Edição 260 | 02 Junho 2008

“Não estamos numa guerra de sexos com a nossa luta feminista”

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Bruna Quadros

Para a psicóloga Renata Domingues, há uma flexibilização e multiplicação das formas de se compor enquanto mulher no cenário atual, embora seja possível problematizar os efeitos destas novas configurações e seus enraizamentos

“O sistema capitalista, ao contrário do feudal ou monárquico, apresenta uma abertura para o acesso, a circulação e a apropriação de informações numa velocidade global. Neste sentido, é possível agregar uma diversidade de elementos culturais, gastronômicos e estéticos (antes impensáveis) nas formas como nos construímos enquanto mulher.” A afirmação é da Profa. MS Renata Pimenta Domingues, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, acerca da temática do filme Pão e tulipas, o qual será exibido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 3 de junho, no evento Cinema e Saúde Coletiva: Mulheres e seus múltiplos desafios. Ao analisar a postura da figura da mulher, frente às transformações culturais e morais da sociedade, ela ressaltou que a relação do feminino com os dispositivos sociais fazem funcionar as relações de poder, nas quais se inserem as relações de gênero. Para ela, a questão recorrente não é mais a abertura de espaço para a participação feminina, mas, sim, perceber em que condições se dão as inserções em tais espaços. 

Renata Pimenta Domingues é graduada em Psicologia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, e mestre em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, atua na área de Psicologia Clínica e Institucional. Vinculada a uma cooperativa de profissionais de saúde em Porto Alegre, realiza atendimentos individuais e grupais, além de elaborar projetos de trabalho em comunidades e instituições, tanto educacionais como de vulnerabilidade social. É também coordenadora pedagógica das oficinas de arte-educação da Secretaria Municipal de Cultura, de São Leopoldo.

IHU On-Line - Como você percebe a luta pelo empoderamento e emancipação feminina nos dias de hoje? Quais são os principais resultados deste esforço?
Renata Domingues
- Trata-se, antes de tudo, de um processo em construção e sem perspectiva de estar pronto ou acabado. Entendo a relação do feminino com os dispositivos sociais que fazem funcionar relações de poder, nas quais se inserem as relações de gênero. Neste sentido, temos um devir-mulher funcionando nas diversas malhas da sociedade: econômica, política, religiosa, estética, cultural. Os devires, para Deleuze  e Guattari,  são potências de diferenciação que se produzem no encontro das diferenças, gerando multiplicidades, forças de afirmação da vida que compõem as construções das subjetividades femininas atuais. Temos uma flexibilização e multiplicação das formas de se compor enquanto mulher no cenário atual, embora possamos problematizar os efeitos destas novas configurações e seus enraizamentos. Neste sentido, podemos questionar as formas de opressão que se repetem e também as apropriações que o capitalismo faz das invenções e suas potências de transformação da realidade. Potência é diferente de poder, e talvez pudéssemos analisar com cautela o termo empoderamento.

IHU On-Line - Podemos dizer que a autonomia feminina seja um reflexo da modernização da sociedade, que também passou a conviver com outras culturas e conceitos? Que outros fatores influenciam neste processo de reconfiguração do papel da mulher?
Renata Domingues
- O sistema capitalista, ao contrário do feudal ou monárquico, apresenta uma abertura para o acesso, a circulação e a apropriação de informações numa velocidade global. Neste sentido, é possível agregar uma diversidade de elementos culturais, gastronômicos e estéticos (antes impensáveis) nas formas como nos construímos enquanto mulher. Conhecer a realidade das mulheres muçulmanas, indianas, norte-americanas, tanto nas diferenças quanto nos elementos comuns, no que se refere ao comportamento de gênero, aos objetivos de vida, aos sonhos, às metas, à relação com os filhos, à casa e ao vestuário, nos permite problematizar o lugar da mulher na cultura em que vivemos. Delineia-se a possibilidade de participação em movimentos sociais internacionais, via internet, de alugar uma casa sozinha, de a maternidade acontecer em produção independente, de haver o controle da concepção, de ocupar os mesmos cargos que os homens, enfim, uma série de elementos que abrem possibilidades que nos distinguem das gerações anteriores. Entretanto, como define Michel Foucault, temos um movimento de liberação que aconteceu e nos permitiu diversas conquistas. Já a liberdade é um processo constante de lutas pela igualdade nestes espaços todos que foram conquistados. Não se trata mais de abrir espaço, mas de como, em que condições e com que efeitos, sobre nós mesmas e nossas relações, estamos inseridas nestes espaços.

IHU On-Line - Diante de um contexto social, em que as mulheres têm cada vez mais visibilidade, seja pelas relações sociais ou de trabalho, como o homem se sente? O seu papel também se modifica? Quais os impactos para o homem nesse sentido? Há uma crise da identidade masculina, baseada no patriarcalismo?
Renata Domingues
- É possível que as próprias mulheres também não saibam como se sentem nesta reconfiguração. Muitas vezes, há o conflito entre o espaço doméstico e o espaço público, a dupla jornada de trabalho e a mesma inserção num esquema de produtividade, que implica no empobrecimento da vida pessoal e familiar (espaço em que as mulheres eram tidas como referência de sustentação afetiva e de coesão dos laços do núcleo familiar). Ao mesmo tempo, talvez os homens se sintam mais “autorizados” a serem pais de uma forma mais flexível. Isso porque faz cada vez menos sentido, nas configurações da subjetividade, o modelo patriarcal, do homem provedor, herói, rígido, responsável pelos limites, cujo contato afetivo com os filhos era restrito. Parece haver algumas tentativas de reinventar este papel do homem contemporâneo na relação com as mulheres, seja no sentido de compartilhar o espaço doméstico, de forma mais igualitária (divisão das tarefas), seja na proliferação de guardas compartilhadas pelos casais. As famílias caracterizadas por um segundo casamento envolvem uma complexidade de novas relações entre homens e mulheres, filhos e enteados, que multiplicam as possibilidades de identificação das crianças com o feminino e o masculino, não mais composto apenas pela figura do pai ou da mãe, uma vez que agora temos a figura cada vez mais recorrente dos novos companheiros dos pais.

