Edição 259 | 26 Mai 2008

Homem e máquina: híbridos numa sociedade pós-humana

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Patricia Fachin

Para Roberto Marchesini, o problema não está nas tecnologias, “mas na incapacidade do nosso tempo de ter um padrão filosófico adequado às potencialidades aplicativas que estão emergindo”

“Hibridar-se não significa renunciar à própria identidade, mas enriquecer-se integrando a alteridade.” A opinião é de Roberto Marchesini, estudioso de ciências biológicas e de epistemologia, que apresentará a conferência “O pós-humano. Possibilidades e limites”, no dia 28-05-2008, quarta-feira, às 10h 45min. Defensor da utilização de novas tecnologias como forma de integração entre o humano e não-humano, o pesquisador italiano explica que “não somos entidades autárquicas; andamos sempre ampliando a nossa perspectiva existencial, aprendendo primeiro dos animais e depois das máquinas”. Ao comentar suas percepções sobre um futuro pós-humano, Marchesini, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, é claro: “Não penso num pós-humano como condição do homem, mas num pós-humanismo como novo patamar capaz de valorizar os débitos que contraímos com o não humano para construir a nossa condição”.
Marchesini é professor da Scuola di Interazione Uomo Animale – S.I.U. A., Itália. De suas obras, destacamos Bioetica e scienze veterinarie (ESI, 2000), Lineamenti di zooantropologia (Edagricole-Calderini, 2000), Post-human (Bollati Boringhieri, 2002), Imparare a conoscere i nostri amici animali. Guida per insegnanti (Giunti, 2003), Nuove prospettive nelle attività e terapie assistite dagli animali (Edizioni Scivac, 2004), Canone di Zooantropologia Applicata (Apeiron, 2004) e Fondamenti di Zooantropologia. Zooantropologia applicata (Alberto Perdisa Editore, 2005).

IHU On-Line – De que modo as relações entre o homem e a ciência e o homem e a máquina estreitam os vínculos da espécie humana com o mundo?
Roberto Marchesini
– O humanismo habituou-nos a pensar o homem como medida e síntese do mundo, ou seja, institucionalizou uma visão antropocêntrica que não admite alteridade e que pressupõe uma prevalência da racionalidade humana sobre tudo. O humanismo tem sido seguramente uma grande conquista no caminho do pensamento do homem, porque sublinhou a importância da história e do fazer-se humano. No entanto, ao mesmo tempo, deu uma conotação problemática ao saber e, conseqüentemente, à ciência, interpretando-os como domínio sobre o mundo. Na realidade, o saber não nos torna donos do mundo, ou seja, o saber é um ato solidário com o que é criado e somente se for reconhecido como tal faz realmente crescer o homem.

IHU On-Line – Que condutas fazem crer que o homem não aceita a idéia de plena consistência natural e de um parentesco comum com os outros seres vivos? Por que o ser humano apresenta esta ânsia de afirmar-se como ente especial e tenta reafirmar sua transcendência da natureza?
Roberto Marchesini
– A idéia humanista, se levada ao extremo, leva a considerar o homem como o ponto final dos processos naturais, uma espécie de ponto ômega de disjunção do criado. Considero esta idéia blasfema também sob um perfil religioso, porque conduz inevitavelmente à pretensão do homem de pensar-se como um deus. Sinto que hoje, mais do que nunca antes, o sentir de São Francisco, que conjuga o homem com as criaturas para elevar a Deus um canto coral, é muito mais necessário hoje, porque a idéia que separa o homem da natureza leva-nos a crer que o homem pode se salvar mesmo destruindo o Planeta. Há muitos modos de olhar para a ciência e não somente aquele antropocêntrico de submeter o mundo. Penso que a idéia de Jonas , que une o saber e a operacionalidade tecnológica à responsabilidade, seja muito mais produtiva. 
 
IHU On-Line – Por que o homem tem a necessidade de dar vida a funções híbridas? Assim, o pós-humano deve ser considerado uma evolução do estágio atual da humanidade e até mesmo uma própria evolução da teoria da Darwin?
Roberto Marchesini
– A hibridação tem pouco a ver com os processos evolucionistas, porque diz respeito à ontogênese, ou seja, aos caracteres adquiridos que, como sabemos, não são transmissíveis. Se é verdade que se discute sobre a possibilidade de intervir sobre células germinais, penso que ainda haja muito caminho a andar. No fundo, nossas capacidades mecânicas são extremamente simples perante a complexidade do vivente: hoje ainda não estamos em condições de construir um sistema informático em condições de pôr em campo a capacidade computacional de uma célula. A hibridação cultural é um evento que descobrimos hoje porque se tornou evidente, mas que, no entanto, sempre existiu. Não somos entidades autárquicas; andamos sempre ampliando a nossa perspectiva existencial, aprendendo primeiro dos animais e depois das máquinas. Não penso, por isso, num pós-humano como condição do homem, mas num pós-humanismo como novo patamar capaz de valorizar os débitos que contraímos com o não-humano para construir a nossa condição.

IHU On-Line – O senhor afirma que o pós-humano permite ao homem a interação com o não-humano. Estará o homem preparado para este tipo de relação? O pós-humano pode ser considerado uma alternativa ao humano?
Roberto Marchesini
– O pós-humanismo parte da consciência que o homem não é suficiente para explicar as qualidades humanas (vale dizer que estas últimas não são simples emanações do homem). A condição pós-humana é, no entanto, a recusa de uma deriva solipsista que nos conduziria a ver-nos sós no universo. Se realmente consideramos o universo como um grande sodalício de entidades que intercambiam perspectivas, chegamos a ver como a hibridação enriquece o humano e não o aniquila. A autarquia do homem cria uma deriva relativista e auto-referencial, e os nefastos êxitos da contemporaneidade eram negativamente implícitos nas pretensões dos filósofos humanistas do século XV, de pensarem o homem como mistura do mundo e o considerarem coextensivo ao mundo. Na verdade, isto leva a marginalizar ou pôr de lado não só o mundo, mas também o sentido religioso. Ou seja, o respeito pela criatura. Respeitar o que é criado, manter o sentido de estupor e religiosidade, não se contrapõe, de fato, à vontade de conhecer e de ampliar as próprias dimensões existenciais.

IHU On-Line – Você diz que a ciência contribui para afastar o homem do antropocentrismo. Entretanto, ao mesmo tempo, esta mesma ciência não representa o mito do progresso, elevando as disparidades sociais e ampliando o abismo entre os seres humanos?
Roberto Marchesini
– A ciência humanista usa as próprias aquisições e as próprias aplicações para realizar o mito do homem dono do mundo. Mas a ciência não é somente isto. O conhecimento é também humildade, sabedoria, respeito, responsabilidade, ligação com os outros. Não se pode imputar uma culpa à ciência, e sim ao paradigma filosófico no qual ela opera. Amo a ciência porque amo o que é criado, encho-me de estupor quando descubro alguma coisa ou venho ao conhecimento de algo, porque, ainda uma vez, sinto-me pequeno diante do mundo. Descubro que minha projetividade ingênua não é nada em confronto com a complexidade do mundo criado... Penso, pois, como Agostinho , que não se pode esvaziar o mar com um copinho. E a ciência não é o copo, mas o exercício que nos leva a ver quão profundo é o mar.

IHU On-Line – Como pode o homem atuar de maneira correta com as nanotecnologias, sem prejudicar ou causar dano ao próximo?
Roberto Marchesini
– Dar uma resposta não é simples. Se o homem continua permanecendo na moldura do pensamento tradicional, qualquer atividade, também a menos tecnológica, correrá o risco de levá-lo à ruína. O problema não está nas tecnologias, mas na incapacidade do nosso tempo de ter um padrão filosófico adequado às potencialidades aplicativas que estão emergindo.

IHU On-Line – Em seus estudos você percebe a hibridação de homem e máquina com uma coisa positiva. No entanto, quais são as possibilidades de riscos para a humanidade?
Roberto Marchesini
– Penso que devemos reconhecer que a nossa identidade de indivíduos nasce da contaminação com os outros. Falam em mim os meus progenitores, os amigos, os mestres que tive, os grandes autores dos quais me nutri. Também a identidade cultural nasce do comércio entre os povos e não é fruto do isolamento; e por isso o Mediterrâneo deu vida a todas as grandes civilizações. O Mediterrâneo foi uma grande matriz de hibridação entre os povos. Se isto é verdade para a identidade individual e a cultural, também o é para a identidade humana. Hibridar-se não significa renunciar à própria identidade, mas enriquecer-se integrando a alteridade.

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