Edição 264 | 30 Junho 2008

O perfil religioso do povo gaúcho

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Na opinião do professor Carlos Steil, o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro que mais assume o pertencimento às religiões afro

Ao falar sobre a questão religiosa no estado do Rio Grande do Sul, o professor Carlos Steil, em entrevista por telefone para a IHU On-Line, afirma que “uma característica própria do ser gaúcho é um certo posicionamento mais firme em termos da identidade religiosa”. Para ele, é uma característica do povo gaúcho a clara definição do seu pertencimento religioso. Ao falar sobre as peculiaridades das principais religiões do estado, Steil dá sua opinião sobre a missa crioula quando considera que “temos, de um lado, uma estereotipação do que é ser gaúcho, que aparece numa linguagem, numa estética, numa forma de se posicionar no mundo. De outro lado, a missa crioula que se organiza como um ritual que se apropria destes estereótipos próprios do gaúcho e dá uma forma litúrgica a isto. Mas não acho que seja algo de raiz em termos culturais. Não atinge a raiz do que seja a experiência do gaúcho”.
Carlos Steil é doutor em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez o pós-doutorado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Também é mestre em Teologia, pela PUC-Rio, e em Educação, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Entre suas obras, citamos O sertão das romarias. Um estudo antropológico da Romaria de Bom Jesus da Lapa – Bahia (Petrópolis: Vozes, 1996), Globalização e religião (Petrópolis: Vozes, 1997) e Cotas raciais na universidade (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006). Steil esteve na Unisinos em maio de 2007, participando do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, com o minicurso “Os novos movimentos religiosos e a sociedade de indivíduos”. É autor do Cadernos IHU Idéias número 93, intitulado A religião na sociedade dos indivíduos: transformações no campo religioso brasileiro.

IHU On-Line - Como o senhor define o perfil religioso do povo gaúcho hoje?

Carlos Steil – O povo gaúcho não difere muito de outras regiões do país quanto ao seu perfil religioso. É um estado em que a presença católica e protestante fica dentro da média de outros estados, em termos estatísticos. Difere, no entanto, quanto à presença afro, de modo que no censo religioso o Rio Grande do Sul aparece como um dos estados em que a percentagem das religiões afro é mais significativa, pelo menos com base na declaração das pessoas. Isso se deve ao fato de que os gaúchos se posicionam mais claramente em termos de seu pertencimento religioso. Na população de outros estados, muitas pessoas que freqüentam a religião afro não assumem, pois preferem se declarar como católicas. Assim, se há uma tendência das pessoas procurarem esconder seu pertencimento afro sob a identidade católica, no Rio Grande do Sul parece que elas tendem a declarar mais a sua identidade afro do que em outras regiões do Brasil.

Migração protestante e espiritismo

Como noutras partes do país, temos, no Rio Grande do Sul,uma presença protestante bastante significativa, mas com uma diferença, na medida em que aqui temos um percentual maior de pessoas que estão associadas ao protestantismo de migração. Ou seja, são pessoas que não se converteram dentro de um protestantismo de missão, mas, quando vieram para cá como migrantes, já eram protestantes, especialmente os luteranos. Uma outra característica peculiar em relação ao perfil religioso do Rio Grande do Sul é a presença bastante forte do espiritismo, especialmente entre os jovens. A porcentagem de espíritas entre os jovens universitários, segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudas da Religião da UFRGS, chega a 20%, o que está bem acima da média nacional de espíritas. Isso, a meu ver, está relacionado a uma característica mais geral do Rio Grande do Sul, que é uma tradição racionalista, um certo positivismo que foi forte no século XIX e adentra o século XX, tendo uma semelhança bastante forte com o espiritismo kardecista.

Catolicismo gaúcho

Em relação ao catolicismo, também temos uma peculiaridade. É bastante forte aqui no estado um catolicismo mais clerical, eclesiástico, que está relacionado com a própria presença institucional da Igreja no Rio Grande do Sul, através da migração. Os migrantes que chegaram aqui ao longo do século XIX e início do século XX, como colonos, vieram acompanhados de congregações e ordens religiosas. A presença do seminário sempre foi marcante, representativa de um catolicismo mais intransigente, marcado por uma perspectiva mais romanizada, que suplantou o catolicismo mais popular e tradicional que existia no estado antes disso.

