Edição 261 | 09 Junho 2008

O sonho de Cassandra. Uma tragédia contemporânea

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Arteplex, do Shopping Bourbon

O sonho de Cassandra, de Woody Allen, é um dos filmes certamente mais surpreendentes do ano. Não só porque Allen volta à sua antiga forma, depois do sofrível Scoop, mas porque apresenta uma trama que não fica nada a dever aos melhores filmes clássicos de suspense feitos nos anos 1950, com uma montagem, talvez, mais moderna. Alguns críticos compararam sua nova obra com Match point – Ponto final, que tinha sua atriz preferida atualmente, Scarlett Johansson. No entanto, a meu ver, embora haja pontos semelhantes entre as duas, eles acabam sempre ressaltando mais O sonho de Cassandra. Ou seja, em Match point havia ainda um traço excessivamente alegórico na atitude do rapaz que fazia qualquer coisa por dinheiro, escondido por trás de uma aparência tranqüila e interessado num comportamento idílico ao lado da namorada.

O início de O sonho de Cassandra parece trazer uma espécie de drama de costumes simples, voltados a um cotidiano londrino contemplativo. Os irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell) estão interessados em comprar um barco para velejar e, portanto, para seu descanso. No entanto, percebe-se que eles não têm absolutamente nenhuma sustentação financeira. Mesmo assim, apostando como num jogo de cartas ou numa corrida de cães (e o filme não poderia ter melhor analogia), eles compram o barco e o batizam como “Sonho de Cassandra”. Depois, descobre-se que Terry vive de jogos e sonhos, trabalhando numa oficina e bebendo muito nas horas vagas. O outro, Ian, está preso ao restaurante do pai, mas sonha em trabalhar como sócio numa rede de hotéis na Califórnia. Em dias de folga, pede a Terry para usar alguns jaguares deixados na oficina para aparentar uma pretensa riqueza. São perspectivas diametralmente opostas, que vão colidir, em determinada altura, quando pedem ajuda ao tio ricaço (Tom Wilkinson, com seu tom frio, característica desde Entre quatro paredes, vital, numa cena emblemática, para a compreensão do filme) para saldarem algumas dívidas e construírem negócios próprios. No entanto, o pedido em troca do tio é matar alguém que pode entregar à justiça alguns de seus negócios escusos.

A partir desse pedido, o que antes parecia um drama de costumes, com o fato de irmãos terem o sonho de velejar nos finais de semana, começa a envolver um clima claustrofóbico, em que ambos precisam lidar com os limites impostos pela consciência. Da mesma maneira, surge a questão da ética, ligada – na figura do irmão Terry – aos preceitos religiosos, que dizem não permitir determinada ação pecaminosa. A essa trama, Allen costura a idéia de como a família deve se ajudar. Isso porque a constituição de uma família própria é, também, uma obsessão dos irmãos. Terry quer comprar uma casa para viver com a namorada; Ian quer se mudar para a Califórnia com uma atriz de teatro que acabou de conhecer. A atriz, no entanto, ao contrário da figura masculina, é volúvel: dorme, por exemplo, com um diretor para conseguir papéis. Ou seja, Allen parece posicionar a união familiar com uma individualidade que deve escapar a preceitos universais e mesmo à realidade, sobretudo na figura da atriz, que se esconde por meio de seus personagens.

