Edição 261 | 09 Junho 2008

Cirne-Lima: defensor de uma posição única no debate filosófico

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Paulo Roberto Margutti Pinto avalia a atuação de Cirne-Lima na academia e reconhece sua influência no debate filosófico brasileiro

Adepto de algumas releituras do sistema filosófico hegeliano realizado por Cirne-Lima, e contrário a outras, o pensador analítico Paulo Roberto Margutti Pinto afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que o filósofo “nos convida a repensar e a não a repetir Hegel”. Com isso, avalia, “ele provoca não só os hegelianos tradicionais, que não vêem com bons olhos a lógica formal, mas também os filósofos de tendência analítica, como eu, que não vêem com bons olhos a lógica dialética hegeliana. O resultado é um debate muito estimulante e frutífero em torno do significado da obra de Hegel”. Confira, na entrevista a seguir, as considerações do pesquisador referentes às teorias de Cirne-Lima, especificamente sua crítica à contrariedade.

Paulo Roberto Margutti Pinto é graduado em Filosofia e mestre em Filosofia Contemporânea, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Cursou o doutorado na Universidade de Edinburgh e, atualmente, é docente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG.

IHU On-Line - Como o senhor percebe as ponderações apresentadas por Cirne-Lima aos possíveis “erros de Hegel”?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Como pensador de tendências analíticas que sou, creio que Cirne-Lima tem razão ao criticar certos erros em Hegel. Um deles, em minha opinião, está na idéia de que a tese, em sua evolução histórica, caminhará em direção à sua contraditória, que se expressará na antítese. Ora, não há sistema algum de lógica que seja capaz de gerar a antítese não-A a partir da tese A e permanecer consistente depois disso. O outro erro está em supor que a síntese possa ser formada pela conjunção de A com não-A. Uma vez admitido que a síntese seja formada por essa conjunção, o sistema hegeliano se torna trivial, no sentido de poder provar qualquer coisa. Aliás, esse é um dos maiores problemas da Ciência da Lógica, que, ao fim e ao cabo, prova absolutamente tudo, não deixando coisa alguma fora do sistema. Cirne-Lima tenta superar esses erros, alegando que a oposição entre tese e antítese é por contrariedade e não por contradição. Como duas proposições contrárias podem ser falsas ao mesmo tempo, ele pode, então, construir uma síntese em que a tese e a antítese se tornam simultaneamente falsas, evitando a presença de contradição no sistema e a conseqüente trivialidade. Em meu debate com ele, procuro mostrar que a oposição por contrariedade, embora evite os problemas de Hegel, cria outros. Por exemplo, a contrariedade não tem a força da contradição para impulsionar o movimento histórico; uma síntese em que os elementos contrários da tese e da antítese se tornam falsos certamente constitui uma superação da oposição, mas é incapaz de conservar os elementos contrários que superou, porque esses se tornaram falsos. Em nossas discussões, tentei mostrar-lhe, através de processos formais, que a proposta dele era inconsistente. Esse foi, provavelmente, um dos fatores que levou Cirne-Lima a tentar defender a consistência de sua proposta através da formalização da lógica dialética baseada na oposição por contrariedade. Como se pode ver, tivemos uma rica troca de experiências intelectuais. Espero que ela possa continuar mesmo depois da aposentadoria de Cirne-Lima.

IHU On-Line - Como o meio acadêmico hegeliano vê as empreitadas de Cirne-Lima, como a da formalização da Ciência da Lógica?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Os hegelianos vêem a lógica formal como um mero capítulo de um movimento maior, a lógica dialética. A primeira é estática e não dá conta de explicar os processos históricos, que se desenvolvem no tempo. A segunda é dinâmica e possui a capacidade de explicar os processos históricos. A lógica formal fica paralisada quando depara com uma contradição. A lógica dialética avança justamente quando depara com uma contradição. Nessa perspectiva, qualquer tentativa de formalização da dialética é vista pelos hegelianos como uma diminuição da mesma. É como se estivéssemos utilizando a parte – lógica formal – para explicar o todo – lógica dialética – ou o inferior para explicar o superior. O meio acadêmico hegeliano não vê com simpatia a iniciativa de Cirne-Lima. Para piorar, o meio acadêmico de tendência analítica, ao qual pertenço e que enfatiza a lógica formal em detrimento da dialética, também não vê com bons olhos essa iniciativa, pois considera-a desnecessária e destinada ao fracasso. Isso coloca as idéias de Cirne-Lima numa situação em que se encontram expostas ao fogo inimigo em dois flancos, mas, ao mesmo tempo, lhe confere uma posição única no debate filosófico.

