Edição 262 | 16 Junho 2008

Outro pecado, oblíquo e dissimulado

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Professora da PUC-Rio, Eliana Yunes analisa a questão do ciúme e da inveja na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis

Eliana Yunes busca na psicanálise o argumento para construir uma crítica, se não inédita, ao menos diferenciada sobre o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis: inveja e ciúme estão, de fato, intimamente associados. Professora e coordenadora da Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, Eliana argumenta que o ciúme preconizado pelos críticos como o propulsor das atitudes de Bentinho, é, na verdade, um sentimento velado de inveja, esta sim, a mola-mestra de toda ação e sofrimento do personagem. 
Eliana Yunes possui graduação em Filosofia e Letras, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, mestrado e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e pós-doutorado pela Universidade de Colônia, da Alemanha. É autora de, entre outros, Pecados (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001) e Virtudes (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001). Eliane Yunes já concedeu outra entrevista à IHU On-Line: “Clarice Lispector: uma descoberta avassaladora”, na edição 228, de 16-07-2008, colaborando, ainda, na confecção da pauta. Na edição 244, de 19-11-2007, Antônio Vieira. Imperador da Língua Portuguesa, colaborou com a elaboração da pauta.

IHU On-Line - Quando se  fala em ciúme na literatura brasileira, o exemplo clássico que muitos compartilham é a obra-prima de Machado de Assis, Dom Casmurro. A senhora concorda com a recorrência da crítica sobre o tema?

Eliana Yunes - Talvez já milhares de páginas se tenham escrito sobre o caráter ciumento de Bentinho, tão dissimulado quanto o olhar oblíquo de sua Capitu. Romancistas se deram ao capricho de reler a obra para reescrevê-la por focos narrativos diferentes, tal como o fizeram Fernando Sabino,  saindo da primeira pessoa, ou Domício Proença  adentrando nela na pele da Capitolina que no texto machadiano não tem vez para se defender, nem voz para argumentar. Contudo, quanto mais nos debruçamos sobre o romance, mais dúvidas, detalhes e indícios surgirão. Não é para menos: de quantos ângulos podemos olhar um fato e tentar cobri-lo com nosso relato? E depois de exaurir todas as perspectivas, deslocados um pouco no tempo, outras percepções podem ocorrer. Ou leitores já de outras obras, tomados por intertextualidades insuspeitadas, nos sobrevêm um entendimento novo, uma ponta perdida no enovelado em que nos metemos. É preciso ousar para não ficar no mesmo.

IHU On-Line - A senhora já se deu direito a esta ousadia?

Eliana Yunes - Revisitando o bruxo, não mais no Cosme Velho, mas nas páginas do clássico, uma vez me apanhei paralisada num parágrafo, precisamente o terceiro do capítulo LXXXIII, nomeado "O retrato". Cito, pondo grifo: “Nem sobressalto, nem nada, nenhum ar de mistério da parte de Capitu; voltou-se para mim e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor. TODAS AS MINHAS INVEJAS FORAM COM ELA. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?”. Seria possível que alguém se sentindo seduzido pelas qualidades da amada, pudesse, casando-se mesmo com ela, encontrar-se anos depois numa situação de difícil entendimento, antes para si mesmo que para os outros: descobrir que tê-la para si não o fazia co-proprietário de seus talentos?  A admiração tornar-se-ia peso e desconfiança, em si mesmo e quanto a ela, conduzindo pouco a pouco a uma irritação e mágoa destrutivas do relacionamento. Decidi seguir a pista.

IHU On-Line - E o que encontrou pode abalar a crítica tradicional em torno do ciúme?

Eliana Yunes – Abalar, não sei, mas leituras coexistem. Mas em nosso Machado, a questão da inveja explicitamente nomeada não para aí. Páginas adiante ela volta, agora enunciada por Escobar, como decorrente da perfeita sintonia que existia entre ambos e denunciada pelo superior dos noviços como imodesta, o que, em definitivo, mais os aproximou (cap. XCIV). Abrem-se outras suspeitas, agora sobre Bentinho e não sobre Capitu. Passagens menos explícitas acodem de imediato à memória. Às portas do casamento, Bentinho ouve vozes de fada anunciando a felicidade, reportando-se às fadas dos contos que ficam a morar no coração dos meninos, mas a comparação textual que faz para seu presságio vem de uma das mais célebres cenas de tragédia -  movida pela inveja -  de que temos notícia: “Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: Tu serás rei, Macbeth! – Tu serás feliz, Bentinho! AO CABO É A MESMA PREDIÇÃO”, conclui para o próprio espanto, sem que o bruxo chame atenção para o tipo de aproximação que faz (cap. C). Mais adiante, a Bentinho tão pouco passa despercebida a inveja que desperta  em muitos, na rua, ao vê-lo casado com aquela “mocetona”! Atribui à mulher a impaciência com que “inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem” (cap. CIII).

