Edição 340 | 23 Agosto 2010

A relação entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Como se entende a noção de alteridade (o próximo, o Outro) e de comunidade a partir do Bem-Viver?

Quinto Regazzoni –
O que o Bem-Viver (sumak kawai ou teko porã) sublinha é, acima de tudo, a dimensão solidária da comunidade humana. Nem o desenvolvimento, nem o crescimento econômico são solidários e não o podem sê-lo, porque entrariam em contradição com suas lógicas egoístas de acumulação.

No entanto, quando falamos da solidariedade do Bem-Viver, não significa achatamento ou uniformidade. Para esse assunto, quero citar outro grande pensador jesuíta de outras latitudes (que amou a América Latina): Michel de Certeau (Mai senza l'altro, 1993, p. 18), que fala de um dinamismo constantemente assegurado pela chegada do estranho, do outro, isto é, “uma solidariedade sempre edificada sobre o respeito pela diferença”.

Para que a nossa busca de uma Vida Boa seja torne crível, deve radicar-se no encontro com o outro. Esse voltar-se ao outro, no entanto, abre-nos caminho para o nosso próprio espaço. Por isso, Certeau (La debilidad del creer, 2006, p. 28), diante do outro, proclama: “Sem ti, já não posso viver”. O Outro é algo diferente de mim, mas é também alguém de quem preciso, “posto que o que eu sou de mais verdadeiro está entre nós”. Escolher essa experiência do Outro significa, ao mesmo tempo, escolher um caminho e um lugar (estável e firme). De um lado, o caminho é um partir que nunca termina. De outro, o lugar estável é uma prática comunitária, um fazer juntos, uma minga (mutirão). O caminho para a terra sem males só se faz realidade no intercâmbio com os outros, com a comunidade.

E no nomadismo guarani, em busca da terra sem males, o Outro emerge como uma figura poderosa. A relação de solidariedade para com o outro só raramente significava uma complementaridade de interesses (“dou-te para me dês”). A reciprocidade dos guarani se fundamenta em algo que não é nem de si mesmo, nem do outro, e que se encontra para além de ambos. É uma abertura ao que está sem determinação e sem limite, que bem podemos chamar de infinito.

Para os guarani, o corpo e o rosto do Outro torna presente o infinito, a meta sempre sonhada. O Outro se transforma em uma singularidade absoluta. Cada rosto, cada nome, cada pessoa, apesar de sua finitude e de seu limite, transforma-se no infinito da humanidade, e, por isso, cada pessoa merece atenção e ajuda. Entre os guarani, “o cuidado do outro leva em consideração as condições da existência da humanidade: coisas práticas, limitadas, que não requerem esforços consideráveis ou heroicos, mas que estão ao alcance de todos. Assim, a primeira manifestação concreta da reciprocidade é a hospitalidade; a segunda, a proteção; e a terceira, o dom de alimentos” (MELIÁ, 2004, p. 84).

 

 

IHU On-Line – Qual é a teologia central da cosmovisão ancestral do Sumak Kawsay ou do Teko porã? Que aspectos religiosos e sagrados manifestam-se nesse paradigma? Que semelhanças e diferenças há entre eles e a mensagem cristã?

Quinto Regazzoni –
Acima explicamos as virtudes do Sumak Kawsay ou do Teko porã. Acho que, com o que foi dito, também se pode falar de teologia, porque toda essa concepção de vida está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo. Para a cultura guarani, Meliá (1991, p.78) chega a falar de uma teko-logia, que certamente tem muito a ver com toda a teologia que fala de um Deus da Vida e, especialmente, a teologia de Jesus de Nazaré. Quando o Mestre da Galileia falava de Deus, não ensinava dogmas religiosos, mas anunciava um estilo de vida que infundia uma nova esperança. Ninguém o considerava um mestre da Lei dedicado (um profissional do aparato doutrinal, diríamos hoje). Ele é visto como um profeta apaixonado por uma vida mais digna (teko marangatu) para todos, uma Vida Boa (teko porã).

Todos os povos ao longo da história sempre buscaram essa plenitude de vida, e a Boa Nova de Jesus também pode ter muitos pontos em comum com o teko porã. Jesus explicou claramente o significado de sua missão: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). Sua proposta de plenitude é para todos, mas especialmente para os protagonistas da cultura popular (e marginal) de seu tempo, ou seja, agricultores, pescadores, pastores, servos/as... publicanos e prostitutas...

São vários os pontos em comum com a proposta do Sumak Kawsay ou Teko Pora. Jesus fala de um estilo de vida que abrange toda a existência em suas múltiplas dimensões: social, econômica, cultural e religiosa; que parte do coração do ser humano e se expande em um projeto global e integrador. É uma utopia factível, que tem suas raízes no presente e sua projeção sem limites em horizontes futuros. É um projeto que se realiza em comunidade e com a contribuição pessoal de reciprocidade.

