Edição 348 | 25 Outubro 2010

Missão jesuítica, uma experiência de contato

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Patricia Fachin | Tradução Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Que encontros e desencontros pode-se perceber no universo simbólico entre a religião guarani indígena e a religião cristã?

Bartomeu Melià – A religião católica ainda está muito dominada pela hierarquia e pelo poder de uns sobre os outros. A diferença própria dos carismas se faz notar, sobretudo, no exercício do poder doutrinal e administrativo, o que leva a grandes desigualdades entre os que têm a mesma fé e a mesma esperança. As classes sociais são, na Igreja, tão marcadas quanto na sociedade civil. A religião guarani é mais igualitária. Todos e cada um dos guarani, homens e mulheres, podem receber a inspiração divina, e de fato a grande maioria deles a recebe. Em suas cerimônias rituais, todos participam por igual, mesmo que sejam dirigidos por xamãs que, ao longo da vida, se tornam credores de reconhecimento e de respeito pela sua vida ao serviço dos demais e por suas qualidades espirituais.
O padre Montoya dizia que os guarani se distinguiam por serem “finos ateístas”, o que não quer dizer ateus, mas sim que prescindiam de imagens e de objetos excessivos, o que os torna mais espirituais e dependentes unicamente da palavra inspirada que supõe uma notável vida ascética e desprendida das coisas materiais. Os pa’i e as ha’i – chamados também de ñande ru e ñande sy, nossos pais e nossas mães –, não só cantam e dirigem a dança, mas também costumam ser médicos, educadores e assessores da comunidade. Nesse sentido, cumprem funções sociais e espirituais mais claras do que os sacerdotes católicos em nossa sociedade.

IHU On-Line – O senhor conviveu com as comunidades indígenas desde 1969. O que destacaria dessa convivência?

Bartomeu Melià – Minha experiência começa em 1969, quando entrei em um lugar do Caaguasú, de cujo nome sempre me lembro. Mbariguí é até hoje um lugar onde as famílias guarani mbyá estão morando em plena selva. Já haviam tido seus primeiros contatos com a sociedade branca no início do século XX, quando estavam nas orlas do Monday, mas depois daquele contato inicial, do qual lhes havia ficado o uso da roupa e de alguns utensílios de ferro, haviam voltado para a vida do monte, para a sua liberdade antiga, ao seu tekó ymaguaré, dominado pelas longas horas de canto e de dança no opý, a casa de reza. Do seu antigo primeiro contato, conservavam o batismo cristão e a mudança de nome, ou, melhor dito, a duplicação de seu nome tradicional com outro emprestado do santoral cristão.
A cada dia percorríamos o monte em busca de mel e de palmito e passávamos revista às armadilhas, onde comumente algum animal havia caído: um pequeno porco do mato ou um veado. De passagem, se podia encontrar algum lagarto ou se tirava um tatu da sua cova. O índio Mbyá com quem eu caminhava ia tocando a flauta. Nos dias de inverno, dormíamos com os pés muito perto do fogo, tomávamos mate muito cedo à espera de que a neblina vivificante da madrugada se dissipasse, dissolvida pelo sol que entrava radiante pela porta da choça. Era um momento de encanto único. É a vida que surge de novo.
Um dia, ao sair do tekoa, como chamam o lugar e o ambiente em que vivem, um trator da colônia dos Mennonitas de Sommerfeld estava abrindo uma picada. Era um novo caminho, que anunciava o desmatamento da selva e sua conversão em campos de soja. A terra e os territórios já não seriam mais os mesmos.

IHU On-Line – Quais são as novidades de suas pesquisas sobre a língua guarani do século XVIII?

Bartomeu Melià – De certo modo, está de moda agora, entre os linguistas, o registro de corpus que dão testemunho real do uso da língua em um momento dado, pelo menos tal como aparece nos documentos. No Paraguai, estamos às vésperas de celebrar o Bicentenário da Independência de 1811 e queríamos saber qual era o guarani que se usava naqueles anos. Reuni uma série de uns 100 manuscritos, quase todos inéditos ainda. Transliterei-os à ortografia atualizada e os estou traduzindo. Em 2011, devem ser publicados em edição fac-símile, com sua tradução e notas correspondentes. É nisso que estamos.

Leia mais...

>> Melià concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Acesse na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br)

* “A história de um guarani é a história de suas palavras”. Publicada na edição 331, de 31-5-2010;
* As missões jesuítico-guarani. Publicada nas Notícias do Dia 24-10-2010. 

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