IHU On-Line - Então, não há ciúmes?

Eliana Yunes - Não é o caso de dizer que os ciúmes não se explicitem, ao contrário: Bentinho os sente tanto dos olhares que despertam os braços perfeitos de Capitu, quanto do olhar demorado da jovem de Matacavalos, concentrado sobre o mar, trocando Sirius por Marte (cap. CVI). E, no capítulo seguinte, adianta algo quase imperceptível: “A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister pecado efetivo e mortal, nem papel trocado, simples palavra ou aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e leve (...). Meus ciúmes eram intensos, mas curtos”. Eles vão explodir no velório de Escobar, sendo que a motivação parece outra, nesta circunstância, já que a razão para os ciúmes acabara de desaparecer! Greimas  nos advertia para uma leitura do jogo das paixões.

IHU On-Line - Machado é dissimulado em sua escrita: como rastrear o tema da inveja e não propriamente o do ciúme?

Eliana Yunes - Seria gratuito que o capítulo intitulado "O filho" (CVIII), nos dois parágrafos iniciais, abrisse espaço para repetir e considerar a inveja como motivação para a busca de um fruto do vosso ventre que se pudesse por ao lado da Capituzinha, rebento de Escobar e Sancha, o casal amigo inseparável? Por que deixar passar em brancas nuvens o fato de que ele e Escobar, que não pudera ser padrinho do menino Ezequiel, terem protestado tal gosto em ver juntos os filhos que assinassem um pacto de casar o pequeno com a menina? Mas este pecado grave, o de um incesto, premeditado não lhe ocorre imputar ao amigo já morto e, contudo, a seu ver, adúltero.

Veja-se que no capítulo “As imitações de Ezequiel” – que, habilidoso em perceber certos traços e tiques pessoais dos conhecidos, representa-os como forma de atrair a atenção - é Capitu quem se irrita com as encenações de José Dias e Escobar, ensaiadas em casa pelo filho. E seria a mesma Capitu, nada cigana oblíqua e dissimulada, que lhe chamaria atenção para o jeito de olhar do “profetazinho”, como era chamado o filho em referência ao texto bíblico: uma expressão esquisita como só vira “em um amigo do pai e em Escobar”, sem que nenhuma estranheza ocorresse a Bentinho, apesar de concordar com a observação.
Concordava também com todos os elogios e todas as louvações que a família e amigos faziam às virtudes sem par da esposa (cap.CXVI). Justo para adornar a expressão de amizade entre os quatro, Bentinho vai se lembrar do adágio popular, “longe dos olhos, longe do coração”, revertendo-o, pois assinala que os quatro tinham corações muito próximos; donde podemos deduzir que tudo estava a olhos vistos (cap.CXVII). Tanto assim que ele até então só se perturbara com olhares e apertos de mão distintos que, por vezes, sentira em Sancha, lutando todo um capítulo entre “a perdição e a salvação” para se livrar de tais imagens, diluídas a custo, diante justamente, do retrato do amigo ao pé de sua mãe.

IHU On-Line - Como se dá a crise na morte de Escobar?

Eliana Yunes - A inveja retornara antes curiosamente aos braços, agora não mais os de Capitu, invejáveis pelos transeuntes nos passeios, mas aos de outro, os do amigo Escobar, “que eram mais grossos e fortes do que os meus e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar”. O amigo morre no mar na manhã seguinte e desata no enterro o nó da intriga nunca vislumbrado (aqui não há qualquer Iago para induzi-lo ao erro fatal), ao se deparar Bentinho com a fortaleza de Capitu, amparando a viúva e olhando fixamente o cadáver. Poderia Capitu amá-lo mais que ele, Bentinho? Esta questão não se coloca para o advogado casmurro que perdera o amigo invejado e transfere as suspeitas de Sancha para Capitu. Vale examinar “os sentidos da paixão” (dúbios) que podem submeter à razão.

IHU On-Line – Por que Bentinho se fixaria no retrato de Escobar?

