Edição 346 | 04 Outubro 2010

“Gaia sagrada”: as relações entre ecologia, feminismo e cristianismo

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Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

 

Ecofeminismo

Definição

O termo “ecofeminismo” foi cunhado pela autora francesa Françoise d’Eaubonne e apresentado em seu livro Le féminisme ou la mort, publicado em 1974. Ela o usou para designar um tipo específico de movimento ecológico em que a consciência da opressão das mulheres é a principal força motriz.

Características

a) O discurso ecofeminista reúne visões feministas e política ecológica, com base na percepção de que há ligações entre a dominação de pessoas e a dominação da natureza não humana. Ele toma a crítica feminista das relações humanas e a coloca lado a lado com uma análise das relações entre seres humanos e não humanos.
b) As ecofeministas usam uma perspectiva ecológica para apontar em direção à ausência de hierarquia na Natureza e contrapor isto à presunção cultural, comumente aceita, de que uma espécie, a humana, tem o direito de dominar todas as outras.
c) O fato é que nós, seres humanos, não temos condições de viver à parte do resto da Natureza. Cada um de nós está internamente relacionado com todos os aspectos de nosso meio ambiente, e essa relação faz parte do que somos. Inspirando o ar, nós recebemos. Expirando-o, devolvemos. As ciências naturais nos deram informações sobre o meio ambiente global mais amplo: sobre a camada de ozônio, a chuva ácida, o desmatamento e a desertificação e as emissões de dióxido de carbono na atmosfera. Essas informações mostram não só que a Natureza poderia viver inteiramente feliz sem nós, e de fato seria muito mais feliz sem nossa interferência nela. Ao mesmo tempo, estamos ficando cada vez mais conscientes de que o inverso não é verdade: nós não podemos viver fora dos sistemas naturais que sustentam a vida.
d) As descrições culturais masculinas de nós mesmos como seres que estão “fora de” ou “no controle”, não só do meio ambiente, mas também de outros seres vivos nele, foram, entrementes, contestadas, porém não eliminadas. Ao longo de toda a histórica humana ocidental, as mulheres foram rotineiramente classificadas como escravas e tratadas como tais. Isto veio à tona com o movimento público pela emancipação das mulheres. Ele começou nos Estados Unidos com o movimento pela emancipação dos escravos, com a luta por seus direitos a seu próprio corpo, a seus filhos e à propriedade que viessem a adquirir. Então as mulheres se deram conta de que elas também não tinham esses direitos. Esta lição foi compreendida claramente em 1840, na Convenção Mundial contra a Escravidão realizada em Londres. Elizabeth Cady Stanton e Lucretia Mott, junto com outras delegadas americanas, foram relegadas às galerias na condição de “observadoras”. Indignadas, elas realizaram uma conferência em 1848, em Seneca Falls, para tratar “da condição e dos direitos sociais, civis e religiosos das mulheres”. Os povos indígenas também não têm tido esses direitos. Até 1967, os aborígenes australianos eram juridicamente classificados como “flora e fauna”, isto é, como incapazes de passar da natureza para a cultura.
e) Essa desvalorização das mulheres e dos povos indígenas aconteceu numa cultura secular dominada por uma imagem dos seres humanos (ou, mais precisamente, dos homens) como “mentes”, e numa cultura religiosa dominada por homens que entendiam que seu “espírito” e sua mente controlavam não só seus próprios corpos, mas também, por extensão, os corpos das mulheres, das crianças, dos povos indígenas e, naturalmente, de toda a Natureza material. Isto remonta ao mito da criação de Platão, o Timeu. Sua desvalorização da corporalidade se arraigou no ensino cristão e atingiu seu ápice no conceito do pecado supostamente corporificado em Eva. A mentalidade platônica e a cristã se juntam numa passagem do Apocalipse (lida na festa do dia de Todos os Santos) a respeito dos 144 mil que serão salvos (Apocalipse 7, 1ss.; 14, 1-5). A passagem de Apocalipse 14, 4 sintetiza o ideal a que todos e todas nós deveríamos supostamente aspirar! Entretanto, sabemos que o espiritual só está vivo em nós onde o espírito e a matéria, a mente e o corpo fazem todos parte do mesmo organismo vivo. Nenhum aspecto tem precedência sobre outro, pois eles só podem funcionar juntos como um todo vivo.
f) Há um outro fator nessa história, “a regra dos fisicamente mais fortes”, que liga a sujeição das mulheres com a sujeição da Terra até o presente. Eu o chamo de “militarismo econômico”. Bismarck  estava descrevendo o militarismo quando disse que a única realidade política prática é o poder e a única fonte do poder é a força física, ou seja, a capacidade de matar e ferir. Essa “capacidade” era e é um importante e ainda crescente produto de exportação dos países do Norte econômico para os do Sul econômico, a maioria dos quais são ex-colônias. Pois ela era a força física que estava por trás da colonização europeia de outros continentes e sua concomitante cristianização. Atualmente assume a forma de um complexo militar-industrial que continua a crescer, a consumir recursos em todos os sentidos e a deixar a destruição ambiental em sua esteira. Mais uma vez, as mulheres, as crianças, os povos indígenas, os pobres e suas terras são as principais vítimas. O Conselho Mundial de Igrejas, em sua preparação para a Cúpula das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, estabeleceu ligações explícitas entre essas questões em seu programa Justiça, Paz e Integridade da Criação. As ligações delas com a Terra foram ignoradas no programa católico romano Justiça e Paz.
g) Em termos religiosos, o modelo do domínio dos mais fortes é apoiado pelo conceito de hierarquia ou “domínio sagrado”, que é endêmico no cristianismo e nas instituições culturais do Ocidente. De forma literal ou figurada, ele assume a forma de uma pirâmide ou da “Grande Cadeia do Ser”. Em ambas, o Espírito, Deus ou Inteligência não material (mas masculino!) constitui o pináculo e a fonte do poder. O poder flui dele para os homens, e deles para as mulheres, as crianças e os povos indígenas. “Debaixo” de todos esses seres e sujeita a todos os “de cima” está a Terra.
h) As sociedades e instituições hierárquicas valorizam os seres de acordo com a posição que ocupam na pirâmide ou cadeia: Deus/Espírito/Inteligência no topo, e as mulheres, as crianças e a Terra na parte de baixo. Elas estão sujeitas, em termos religiosos e institucionais, ao poder vindo “de cima”, exercido em nome de um Deus todo-poderoso.