IHU On-Line – Como o senhor vê o crescimento de adeptos das religiões neopentecostais no Rio Grande do Sul?

Carlos Steil – O neopentecostalismo é um fenômeno recente que, assim como em outras partes do Brasil, aqui no Rio Grande do Sul é bastante forte. A meu ver, isso está relacionado a um processo que chamo de inculturação do protestantismo no Brasil. O protestantismo pentecostal veio para cá com características marcadamente norte-americanas. Durante muitos anos, ele foi assumindo características de uma cultura mais nacional, uma forma mais “abrasileirada” de pentecostalismo, especialmente através da Igreja Universal do Reino de Deus,  mas que se estende também para outras igrejas pentecostais que, depois do surgimento da IURD, também se moldaram segundo este modelo neopentecostal. Ao meu ver, o crescimento atual do pentecostalismo no país se deve em grande medida a este processo de inculturação e incorporação do “jeito brasileiro de ser” pela matriz de origem norte-americana. Hoje, estamos exportando para o mundo inteiro este protestantismo abrasileirado. 

IHU On-Line - Em que medida a questão religiosa ajuda a compreender as características sociais, de identidade e de valores da população rio-grandense contemporânea?

Carlos Steil – Existe uma cultura, um jeito, um estilo de ser gaúcho que se reflete em muitos campos, em muitas formas de vida, que vão sendo assumidas pelos cidadãos rio-grandenses. Essa mesma cultura e estilo de ser também se refletem na religião. Não é possível separar a religião do estilo de vida dos gaúchos. Estes aspectos se determinam um ao outro. Entendo que entre religião e cultura existe uma tensão permanente, que vai se refletindo uma sobre a outra.

IHU On-Line – Qual é a peculiaridade do povo gaúcho no que se refere à crença, à espiritualidade e à mística?

Carlos Steil – Existem algumas marcas, alguns elementos diacríticos, que foram sendo incorporados no modo religioso de ser do gaúcho ao longo da história das religiões no estado. Por exemplo, uma característica própria do ser gaúcho é um certo posicionamento mais firme em termos da identidade religiosa. É o que falei sobre o pertencimento à religião afro no Rio Grande do Sul. É uma característica do povo gaúcho a clara definição do seu pertencimento em muitos campos, que se reflete também no campo religioso.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a missa crioula? Ela reflete a relação do gaúcho e da gaúcha católicos com Deus?

Carlos Steil – A missa crioula é uma forma de aproximação do catolicismo com a cultura gaúcha, mas com uma cultura gaúcha que é muitas vezes estereotipada. É uma relação mais na forma do que no conteúdo em si. Temos, de um lado, uma estereotipação do que é ser gaúcho, que aparece numa linguagem, numa estética, numa forma de se posicionar no mundo. De outro lado, a missa crioula se organiza como um ritual que se apropria destes estereótipos próprios do gaúcho e dá uma forma litúrgica a isto. Mas não acho que seja algo de raiz em termos culturais. Não atinge a raiz do que seja a experiência do gaúcho.

IHU On-Line - Para o senhor, os valores religiosos têm alguma interferência na concepção política do Rio Grande do Sul?

Carlos Steil – Com certeza. Se pensarmos em termos do próprio embate do campo religioso, muitos aspectos acabam se refletindo no campo político. Temos como exemplo esta lei sobre a proibição de se deixar restos de animais nas encruzilhadas, estradas e espaços públicos. É uma lei que, embora apresente um conteúdo que visa a higiene e limpeza urbana, na verdade pretende restringir ou coibir os rituais das religiões afro, dos despachos. Esse é um exemplo de como o embate religioso das religiões afro e neopentecostais acaba se expressando e se concretizando em leis e normas que vão se impor à sociedade como um todo.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição