Edição 259 | 26 Mai 2008

Medellín e a Igreja na América Latina

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Graziela Wolfart e Cleusa Andreatta

A teóloga italiana Silvia Scatena repercute a herança desta grande conferência episcopal, considerando a passagem do seu 40º aniversário

“Medellín não teria sido possível – no modo em que se realizou concretamente – sem esta ‘força tarefa’, constituída por bispos que, em muitos casos, são figuras relativamente isoladas no interior das respectivas hierarquias nacionais.” A afirmação é da teóloga italiana Silvia Scatena, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Em suas respostas, ela fala sobre a importância da Conferência de Medellín para a Igreja Latino-Americana e constata que a grandeza da referida conferência foi “a capacidade de confrontar-se com a realidade histórica, na qual também se individualiza, além disso, a única condição de uma autêntica comunhão com a igreja universal”. A Prof.ª Dr.ª Silvia Scatena é professora no Instituto per le Scienze Religiose (ISR), com sede em Bolonha (Itália). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que traços sociológicos e eclesiais tornaram possível a realização da Conferência Episcopal de Medellín em 1968?
Silvia Scatena
- A conferência de Medellín é, em muitos aspectos, o fruto do encontro entre as transformações da sociedade latino-americana no decurso dos anos 1960 e a renovação teológica realizada e veiculada pelo Concílio Vaticano II. A conferência de 1968 não pode ser compreendida sem considerarmos, contextualmente, estes dois “movimentos” complexos: a modernização (ou atualização) conciliar, por um lado, e, por outro, os processos políticos e socioeconômicos em ação, embora de modo diverso, diante das diferentes latitudes do continente latino-americano. Aqui me refiro, por exemplo, às migrações internas e ao fenômeno do crescimento irrompente da urbanização, na afirmação de uma “internacional militar”, na crise dos projetos desenvolvimentistas. Permanecendo no terreno eclesial, é preciso, por outro lado, considerar um elemento decisivo e inédito: a condução do organismo continental do episcopado da parte de um grupo de bispos habituados ao trabalho de “esquadra” da visão continental e da capacidade profética, que fazem da recepção das novidades conciliares no concreto da situação latino-americana sua prioridade pastoral, preocupando-se, já no decurso do próprio Vaticano II, com as modalidades e os percursos para uma atualização em escala continental (penso em Câmara  e Larrain , mas também em Leônidas Proaño  no Equador, Cândido Padin  no Brasil – o bispo beneditino recentemente falecido –, McGrath no Panamá, Valencia Cano na Colômbia, Dammert Belido no Peru...). Medellín não teria sido possível – no modo em que se realizou concretamente – sem esta “força tarefa”, constituída por bispos que, em muitos casos, são figuras relativamente isoladas no interior das respectivas hierarquias nacionais.
 
IHU On-Line - Segundo sua visão de historiadora, que importância teve a Conferência de Medellín para a consolidação de uma identidade da Igreja Latino-Americana?
Silvia Scatena
- A importância de Medellín na consolidação de uma identidade continental das igrejas da América Latina foi decisiva. No entanto, é preciso considerar a conferência de 1968 no interior de um processo mais amplo, que envolveu as igrejas da América Latina já nos anos do Concílio, quando, graças principalmente ao trabalho do Celam – o organismo permanente do episcopado latino-americano, criado em 1955 na conferência do Rio de Janeiro, sem igual nos outros continentes –, os bispos adquirem a consciência crescente de uma pertença comum continental. Nos anos do imediato período pós-conciliar, entre 1966 e 68, o Celam promoveu um regular “exercício colegial”, fundamental para o compartilhamento de novas estratégias pastorais e para o decolar de inovações, de linhas comuns de ação. Isto representa o húmus de Medellín, que significará, neste sentido, a “confirmação” da investigação, amplamente compartilhada por muitos setores eclesiais latino-americanos, de uma nova imagem de igreja continental: uma imagem que, segundo as palavras do documento sobre a juventude, será essencialmente aquela de uma igreja de fisionomia pobre, missionária e pascal.
 
IHU On-Line - Quais são os principais marcos da relação Igreja e sociedade no contexto da realização da Conferência de Medellín? E, na sua avaliação, quais as principais transformações dessa relação desde então até os dias de hoje?
Silvia Scatena
- Em síntese, o que me parece importante sublinhar é que, em Medellín, a Igreja Latino-Americana recupera o aspecto de uma instância histórica chamada a reinterpretar o evangelho aos homens e aos povos do continente na “situação anormal” e “inquietante” da América Latina no final dos anos 1960 – assim se exprimia o arcebispo de Lima, Landàzuri Ricketts, no discurso inaugural da assembléia. E recupera este aspecto profético no momento em que decide “olhar na face” o novo mundo latino-americano antes do que a si mesma, na “comunhão com uma história cuja profundidade específica reside numa convergência de circunstâncias proféticas”: são sempre as palavras de Landàzuri Ricketts, desta vez no discurso conclusivo, que, por sua vez, cita Paulo VI. Aqui está, a meu ver, a grandeza de Medellín: a capacidade de confrontar-se com a realidade histórica, na qual também se individualiza, além disso, a única condição de uma autêntica comunhão com a igreja universal. Por isso, o momento de máxima reflexão interna da Igreja Latino-Americana foi também aquele de sua maior contribuição e de sua maior capacidade falante à Igreja universal. Por isso, agora, as precoces tentativas de redimensionamento, ou de domesticação de alguns dos conteúdos mais inovadores da conferência de 1968 – penso, acima de tudo, no nó vertebral da opção pelos pobres –, jamais conseguiram corroer o amplo consenso que se coagulou em torno de Medellín e de suas opções caracterizadoras, substancialmente confirmadas pela conferência de Puebla. Também a subseqüente discussão do caráter vinculante do documento final da conferência de 68 não conseguiu destemperar a consciência difusa da existência de um “antes” e um “depois” de Medellín ou a credibilidade das suas conclusões, cujo testemunho mais convincente era dado pela própria recepção no seio das igrejas às quais as conclusões eram destinadas. Medellín soube, de fato, sugerir empenhos e abrir caminhos em nível pessoal e comunitário, e inspirar ou consolidar práticas. Com respeito àquela estação, muitos caminhos se interromperam ou restringiram sucessivamente e o contexto é profundamente modificado pelas grandes mudanças intervindas no plano político, social e eclesial e no mais vasto cenário internacional. Mas, na transição que parece atravessar a América Latina neste primeiro período do século XXI, algumas intuições centrais de Medellín parecem ter ainda, a quarenta anos de distância, a capacidade de interpelar os cristãos do continente. Os disciplinamentos do centralismo romano, as vicissitudes da Teologia da Libertação, o fim da Guerra Fria, o diversificar-se dos desafios pastorais em igrejas de histórias e situações desiguais, de fato não redimensionaram uma inquietude endêmica exasperada da falência das receitas neoliberais do novo cenário globalizado, assim como não desautorizaram uma instância fundamental de Medellín: a afirmação do nexo irrenunciável entre a escolha preferencial pelos pobres e a essencialidade da pobreza no mistério do Cristo. 

Para saber mais...

De 13 de junho a 17 de outubro, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o curso de extensão De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana. O objetivo é proporcionar um estudo e análise sobre as Conferências Episcopais de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, além de suas contribuições para a atuação da Igreja na América Latina. O evento marca os 40 anos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín. Confira a programação completa na nossa página eletrônica: ww.unisinos.br/ihu.

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