Eliana Yunes - Ele procura uma explicação para seu desconforto. A força das similitudes (Ezequielzinho e Escobar) elide a das diferenças (entre ele e o amigo) que poderiam, estas sim, justificar os ciúmes. O bacharel agora advogaria em causa própria, sem contraponto que não fosse o retrato de Escobar. Aliás, no primeiro capítulo já citado, aparece uma indicação que não é gratuita a quem lê, por este viés a elaboração perversa de Bentinho. Ali mesmo, na seqüência de sua explicitação da inveja que sente da moça, um comentário do futuro sogro de Escobar (pai de Sancha), com o qual concorda Bentinho, chama a atenção para a semelhança de Capitu com sua mulher, de tal ordem que “pareciam irmãs”. E acrescenta: “na vida há dessas semelhanças esquisitas”. Ele se lembrará disto já às portas da separação (cap.CXL), mas nada o demoverá, nem as próprias contradições. Ao revés, a semelhança que poderia invocar para cobranças, notória e justificada, passa ao ex-seminarista como irrisória: a de si mesmo com o pai (cap.XCIX).

IHU On-Line - Como se constrói, a seu ver, este equívoco?

Eliana Yunes - A psicanálise não tratou do ciúme sem atrelar sua discussão à inveja, ao narcisismo e à projeção, como se vê em Melanie Klein . Centro das atenções da mãe viúva criado para o sacerdócio em decorrência de promessa a custo revertida e, apesar disto, insignificante e sem brilho seu, Bentinho cresce admirando Capitu, por sua desenvoltura, autonomia e boas maneiras. Depois, no seminário, seria Escobar o companheiro admirável com quem procura identificação. Vai se cercar de ambos, pessoas a quem ama como escudos, enquanto não lhe vem à tona o corpo morto de um deles. A rivalidade, a concorrência e a competição sublimadas agora dão à praia de seu imaginário.

Aflora, então, “o sentimento de desconfiança” que combatera em si mesmo quanto à mulher do amigo, nas vésperas da morte deste. A desconfiança agora é posta sobre si: o temor de que poderia ficar claro no desaparecimento do amigo, o seu próprio eclipse, por um lado. A emulação controlada com relação a Escobar, que pressupunha sua superioridade, abafara a rivalidade, porém sua sombra torna-se perceptível, agora. Como se dá em retrospecção, ela não se especializa em temor, mas em sofrimento, em raiva surda. Confirma Melanie Klein: “inveja e ciúme estão de fato, intimamente associados”.

IHU On-Line - Capitu poderia ser, portanto, inocente?

Eliana Yunes - O narrador em primeira pessoa não deixa, nem quer ouvir outra voz. A releitura/reescrita do romance, num jogo de intratextualidades arguto – Capitu - Memórias póstumas, de Domício Proença Filho –, sagazmente, também não o fará por fidelidade a Machado. Por outro lado, é possível ler que a inferioridade de Bentinho com respeito ao brilho de Capitu pese inconscientemente sob a forma de rejeição, como “algo bom demais para mim”, agora que a situação o coloca sem chances de saber o que se passara de fato no coração de Sancha, inferiorizada talvez pelo confesso brilho da amiga. Escobar também deslocava o possível sentimento de culpa ou de dúvida que pesavam sobre Bentinho. O impulso gregário, que une a familiares e amigos, ratifica a necessidade que temos de acumular e recolher uma medida ampla de amor e segurança. Isto serve para desviar o ódio e os perigos, os sentimentos persecutórios. Ter amigos, neste caso, afastaria o risco do ódio e a periculosidade neles passa a inexistente ou controlada. Mas, se nos abandonam, os terrores submersos podem nos atacar. A introjeção se transforma em projeção e o objeto do temor, em nosso romance, já não pode ser o morto que Bentinho admirara ilimitadamente, mas Capitu que está viva para testemunhar sua fragilidade.

IHU On-Line - Haveria então uma cena oculta?

Eliana Yunes - Machado nos conduz pela cena aparente do ciúme (que não está na lista dos sete pecados capitais), não apenas à inveja, mas ao pecado, cujo nome transita impronunciado e subterraneamente pelo livro, sem ser demasiadamente incomodado pelo narrador e pelos críticos. Por este caminho, os desejos de Bentinho teriam que ser examinados com lupa, por conta de uma fixação que permanece no amigo morto, a ponto de levá-lo a rejeitar o filho. Mas isto já seria outra longa conversa...

IHU On-Line - Por que Capitu não se defende com vigor?

Eliana Yunes - Na verdade, ela o faz na medida em que comporta sua dignidade feminina moderna (ela não é a Aurélia de Alencar!) e a condição de mulher no século XIX. Ela perderia certamente uma disputa com o marido, de qualquer modo. Mesmo tendo personalidade própria, ainda vigoravam socialmente as leis do amor romântico, tratado exemplarmente por Dante Moreira Leite e depois por Jurandir Freire,  que nem na intimidade, nem em público, tirava as máscaras. Ela acaba “morrendo” com Escobar, ainda que não o tivesse querido.

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