Implicações

Todas as características descritas acima ainda podem ser discernidas em nossa atual cultura secular e religiosa. Elas causam impacto sobre nossa autocompreensão e sobre o que é tido como opiniões e comportamentos aceitáveis. Uma conhecida afirmação de Dom Helder Câmara  serve como forma de ilustrar esse efeito. Disse ele: “Se dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Se pergunto por que os pobres não têm comida, chamam-me de comunista/marxista”.
Isso pode servir de base metodológica para as críticas ecofeministas:
• se trabalho pelos direitos das mulheres, sou uma militante em defesa dos direitos humanos. Se pergunto por que as mulheres, as crianças e os escravos não têm esses direitos, sou uma filósofa feminista;
• se crio refúgios para mulheres vítimas de maus-tratos ou para vítimas da guerra, sou uma assistente social. Se pergunto por que os abrigos são necessários, sou uma filósofa ética feminista;
• se estudo a posição das mulheres ao longo da história do cristianismo, sou uma historiadora da Igreja. Se pergunto por que elas foram mantidas nessa posição, sou uma teóloga feminista;
• se estudo as inter-relações entre mulheres, povos indígenas e movimentos ecológicos, sou uma cientista social. Se pergunto por que essa inter-relação se baseou na desvalorização e na violência para com os corpos das mulheres e dos povos indígenas e contra o corpo da Terra, sou uma filósofa ecofeminista;
• se faço todas essas perguntas e pergunto que papel o cristianismo desempenhou nisso, sou uma teóloga ecofeminista.
O patriarcado, o domínio dos Pais [Padres], não foi acrescentado à formulação da doutrina cristã. Ele foi introduzido na formulação das próprias doutrinas.
Nós agora temos de lidar com os efeitos do patriarcado e da desvalorização religiosa dos “corpos”, não só sobre as mulheres, crianças e povos indígenas, mas também sobre o corpo da Terra. Esses efeitos são o que passamos a conhecer como “mudança climática”. Eles também exigem uma mudança no clima religioso.

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