Edição 264 | 30 Junho 2008

Nas pegadas de Medellín, as opções de Puebla

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Bruna Quadros

Para João Batista Libânio, o compromisso com a modernidade subalterna traduziu-se na opção pelos pobres, por uma Igreja da libertação, por uma sociedade justa, fraterna e solidária

“Nas pegadas de Medellín, as opções de Puebla” é o tema da conferência que será realizada no dia 04 de julho, durante o segundo módulo do curso de extensão De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana. O evento, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, terá o teólogo João Batista Libânio como palestrante. Em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, ele comenta que, por meio da opção pelos pobres, Puebla vinculou-se estreitamente a Medellín, “de tal maneira que no imaginário religioso do Continente se forjou o binômio Medellín-Puebla como se fosse uma única perspectiva eclesial”. Para Libânio, a grande contribuição da Conferência Episcopal de Puebla é a consigna da libertação dos pobres, além da descrição crítico-social da realidade e uma série de decisões pastorais de compromisso. “Puebla carrega dentro de si, portanto, certa ambivalência, que corresponde ao momento histórico da Igreja naqueles anos. Já se pressentia o início da volta à disciplina em oposição à opção de avançar, arriscar, comprometer-se com a transformação da realidade eclesial e social”, ressalta o teólogo.

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em Letras Neolatinas, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em Teologia, pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Alemanha, João Batista Libânio é, também, mestre e doutor em Teologia, tendo cursado o seu Doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, Libânio leciona Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte. É autor de Teologia da revelação a partir da Modernidade (São Paulo: Loyola, 2005), Eu creio - Nós cremos. Tratado da fé (São Paulo: Loyola, 2005); Qual o caminho entre o crer e o amar? (São Paulo: Paulus, 2005) e Introdução à vida intelectual (São Paulo: Loyola, 2006).

IHU On-Line - Como o senhor avalia a importância da Conferência de Puebla para a Igreja na América Latina? Quais são as opções de Puebla, ao seguir as pegadas de Medellín? Que relações podemos estabelecer entre esta e outras como a de Medellín, Aparecida e Santo Domingo?

João Batista Libânio - Um evento da magnitude de Puebla adquire importância sob vários aspectos. O próprio fato da Conferência em que os bispos rezaram, discutiram e decidiram juntos reflete o momento colegial. Apesar de o Concílio Vaticano II ter tratado da colegialidade, na realidade, os bispos exercem relativamente pouco, tal a dimensão de seu ministério. Aliás, a Igreja do Brasil caminha na frente sob esse aspecto, desde a década de 1950, quando se constituiu a CNBB  como órgão oficial da Igreja Católica. Mas, em nível latino-americano, as Conferências são momentos privilegiados de colegialidade. Puebla foi a terceira Conferência Geral. Naquela época, vivia-se forte tensão no interior da Igreja com nítida campanha contra a assim dita “Igreja da libertação”, caracterizada pelas CEBs, pela opção pelos pobres, por uma vida religiosa inserida nos meios populares, por uma pastoral comprometida com os movimentos sociais e alimentada pela Teologia da Libertação . Tal visão e prática eclesial apelava para as opções de Medellín . Pretendia-se, com Puebla revertê-la, considerada pela ala conservadora como deturpação. Achava-se que a opção pelos pobres era uma infiltração marxista, politização da fé, ideologização do evangelho. No entanto, com pequenos retoques adjetivados, Puebla reafirma solenemente a opção pelos pobres. Esta foi a grande opção, seguida pela opção pelos jovens, que, no entanto, não vingou. Por meio dessa opção pelos pobres, Puebla vinculou-se estreitamente a Medellín, de tal maneira que no imaginário religioso do Continente se forjou o binômio Medellín-Puebla como se fosse uma única perspectiva eclesial. Santo Domingo conseguiu o que Medellín não o fez. Distanciou-se do ideário libertador anterior, afastou-se do método ver-julgar-agir e centrou a reflexão na cultura e não na análise e transformação da realidade social. No entanto, trouxe um aspecto importante que já vinha sendo tratado pela Teologia da Libertação: a inculturação. Embora Medellín não tenha tratado diretamente dela, contudo ela insere-se perfeitamente no espírito de Medellín. Aparecida retoma, embora de maneira matizada, o método ver-julgar-agir, ligando-se assim à tradição da Teologia da Libertação. E depois da clara posição de Bento XVI a respeito da opção pelos pobres, Aparecia reafirma-a de maneira contundente.

