Edição 262 | 16 Junho 2008

Machado de Assis e a articulação entre ceticismo e crítica

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Para a filósofa Kátia Muricy, Machado de Assis constrói uma crítica cética às transformações da sociedade brasileira oitocentista por meio de seu pessimismo

Kátia Muricy é autora de A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), no qual faz uma leitura da obra de Machado de Assis, tendo como pano de fundo o preconizado pessimismo e a contemporaneidade do escritor. E é sobre esse tema a entrevista que concedeu por e-mail para a revista IHU On-Line. Katia Rodrigues Muricy, professora do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, é graduada em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Filosofia, pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, e doutora em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Filosofia da UFRJ, foi sobre Machado de Assis e intitula-se “O legado da desrazão - Machado de Assis e a normalização médica”. É autora também de Alegorias da dialética (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999).

IHU On-Line - Há duas décadas, a senhora publicou A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo”, hoje esgotado. Do que trata o livro?

Kátia Muricy - Como o título indica, preocupei-me em situar o tão comentado pessimismo de Machado de Assis. E também, afirmar o vínculo desse pessimismo com a contemporaneidade do autor. Procurei mostrar como o famoso pessimismo não era apenas uma veleidade filosófica do romancista, fruto, por exemplo, de suas refinadas leituras de Schopenhauer ou dos moralistas franceses do século XVIII, mas muito mais do que isto. A partir dele, Machado constrói uma crítica cética às transformações da sociedade brasileira oitocentista, mais especificamente, às da realidade urbana do Rio de Janeiro.

IHU On-Line - Em que consiste essa crítica?

Kátia Muricy - Gosto muito da articulação entre ceticismo e crítica. Machado me parece um autor que pode iluminar toda a riqueza crítica da postura cética. Vejamos a sua ironia em relação aos direitos da razão universal, do progresso e da verdade científica expressa principalmente em seus romances da chamada segunda fase: Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Analisei a construção dessa crítica a partir dos personagens, da trama, das ponderações filosóficas humoradas do narrador, tão ao gosto de nosso autor, leitor de Sterne.

IHU On-Line - Mais diretamente, na realidade brasileira, contra o que se dirige esse ceticismo?

Kátia Muricy - Para mim, o ceticismo de Machado em relação ao pensamento liberal e à racionalidade burguesa é o filtro crítico com que ele acolhe a entrada dos valores da modernidade européia no Brasil, as profundas transformações da sociedade carioca no século XIX.

IHU On-Line - Quais foram essas transformações da cidade do Rio de Janeiro a que a senhora se refere?

Kátia Muricy - Os personagens de Machado vivem na Corte. Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, inicia-se a modernização do Rio de Janeiro, acelerada no Segundo Reinado. A fisionomia da cidade muda rapidamente: ruas iluminadas a gás, bondes elétricos, novas avenidas, lojas francesas, companhias líricas européias. Emerge uma nova sociabilidade, urbana e cosmopolita: novos hábitos e valores irão conviver, às vezes conflituosamente, com os antigos costumes da tradição colonial. Esta é a época conturbada dos personagens de Machado de Assis.

IHU On-Line - Neste panorama, como Machado de Assis faz a sua intervenção crítica?

Kátia Muricy - O romance de Machado de Assis, mais do que uma fotografia da sociedade carioca oitocentista, é a lente requintada que revela, quase sempre em negativo, a inteligibilidade dessas mudanças. Se com a “pena da galhofa” relativiza o século do progresso, rindo-se das suas conquistas científicas e das inovações na vida social, é com a “tinta da melancolia” que escreve sobre o que considera um “século esfalfado” por tantas crises.

IHU On-Line - O seu livro considera principalmente o papel da medicina nesse processo de modernização. Por que a medicina?

Kátia Muricy - A exigência de racionalização a que respondiam as transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas na Europa a partir do final do século XVIII, determinadas pela nascente industrialização e pelas novas modalidades de exercício do poder, também se fez sentir de forma muito peculiar no Brasil. Ainda que com fundamentais diferenças, o século XIX brasileiro viu surgir novas formas de organização social que nos aproximavam do processo de racionalização que, a partir das reformas sanitárias e pedagógicas do século XVIII na Europa, ganhou características muito particulares que permitem agrupá-las naquele processo que Michel Foucault chamou de normalização, a partir da obra O normal e o patológico, de Georges Canguilhem.  O discurso médico brasileiro, expresso principalmente nas teses acadêmicas, mas também em dispositivos institucionais, tem, no século XIX, um projeto muito próximo deste modelo.