Os interesses que surgem nessa união familiar, ao mesmo tempo, parecem ameaçar o posicionamento de dedicação aos mandamentos da Bíblia. Desse modo, os irmãos se debatem com a questão: devem ou não matar o homem que pode prejudicar o tio ricaço? O que vale mais: a conservação da idéia de que não se deve tirar a vida do próximo, ou a mudança de vida, por meio do dinheiro, e a “união” familiar? Tais dúvidas voltam a remoer sobretudo o personagem Terry, para quem a religião passa a ser uma espécie de fuga da realidade, antes vivida por meio do vício por ganhos em jogos. Os irmãos, afinal, devem cometer o crime para que possam realizar seus planos e saldar suas dívidas. O apego à religião, para que a consciência possa descansar, tem algo de substancial, na visão de Allen. Ou seja, o cineasta apresenta os dois irmãos como pessoas interessadas na constituição de uma família e em sua sustentação. No entanto, para que consigam isso – na situação-limite da trama –, eles se vêem obrigados a tentar rever sua formação religiosa. Allen não parece falar da consciência verdadeira como algo distante, no caso de Terry, sobretudo, dos jogos e da realização pessoal, mas, da mesma maneira, como um distúrbio, igualmente irreal e que leva a um plano claustrofóbico, sem saída. Ou seja, Allen parece não indicar uma saída: ele, pelo contrário, visualiza a falta de equilíbrio que há entre o concreto – a necessidade imediata – e o que é difícil de se manifestar: a consciência verdadeira. Do mesmo modo, não se sabe se Allen quer afirmar que a mulher – figura pela qual os irmãos arriscam a vida – traz uma destrutividade e a conseqüente tragédia. Tal saída não seria incomum na obra de um cineasta também caracterizado pelo deboche em cima do universo feminino (embora o contrabalance com uma sensibilidade, a exemplo do que vemos em belos filmes, como A rosa púrpura do Cairo e Hannah e suas irmãs). Mesmo assim, no final do filme, parece que o universo feminino é visto como o oposto completo do homem – e sob um viés positivo, o que deixa em suspenso, mais ainda, os objetivos do diretor, mas mostrando que ele desenvolve uma complexidade quando se dedica a projetos dramáticos. É como quando filma o pedido do tio aos sobrinhos embaixo de árvores, sob uma chuva fria – como se esta ainda fosse capaz de limpar a consciência dos personagens.

O dinheiro é o principal elemento da obra recente – e mais pendente para o drama - de Allen. Em Match point, sobretudo, a tragédia se dava em razão dele. Mas mesmo nos momentos mais bem-humorados de Allen, como Trapaceiros ou Dirigindo no escuro, o dinheiro é visto como uma saída caricatural da sociedade de consumo. Allen dá a impressão de brincar a distância – desde que começou a filmar em Londres – com o fato de que está cada vez mais longe de Hollywood e sua obsessão monetária. Em certos momentos, Allen remete essa consciência da sociedade consumista – um tema bastante presente em dois de seus melhores filmes dos anos 1990, Maridos e esposas e Tiros na Broadway, este num viés bem-humorado – a um espaço sem resposta, a um limite com a própria existência. Quando não há saída diante deste espaço, o tom, portanto, de tragédia, se anuncia, sobretudo por meio da trilha sonora soturna de Phillip Glass (que compôs a música em tom crescente do dramático As horas) e da fotografia sombria de Vilmos Szigmond. Também está presente nos diálogos, que misturam conhecimentos teatrais. Allen joga, nesse ponto, com a visão da mímesis aristotélica e na citação de tragédias como Medéia e da própria Cassandra do título, e parece transformar alguns personagens – os pais dos personagens centrais – em estereótipos. Tudo, é claro, para dar um panorama mais intelectual à situação desesperadora dos irmãos, mas também para criar uma voltagem mais interessante, em que os personagens se refletem, como se estivessem num labirinto de espelhos e precisassem escapar desse cenário. Ao mesmo tempo, para fortalecer a narrativa, os atores centrais, McGregor e Farrell, estão certamente em seus melhores momentos no cinema. Farrell já havia mostrado algum talento antes, mas em O sonho de Cassandra Allen consegue extrair dele – e é um de seus talentos – uma grande atuação. O seu personagem Terry é a figura emblemática do conflito humano entre a formação familiar e o desespero de continuar vivo, e isso o torna um personagem de notável dimensão, dando ao filme um fôlego incomum. Fôlego que supera, e muito, Match point e outros filmes de sua trajetória.


Ficha técnica

Título original: Cassandra’s dream
Direção: Woody Allen
Gênero: Drama
Tempo de duração: 108 minutos
Ano de lançamento (EUA / Inglaterra / França): 2007
Elenco: Ewan McGregor (Ian), Colin Farrell (Terry), John Benfield (pai),
Clare Higgins (mãe), Tom Wilkinson (Howard)
Sinopse: Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell) são irmãos que
decidem comprar o barco “Cassandra's Dream”, apesar dos problemas financeiros
que ambos atravessam. Quando ambos estão precisando de dinheiro, aproveitam a visita de
um tio para lhe pedir dinheiro. Mas, em troca, o tio quer que eles matem uma pessoa que pode prejudicá-lo

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