IHU On-Line - Além de uma mudança na Igreja, qual é o reflexo da Conferência de Puebla, dentro de um contexto cultural e social?

João Batista Libânio - Ainda pesava sobre o Continente, nos idos de Puebla, forte repressão por parte dos regimes militares. A tomada de posição da Igreja Católica, em alguns países, legitimou a crescente oposição a eles até o seu desmantelamento no correr da década de 1980. Puebla carregou as tintas na análise crítica da situação sociopolítica, econômica e cultural, desmascarando as injustiças do sistema vigente nos diferentes níveis. A simples descrição do quadro e as conseqüentes opções pastorais significavam a deslegitimação política dos regimes vigentes. As forças de oposição encontraram no documento final apoio para suas reivindicações e lutas. Embora tenha havido alguns piques de repressão depois de Puebla, seguiu-se, porém, lenta e gradual demolição dos governos militares ditatoriais. No Brasil, a Igreja Católica teve certamente papel decisivo na abertura política e no fim do regime de arbítrio. Ela constituía uma das forças de oposição à tortura, ao AI-5, às incursões dos órgãos de repressão, às medidas discricionárias do Estado autoritário. Sofreu perseguição por causa de tal ousadia profética, mas, ao mesmo tempo, adquiriu credibilidade diante das forças democráticas em reagrupamento. E Medellín-Puebla serviu como repositório inspirador de libertação.

IHU On-Line - Qual é a influência do Concílio Vaticano II para a Conferência de Puebla? Contribuiu positiva ou negativamente, e em que sentido?

João Batista Libânio - Sem o Concílio Vaticano, a rápida transformação por que passou a Igreja se torna ininteligível. Ele desencadeou um conjunto de aberturas que permitiu Medellín, Puebla e o que veio depois. Os pontos fortes eclesiológicos de Puebla se nutriram da Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium  e da Constituição Pastoral Gaudium et spes . A primeira ofereceu o suporte para a colegialidade episcopal e valorizou o magistério dos bispos. Ao reunirem-se em Puebla, eles estavam conscientes de que exerciam um direito fundamental de pensar, discutir e decidir sobre a vida das igrejas particulares do Continente, sem necessariamente esperar a iniciativa de Roma. Antes do Vaticano II, as instâncias romanas tomavam a frente das decisões sobre os países de missão. Os limites das igrejas particulares eram traçados pelos dicastérios romanos sob a bênção do Papa. Medellín, que foi pensada por Paulo VI como simples aplicação do Vaticano II à América Latina, terminou sendo recepção criativa. E Puebla seguiu tal caminho, embora naturalmente ainda tivessem pesado muito tanto os discursos de João Paulo II como a presença de representantes do Vaticano na Conferência. No entanto, na esteira colegial da Lumen gentium, os bispos latino-americanos ousaram. A Gaudium spes, por sua vez, abriu o campo para os compromissos sociais. A coragem do Vaticano II de enfrentar o diálogo com o mundo moderno, ainda que sob seu aspecto de modernidade centro-européia, permitiu que se fizesse o mesmo na modernidade dependente, periférica da América Latina. O compromisso com a modernidade subalterna traduziu na opção pelos pobres, por uma Igreja da libertação, por uma sociedade justa, fraterna e solidária.

IHU On-Line - O senhor afirma que a organização da Conferência conseguiu vetar todos os teólogos da libertação de maneira que no nível de assessores não havia representantes da linha de Medellín. Há um confronto nas linhas de pensamento entre Puebla e Medellín? Não há, também, uma contradição, tendo em vista os objetivos de ambas as conferências?