IHU On-Line - Cirne-Lima, ao avaliar o pensamento hegeliano, concorda com duas críticas introduzidas por Schelling. A primeira diz que Hegel não foi suficientemente claro em dar ênfase para a facticidade da história. A segunda é que, para Hegel, a razão funciona e se movimenta mediante a contradição. O senhor concorda com essas posições?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Concordo com a primeira, mas tenho reservas quanto à segunda. No que diz respeito à primeira crítica, reconheço que a ênfase na facticidade da história é indispensável para que a dimensão contingente dos acontecimentos seja devidamente respeitada. Em Hegel, parece valer o seguinte princípio: “Se os fatos não concordam com a teoria, então azar dos fatos”. Ora, essa não me parece uma estratégia acertada para uma teoria científica adequada. Cirne-Lima também está preocupado em recuperar a dimensão contingente dos fatos e, por esse motivo, tenta articular uma dialética descendente que, paradoxalmente, não é determinista. Através dela, ele não faz deduções de acontecimentos necessários no processo histórico, mas admite a presença de acontecimentos contingentes. No que diz respeito à segunda crítica, Cirne-Lima tenta substituir a dialética baseada na contradição por outra, baseada na contrariedade. Como disse, essa última não consegue explicar adequadamente o movimento e não oferece uma síntese adequada dos elementos opostos. Minha proposta alternativa consiste em preservar a contradição e a lógica formal, apesar de reconhecer as limitações dessa última para dar conta de uma realidade muito mais complexa do que ela. Nessa perspectiva, só podemos utilizar a lógica formal para descrever aspectos da realidade, nunca ela toda. Desse modo, a lógica formal poderia ser usada tanto para descrever o aspecto-tese como o aspecto-antítese da realidade. Mas, como esses aspectos são mutuamente excludentes, nunca poderemos descrevê-los simultaneamente e sob o mesmo ponto de vista. Teremos de nos conformar com descrições parciais e complementares da realidade, que nunca poderão ser superpostas, sob pena de inconsistência. Nessa dialética, a contradição ficaria preservada como geradora do movimento e nunca haveria uma síntese, o que evitaria o problema da trivialidade. No entanto, essa é uma outra história, que não me parece oportuno desenvolver em detalhe aqui.

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições desse filósofo para o avanço nos estudos sobre Hegel?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Penso que Cirne-Lima assume uma postura muito diferente daquela dos demais estudiosos de Hegel no Brasil, que se limitam a comentar mais ou menos escolasticamente a obra do grande pensador alemão. Cirne-Lima nos convida a repensar e não a repetir Hegel. Sua proposta não é exegética, mas dialética no sentido mais autêntico da expressão. Como discípulo autêntico de Hegel, Cirne-Lima, embora extraia sua inspiração do mestre, se propõe a superá-lo, utilizando elementos de lógica formal que são caros aos pensadores analíticos. Com isso, ele provoca, segundo mencionei, não só os hegelianos tradicionais, que não vêem com bons olhos a lógica formal, mas também os filósofos de tendência analítica, como eu, que não vêem com bons olhos a lógica dialética hegeliana. O resultado é um debate muito estimulante e frutífero em torno do significado da obra de Hegel para nós hoje, que só não é maior porque, infelizmente, os pesquisadores brasileiros tendem a silenciar sobre aquilo com que não concordam, ao invés de discuti-lo para atingir uma melhor compreensão. Mesmo assim, Cirne-Lima contribuiu inegavelmente para um estudo da obra de Hegel, que se revelou mais independente e capaz de estimular a formação de uma escola de pensamento.

IHU On-Line - De que maneira a obra de Cirne-Lima contribuiu para a construção e consolidação do pensamento filosófico no Brasil?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- De diversas maneiras. Em primeiro lugar, pela coragem em apresentar um sistema filosófico próprio, num país em que a pesquisa em nível de pós-graduação está predominantemente voltada para o comentário exegético de autores estrangeiros e em que qualquer iniciativa de elaboração pessoal é vista como um atrevimento imperdoável. Em segundo lugar, por ter tido liderança suficiente para criar o Grupo de Trabalho em Dialética da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), através de cujas atividades foi possível divulgar as suas idéias entre outros pesquisadores interessados, gerando um debate frutífero entre eles. Em terceiro lugar, pela formação de discípulos talentosos e motivados, como Eduardo Luft,  que nele se inspiraram para dar prosseguimento ao projeto de reforma da dialética hegeliana.

