traduções minhas]. A grande lição do nazismo, a barreira moral até então intransponível que ele derruba para a Civilização Ocidental, é a demonstração prática de que é possível matar milhões de pessoas, bastando, para isso, que elas sejam previamente desumanizadas, privadas de seus direitos mais elementares. A constatação de que essas possibilidades extremas residem na aceitação do Ser (e, conseqüentemente, na desumanização do Outro, reduzido a corpo “matável”) tem como decorrência, para Lévinas, que somente uma filosofia baseada na infinita responsabilidade pelo Outro, no pleno reconhecimento de sua alteridade, será capaz de se opor à barbárie.

IHU On-Line - Qual é o contexto em que surge e qual é a importância da obra de Samuel Rawet?

Saul Kirschbaum - A adolescência de Rawet é marcada pela tragédia européia: ao final da guerra, ele tinha 16 anos, e certamente tomou conhecimento do sofrimento de tantas famílias ao saberem do destino de seus parentes, e da chegada de sobreviventes abalados psíquica e, muitas vezes, economicamente. Em sua primeira coleção publicada, Contos do imigrante, em metade dos contos o protagonista é judeu, e a trama está intimamente relacionada à Shoá. Talvez esta exposição ao trauma, ao sofrimento, à privação, tenha levado Rawet à abertura para a alteridade que marca toda sua obra. Mas sua importância não reside exclusivamente no tratamento que dá às questões éticas. Rawet se alinha entre os expoentes da literatura brasileira, sendo responsável pela renovação do gênero conto no Brasil, além de desenvolver um uso diferenciado do próprio idioma, o que pode ser devido à sua inserção em uma intersecção de culturas. Afinal, cabe lembrar que o idioma de sua infância, tanto na Polônia quanto no Brasil, é o ídiche. E que, como ele mesmo dizia, “aprendeu o português na rua”.

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