João Batista Libânio - Em nível de assessores, há enorme distância entre Medellín e Puebla. Lá estava a nata da nascente Teologia da Libertação dentro da Conferência participando da elaboração dos textos. Em Puebla, coube aos teólogos da libertação participar somente extra muros à guisa de assessores privados de alguns bispos. Mesmo assim, tiveram certa influência. A linha teológica predominante em Puebla se opunha, nos traços principais, à Teologia da Libertação. No entanto, a temática da libertação invadiu o texto. Em grande parte, por causa dos discursos contundentes de João Paulo II ao longo de sua viagem pelo México. Enquanto os bispos, enclausurados no Seminário de Puebla, deliberavam, João Paulo II percorria o México e entrava em contacto com a dura realidade social. E a partir daí fez declarações corajosas que terminaram recheando o texto de Puebla com mais de 100 citações. Em nível de análise e de programática, Puebla aproximou-se de Medellín. A parte teológica do documento se distancia de Medellín mais na letra do que no espírito. Pois Medellín não se deteve em longas reflexões teológicas, enquanto Puebla produziu um longo discurso teológico irrelevante e sem mordência de tal maneira que ninguém o compulsa. Os objetivos prévios de Medellín e Puebla foram diferentes, naturalmente. Puebla se propunha repensar o trajeto da Igreja depois de Medellín nos dez anos de caminhada. A proposta de setores na direção da Conferência visava, de preferência, a reverter o processo libertador e trazê-lo para dentro de quadro espiritual, doutrinal, menos comprometido com a perspectiva libertadora. O nó da questão girava, sobretudo, em relação à ênfase que se dava na Igreja da libertação à práxis, à pedagogia libertadora, à vida religiosa inserida no meio dos pobres, às comunidades eclesiais de base, à teologia que partia e terminava na práxis. Na teologia do documento, tal retorno aparece, mas ele não teve nenhuma influência. Ficaram de Puebla a consigna da libertação dos pobres, a descrição crítico-social da realidade e uma série de decisões pastorais de compromisso. Puebla carrega dentro de si, portanto, certa ambivalência, que corresponde ao momento histórico da Igreja naqueles anos. Já se pressentia o início da volta à disciplina em oposição à opção de avançar, arriscar, comprometer-se com a transformação da realidade eclesial e social.

IHU On-Line - Em seus estudos, o senhor lança uma questão: “Há quase 30 anos de Puebla, que balanço fazer”? Como o senhor responderia a tal indagação?

João Batista Libânio - Distingo, de início, o documento e o evento com sua aura simbólica. O documento está aí para estudos. Poucos se interessam por fazê-lo. Repetem-se frases feitas. De fato, logo depois de Puebla se escreveram livros e artigos, se pronunciaram conferências, se organizaram cursos e discussões em grupo e outras formas de estudo para assimilar os ensinamentos dos bispos. Entretanto, o tempo decantou toda essa parafernália de escritos, deixando-nos a água pura evangélica e de valor pastoral. A imensa massa de ingredientes conflituosos, inseridos no documento por interesses ideológicos ou reflexos de medos, diluiu-se e se perdeu. Que ficou? O melhor da teologia latino-americana, a pastoral viva e as comunidades de base conseguiram construir o imaginário religioso social com a díade Medellín-Puebla como se fosse uma única opção. Ao fazê-lo, associaram a ambas as conferências a opção pelos pobres, pela libertação, pelas CEBs, por uma Igreja dos pobres. Dificilmente, alguém, ao ouvir falar de Medellín-Puebla, associa a tais eventos a idéia de restrição, de medo, de volta à disciplina, de encurtamento de visão. Antes, tudo ao contrário, embora no texto de Puebla haja muitas reservas e se vivesse momento de enorme tensão com a crescente presença de forças conservadoras na Igreja. Hoje, a tendência restauracionista se fez mais clara, em nítido afastamento do binômio Medellín-Puebla, ao alimentar movimentos espiritualistas alinhados com o centralismo romano.

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