IHU On-Line - O que representa a emancipação feminina no âmbito familiar? Os filhos também passam a ter mais autonomia, tendo em vista que as mães passam mais tempo fazendo tarefas externas às do lar?
Renata Domingues
- Por um lado, percebo uma preocupação das mães em qualificar o tempo que passam com seus filhos e, por outro, há uma distribuição da responsabilidade com os cuidados infantis. Há, hoje, mais pais com crianças no colo na rua, participando de reuniões escolares, e, às vezes, disputando na justiça mais tempo com os filhos. Há que se considerar, por diversas perspectivas, a questão da autonomia das crianças que nascem numa era de tecnologia, cercadas por diversos estímulos midiáticos, de jogos interativos, computadores e eletroeletrônicos, das mais diversas ordens. Eles sabem utilizar com mais facilidade que os avós e os ensinam a operar muitas vezes. As escolas vêm buscando também trabalhar com pedagogias que incluem esta nova criança contemporânea. Do outro lado da moeda, estão crianças estressadas com muitos compromissos e contextos em que os pais pouco participam e terceirizam seu papel com a televisão, os jogos, a escola e as atividades extra-escolares.

IHU On-Line - O que representa para a sociedade a participação feminina em lideranças de movimentos sociais, trabalhistas? Em comparação com movimentos coordenados por homens, quais as principais diferenças?
Renata Domingues
– Representa, antes de tudo, um tensionamento de estruturas rígidas e arraigadas no patriarcado, a partir das quais se construíram historicamente diversas instituições sociais. Temos a valorização da importância da mulher nestes espaços, aparecendo em diversas esferas da vida pública. Mas este lugar não é tranqüilo. Estes espaços são, por natureza, feitos de muitas disputas e nestas, por vezes, cada lado lança mão das armas de que dispõe. E a ordem do patriarcado gera um quantum de poder efetivo ao qual se recorre em momentos de intensificação destas disputas. Mesmo os movimentos sociais mais libertários precisam incluir com seriedade, ainda na sua pauta de discussões, as questões de gênero, bem como a diversidade cultural. Tais temáticas vêm sendo tratadas de modo secundário ou como foco específico de certas minorias. Seria perigoso traçar um perfil dos movimentos coordenados por mulheres, correndo o risco de cairmos num essencialismo que mais nos enreda que amplia. Mais preciso seria dizer que temos múltiplas formas de se coordenar e liderar que aparecem com a entrada das mulheres nestes postos de trabalho. A questão do cuidado com as crianças passa a atravessar cada vez mais as organizações, seja pelas demandas destas enquanto trabalhadoras que têm filhos, seja pela intensificação da abordagem desta temática nos mais diversos campos do conhecimento. 

IHU On-Line - Qual é a sua visão sobre a frase “As almas, como os corpos, podem morrer de fome: dê-nos pão, mas dêem-nos também rosas”, lema de ordem de um grupo de operárias americanas em greve, que serviu de inspiração para Pão e tulipas? De que forma este lema se insere no atual contexto social feminino?
Renata Domingues
- Esta frase tão tocante incita-nos a um paradoxo da luta pela igualdade de gênero: por um lado, há um caráter de reivindicação e disputa que implica numa firmeza de objetivos e ações consistentes pela causa. Por outro, a condição feminina também carrega consigo uma poesia, delicadeza, sensibilidade e afetividade que se inserem em todos espaços marcados pela presença do feminino. Nós também somos mães de meninos, temos irmãos ou pais, avôs. Não estamos numa guerra de sexos com a nossa luta feminista. Há muito amor e vínculos afetivos envolvidos nestas relações, que, em certos aspectos, também oprimem. E o grande desafio é enfrentar o machismo enquanto forma de delimitar o espaço feminino e masculino, sem com isso travar uma batalha contra os homens. Porque localizar neles unicamente a questão seria jogar-nos num determinismo, vitimismo e ser míope ao papel que temos na construção ou enfrentamento desta desigualdade. É preciso, mais do que isso, rever ações, sentimentos, pensamentos, políticas públicas, conhecimentos, livros, sistemas educativos e organizacionais e cada um de nós, no que diz respeito a esta legitimação da desigualdade. Enfim, nos alimentarmos de outras formas de tecer a vida (pão), podendo lidar com estes movimentos sem maniqueísmos, a partir da figura das rosas: perfume, beleza e espinhos compõem a mesma flor. E quem sabe sermos tulipas, flores que nascem em situações adversas e enfrentam ambientes hostis, intempéries, sem perder o encanto, o colorido, a delicadeza.

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