Edição 263 | 24 Junho 2008

Período joanino: euforias x tensões

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Patricia Fachin

De acordo com István Jancsó, quando a Corte Portuguesa deixou de ser novidade, os conflitos e contradições começaram a aflorar na América Portuguesa, gerando motins, como a Revolução Pernambucana de 1817

“A vinda da família real, a instalação do centro decisório do Estado Português na América resultaram na criação de uma nova entidade política: o Reino do Brasil”, afirma István Jancsó, historiador e professor da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ele fala sobre as relações estabelecidas entre as elites da coroa e da colônia, as mudanças no Rio de Janeiro e os embates políticos ocorridos após o período joanino.
Jancsó é graduado em História, pela Universidade de São Paulo (USP). De suas produção bibliográfica, destacamos Independência: história e historiografia (São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005), Brasil: formação do Estado e da nação (São Paulo: Fapes; Ijuí: Unijuí, 2003) e Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa (São Paulo: Edusp, Hucitec, Fapesp, Imesp, 2001).

IHU On-Line - Como ocorreu a sociabilidade entre a Corte e os portugueses da América no período joanino?

István Jancsó – A relação entre os portugueses da América e a Corte instalada no Rio de Janeiro é multifacetada. Por um lado, podemos dizer que o Rio de Janeiro passou por um período de alterações muito acelerado. De repente, uma cidade com 50 mil habitantes recebeu uma população permanente que correspondeu a 20% do total. Isso seria mais ou menos a mesma coisa que São Paulo receber, hoje, aproximadamente dois milhões de novos habitantes. Por outro lado, a população que chegou a colônia era distinta, com padrões culturais e de consumo diferenciados daqueles que caracterizavam os moradores tradicionais da localidade. Essas diferenças, além de criarem uma disputa por espaços, alteraram radicalmente todo o referencial de padrões de comportamento e de sociabilidade das elites. Nesse novo contexto, o mercado de suprimentos também sofreu modificações. De repente, o Rio de Janeiro precisou atender um novo segmento de consumo para consumidores de classe A. Isso criou alterações significativas, que significaram dificuldades de relacionamento, porque quem chegou passou a disputar espaço com quem já estava estabelecido.

A Corte na colônia: um convívio tumultuado

A instalação da Corte Portuguesa em Lisboa representava um distanciamento da monarquia com a colônia, pois o acesso à nobreza era razoavelmente complicado. Com a vinda da família real para o Brasil, os portugueses da América, fossem os nascidos na colônia, fossem os vindos de Portugal, passaram a se sentir próximos da coroa, pois a possibilidade de contato a Corte como centro político ficou muito mais acessível.  Então, de imediato os habitantes do Rio de Janeiro ficam muito felizes, pois o rei estava perto e era possível ter acesso a ele. Embora nem tudo tenha sido positivo, pois a disputa por moradia e comida aumentou, os portugueses americanos se sentiram, num primeiro estágio, muito gratificados com a vinda da família real e aderiram com entusiasmo à monarquia.

IHU On-Line – Num segundo momento, porque esse cenário sofreu alterações?

István Jancsó – A partir do momento em que a Corte deixou de ser novidade, as tensões e contradições começaram a aflorar. A euforia com a presença do rei, que até então era administrada, se transforma em tensões que, em algumas circunstâncias, acaba explodindo em conflitos graves como a Revolução Pernambucana de 1817.  Quer dizer, em Pernambuco, essas tensões resultaram numa revolução que instaurou um contexto republicano e tomou Recife durante três meses. Com isso, o encantamento se rompe, porque a realidade prevalece. A repressão é brutal e envolve as outras partes da América. Assim, a crise política pernambucana é transferida para a Bahia, que acaba sendo também contaminada pelo radicalismo político, não traduzido imediatamente em rebelião, mas que aflora com a  Revolução Constitucionalista,  no Porto e se espalha por toda a América Portuguesa.   

IHU On-Line - De que maneira a vinda da Corte para o Brasil contribuiu para o desdobramento de novos ambientes artístico-culturais?