IHU On-Line - Em que medida o seu livro retoma o trabalho que a senhora realizou juntamente com os pesquisadores Roberto Machado,  Angela Loureiro e Rogério Luz, Danação da norma – Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil?

Kátia Muricy - O meu livro sobre Machado de Assis é imensamente devedor desse grande livro, uma pesquisa pioneira da qual tive a honra de participar em 1978. Deve muito também ao excelente trabalho de Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, de 1979. Estes livros foram pioneiros nesse gênero de pesquisa, decididamente influenciados pelas novas perspectivas historiográficas abertas pela proposta genealógica de Michel Foucault .

IHU On-Line - E como entra Machado de Assis nesta análise que privilegia a medicina?

Kátia Muricy - Eu retomo a distinção tradicional de seus romances em duas fases. Na primeira – Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia –, o ponto de vista da narrativa é o da ótica moral da família. Essa moral delimita o espaço dos conflitos e fornece os preceitos que servirão de norma para a consideração dos personagens e de suas ações. Não há, no entanto, uma coincidência plena com os valores tradicionais da sociedade patriarcal. O tom conservador não é nem autoritário nem tradicional. Há uma ambigüidade de certa forma semelhante àquela do discurso médico, que procura conciliar a modernização com os valores da sociedade patriarcal. Um exemplo, nestes romances, é o personagem celibatário ou o libertino. A ótica do romancista está aí muito perto da ótica sanitarista. Mas, nos romances maduros, Machado se libera do discurso progressista liberal de seu tempo, ao mesmo tempo em que se desprega dos valores familiares da tradição colonial. Ao denunciar, como tantos outros segmentos da sociedade brasileira e, principalmente os médicos higienistas, a decomposição moral da família patriarcal, Machado de Assis não se compromete – e isto é para a minha análise o mais fundamental – com a concepção nova e burguesa da família e da sociedade. É aí que entra o seu dispositivo crítico, o ceticismo.

IHU On-Line - Como isto ocorre nesses romances que a senhora privilegiou?

Kátia Muricy - Dou um exemplo: as figuras apresentadas em todas as teses de medicina social como ameaça não só à saúde física dos indivíduos e das famílias – celibatários, libertinos e mundanas - constituem, nos romances maduros de Machado, o que eu chamei de “pedagogos da nova ordem burguesa”, construídos a partir desse dispositivo cético a que me referi. Basta pensar no personagem do Conselheiro Aires, celibatário por vocação, crítico refinado das conquistas sociais do discurso liberal da política brasileira.

IHU On-Line - Um dos capítulos de seu livro é sobre o conto “O alienista”. No contexto do privilégio dado por sua análise à medicina, como situa este conto, claramente crítico em relação à distinção entre a normalidade e a loucura?

Kátia Muricy - Simão Bacamarte nos é apresentado como “o maior médico do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, encarnação de todas as virtudes de um cientista e de todas as prerrogativas do progresso. O conto, que retoma um tema constante na obra de Machado e na tradição literária, justamente este da partilha entre razão e sandice, pode ser lido como uma metáfora de uma sociedade que procura desastrosamente a sua identidade nos traços modernos das sociedades desenvolvidas européias – aqui, a psiquiatria devastando a pacata Itaguaí.

IHU On-Line - Quais seriam os outros aspectos em que a posição cética elabora a crítica de Machado a sua contemporaneidade?

Kátia Muricy - Gosto em especial da consideração do narrador-memorialista desses romances maduros. Dom Casmurro, o Conselheiro Aires ou Brás Cubas. Escrever memórias não instaura, para eles, nem a unidade subjetiva da experiência, nem sua verdade. Escrever é o cultivo de uma intimidade, uma exacerbação requintada do privado, um meio de se fugir da insipidez da vida mundana. Mas, se o cultivo da intimidade é acompanhado pela experiência de perda da unidade do eu na dispersão dos acontecimentos vividos, representa, no entanto, mais do que isto. Este cultivo é a tentativa, sempre fracassada, de superar tal experiência. Assim, a fragmentação da narrativa, principalmente nas ousadias formais de Memórias póstumas de Brás Cubas ou na forma de diário de Memorial de Aires, evidencia o fracasso como uma expressão da vivência do moderno na sociedade brasileira do século XIX.

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