IHU On-Line - Levando em consideração seu contato pessoal com o professor, como o senhor descreveria o educador Cirne-Lima? De que maneira ele ajudou a difundir a Filosofia entre os alunos?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- A primeira vez que tive contato com Cirne-Lima foi quando fazia meu curso de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e assisti a uma conferência dele, que, na época, já era professor renomado, sobre a contradição dialética e a lógica modal. Fiquei fascinado com a clareza da exposição e com a paixão que ele revelava ao apresentar suas idéias. Pessoas assim conseguem despertar e estimular nos outros o interesse pela Filosofia. Penso que as qualidades mencionadas fazem dele um professor excepcional, daqueles que possuem o raro dom de fazer escola. Aqui no Brasil são poucos os que conseguem essa façanha. No momento, só consigo me lembrar do nome de Oswaldo Porchat,  que também foi um criador de escola e formador de discípulos. O merecido título de professor emérito que ele recebeu da Unisinos é o reconhecimento mais eloqüente dado a uma pessoa que dedicou a vida à formação filosófica autêntica de seus discípulos.

IHU On-Line - Que aspectos você destacaria na convivência pessoal e intelectual com Cirne-Lima?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Nos seus relacionamentos, Cirne-Lima se revela uma pessoa extremamente gentil e generosa. Lidar com ele é um prazer, pois essas qualidades vêm acompanhadas de uma agilidade intelectual e uma erudição filosófica capazes de fazer inveja a qualquer um. As conversas que tive com ele sempre foram animadas, diversificadas, surpreendentes e ricas em ensinamentos. Cirne-Lima é capaz de tornar o assunto menos interessante numa verdadeira aventura intelectual.

IHU On-Line - Cirne-Lima costuma dizer que os filósofos estão mais habituados a fazer História da Filosofia e da Ciência do que propriamente Filosofia. Ao contrário, ele se destaca justamente por essa posição diferenciada e de ter presente as discussões filosóficas como tema central em sua vida. Como o senhor percebe, assim, o filósofo Cirne-Lima e sua preocupação em explicar os dilemas da contemporaneidade?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Penso que ele tem razão ao dizer que os filósofos estão mais habituados a fazer História da Filosofia e da Ciência, mas acrescentaria que isso acontece principalmente no Brasil. Como já disse antes, a nossa pós-graduação em Filosofia está mais interessada no comentário exegético do que na criatividade pessoal. Até mesmo nossos cursos de graduação em Filosofia padecem desse mal, estimulando explicitamente a leitura dos clássicos, entendida como prática rigorosa da Filosofia, e desestimulando implicitamente as iniciativas de elaboração pessoal, entendidas como formas de “achismo”. Ainda estamos presos de algum modo à velha tendência portuguesa de manter a fidelidade ao comentário exegético de Aristóteles em plena era moderna, quando o cartesianismo se espalhava pelo resto da Europa. Nessa perspectiva, trabalhos como o de Cirne-Lima constituem honrosas exceções numa constelação de pesquisas predominantemente escolásticas. E seu trabalho é não apenas original, mas também ligado à problemática contemporânea, uma vez que ele foi capaz de mostrar diversas analogias e semelhanças entre o hegelianismo de raízes neoplatônicas e a atual abordagem sistêmica de caráter transdisciplinar.

IHU On-Line - Depois de Hegel pode ser considerado a coroação da produção intelectual de Cirne-Lima? Nesta obra encontramos a melhor formulação do seu modo de ver e perceber a Filosofia?
Paulo Roberto Margutti Pinto
- Certamente. Depois de Hegel constitui a formulação mais completa e mais pessoal de Cirne-Lima. Ali vemos como ele foi capaz de remontar a abordagem sistêmica atual, inspirada nos estudos de von Bertalanffy,  a suas raízes neoplatônicas, as quais, na opinião dele, estão presentes na dialética hegeliana criticamente reconstruída. Com isso, ele pretende estabelecer uma dialética que não é determinista, que não deduz os fatos, mas explica a partir dos fatos, admitindo a presença da contingência no sistema. Na sua paixão de pensador incansável, Cirne-Lima explica até mesmo os argumentos pró e contra ele como manifestações de uma dialética através da qual as inverdades serão desmascaradas para que possamos continuar avançando assintoticamente em direção à verdade plena.

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