István Jancsó – Não é razoável pensar que antes da vinda da Corte não existisse vida cultural e espaços de civilização na colônia. Existiam pessoas muito ilustradas, afeitas a práticas sociais refinadíssimas. Conheço algumas descrições de jantares e até mesmo de um almoço oferecido aos oficiais do navio que chegou à Bahia com o príncipe-regente, D. João. O almoço foi oferecido por uma figura notável – hoje nós diríamos que ele pertencia à esquerda baiana -, um homem riquíssimo, padre Francisco Agostinho Gomes.  A descrição desse almoço por um jovem tenente da marinha inglesa, os elogios à biblioteca de Francisco Agostinho Gomes e a civilidade com que foram recebidos demonstram que existiam padrões civilizatórios refinados na América. Ainda assim, o que não existia na colônia era uma vida de corte. Os vice-reis e os governadores não criavam, ao contrário do que ocorreu em algumas situações da América Espanhola, cortes vice-reinais. De qualquer modo, existia uma vida musical de boa qualidade na América Portuguesa e no Rio de Janeiro, por exemplo. Claro que a música não era comparável com o que se entendia por música cortesã européia, mas a Corte Bragantina, em Lisboa e depois no Rio de Janeiro, apresentou uma vida musical permanente, superior à da grande maioria das cortes monárquicas e européias. Com isso, a cultura musical permaneceu no Rio de Janeiro e refletiu, mais tarde, nas outras grandes cidades da América Portuguesa. Essas mudanças ocorreram também com a imprensa e com os hábitos do cotidiano. A Corte definiu padrões, modas, maneirismos e trouxe um impacto considerável para a colônia.

IHU On-Line - Os acontecidos políticos, econômicos e culturais do período joanino contribuíram para a formação de identidade do povo português da América?

István Jancsó – Quando família real chegou à colônia, ocorreu à adesão das elites à monarquia. Quer se trate de paulistas, baianos ou pernambucanos, a ênfase identitária é deslocada para o português, ou seja, eles eram portugueses da América e não americanos que também eram portugueses. A partir do momento em que vem o desgaste da monarquia, existe uma operação simbólica poderosíssima que é a criação do Reino Unido. O Brasil passa a ser Reino Unido e os portugueses da América tornaram-se, então, brasileiros, porque a América portuguesa passou a ser o Brasil. Então, há uma alteração de significados e de representações identitárias que se realizam depois, com a revolução constitucional, isto é, da revolução de Lisboa e seus desdobramentos americanos. Mais tarde, com a Independência, eles ganham novos contornos. Assim, o período joanino reorganiza as alternativas em aberto na América Portuguesa para a superação da crise do Antigo Regime.

IHU On-Line - No que se refere às manifestações coletivas, como festas, qual foi a importância desses eventos para a construção da identidade nacional da população da época?

István Jancsó – No período pombalino, as festas já aparecem como um instrumento de racionalização das manifestações de apoio e de integração da diversidade portuguesa. O mesmo evento político, por exemplo, o casamento de um príncipe e uma princesa portuguesa, é festejado na América, em Portugal, África e eventualmente na Índia, mediante o mesmo padrão básico. Isso significa que a festa é um instrumento também de formatação de padrões de comportamento e de padrões de explicitação da adesão dos súditos à monarquia. Então, as festas políticas tinham a finalidade de tornar público o apoio e apreço a alguma realidade política. Com a vinda da família real, as festas seguem o calendário português, mas passam a obedecer um padrão de exteriorização que supera, em muito, o que existia antes, porque o rei está na colônia. Isso cria um paradigma que permanece durante o primeiro reinado, e só com o liberalismo elas passam a ser festas cívicas no sentido da revolução burguesa. Então, o estudo das festas ajuda a compreender o universo simbólico e os valores que são manejados.

IHU On-Line - Para o senhor, a vinda da família real para a colônia protelou ou deflagrou a Independência brasileira? É possível estabelecer relações entre a Independência e os movimentos insurrecionais do final do século XVIII?

István Jancsó – A vinda da família real e a instalação do centro decisório do Estado Português (espalhado pela Europa, África, Ásia e América) na América resultaram na criação de uma nova identidade política: o Reino do Brasil. O que existiam aqui eram capitanias ligadas a Lisboa e que pouco dialogavam entre si, não formando uma unidade. A instalação de um centro de poder na colônia, atraindo a diversidade que antes se encontrava em Lisboa, foi um fator de unificação desse todo. O antigo sistema colonial já havia sido detonado com a abertura dos portos, porém uma coisa é a definição jurídica, e outra é o desdobramento dessa definição na vida permanente, seja política, social ou econômica. A vinda da família real, a instalação da Corte e do centro de poder do império português na América, alterou o comportamento de todas as variáveis da vida política na América. Disso, resulta o aguçamento das tensões, cujo estopim veio a ser a Revolução Constitucionalíssima de Lisboa. A adesão dos brasileiros das diversas províncias a essa revolução acabou tornando inevitável a Independência porque pareceu a todos - e isso acabou sendo assumido - impossível a realização de um pacto constitucional que contemplasse as diferenças entre os interesses das elites portuguesas dominantes e os interesses das elites brasileiras.

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