A diferença mais perceptível é que Jesus, ao falar do Reino de Deus que Ele veio trazer, dá a esse projeto uma identidade muito específica. É uma obra do Pai Deus, que Ele, com sua encarnação, morte e ressurreição, leva à plenitude, para que todos dela possam participar. Essa identidade específica não se contrapõe nem se enfrenta com os conceitos do Bem-Viver. É como a questão da alteridade, da qual falávamos acima, que é o fundamento da comunhão.

IHU On-Line – Muitos estudiosos consideram o paradigma do Bem-Viver como uma forma de descolonização. Nesse sentido, ao reinterpretá-lo a partir do cristianismo, não se corre o risco de batizá-lo, colonizando-o novamente? Por quê?

Quinto Regazzoni –
Hoje, falamos de colonização para indicar uma imposição, pela força e pela violência, de um poder sobre um território, povo ou nação. O processo de colonização pode ser de caráter econômico, político e inclusive cultural. Se não há uma violência e uma imposição, penso que todo processo de aproximação, comparação, diálogo pode ser considerado a partir da perspectiva da alteridade que constrói comunhão. Hoje, essa consciência é clara, e batiza-se só quem deseja livremente ser batizado. O verdadeiro perigo pode estar em uma surdez ou incapacidade de ver a partir da perspectiva do outro. Pode-se ser superficial, pouco crítico, não suficientemente disponível para compreender o outro.

No entanto, quando há uma disposição reta e honesta, os desacertos no diálogo também podem ser corrigidos. O mito do bom selvagem que não deve ser contaminado com uma aproximação indevida (colonizadora) também me parece prejudicial para a construção de um mundo novo. Só com boas intenções não se constrói o mundo, mas tampouco se constrói com desconfiança, medo e preconceito.

Todos temos que estar dispostos a escutar-nos e a aprender uns com os outros. Um exemplo que eu gosto de lembrar: quando os primeiros missionários dos guarani queriam traduzir o Pai Nosso para o seu idioma, descobriram que eles não tinham nem a palavra nem o conceito de Reino. Uma solução era impor a palavra em castelhano (que, aliás, não traduz bem o que a Bíblia e Jesus desejavam dizer). Outra solução era tentar traduzir o conceito, usando outras palavras mais adequadas. Isso implicava entrar em sua cultura e aprender a mentalidade guarani, para poder dizer com seus próprios conceitos o que se queria propor-lhes. Assim, nasceu uma tradição que me parece muito mais fiel do que a tradução castelhana: Vosso Reino foi traduzido como Nde reko marangatu (que significa “vosso modo de ser bondoso”). Com isso, fica claro também o paralelismo entre Reino de Deus e Vida Boa que tentamos explicar mais acima.

IHU On-Line – Pode explicar melhor qual é a relação entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas?

Quinto Regazzoni –
A principal perspectiva da pregação de Jesus não foi a de ser um mestre de vida moral. Ele não pregou preceitos ou leis que temos que cumprir. Jesus anunciou que a chegada do Reino de Deus era iminente (Mt 24, 34), “a proximidade bondosa” de Deus Pai já estava se manifestando. Por isso, ele se solidarizou com as pessoas humildes e viveu sua proximidade com as pessoas como um sinal da proximidade do Pai. Jesus surpreendeu a todos ao afirmar que o Reino de Deus já havia chegado. Ele queria que a proximidade se transformasse em um estilo de vida em comunidade, em que todos se sentissem protagonistas. Por isso, escolheu entre os seus discípulos 12 representantes do povo, um símbolo e o anúncio de uma nova maneira de viver como povo de irmãos.

Ele proclama o Reinado de justiça e misericórdia de Deus, isto é, sua maneira de ser, cheia de bondade, que instaura a ansiada shalóm, que pode ser traduzida como bem-estar, uma vida plena, cheia de prosperidade.

Esse anseio de Vida Boa já estava ao alcance de todos os que o queriam assumir. Jesus estava muito corajosamente convencido de que, apesar da dominação e da injustiça e da opressão, Deus já estava presente com seu Reinado, atuando de uma maneira nova.

Da mesma forma, a Vida Boa dos povos indígenas não é um projeto político ou social que se realizará algum dia... É, na verdade, uma realidade em ato, reafirmada e simbolizada na festa com suas danças e cantos, para atualizar a reciprocidade como sistema de vida, tanto em nível individual com o jopói (presente-mútuo), quanto em nível de trabalho comum com o potirõ (todas as mãos unidas). Esse princípio de reciprocidade, de dom, é o sustento da comunidade, e dali nasce o teku porã da Vida Boa dos guarani.

Com esse aspecto, que centra a fé na prática do amor recíproco, podemos estabelecer uma similitude profunda entre as duas concepções de vida. Entretanto, gostaria de sublinhar outra semelhança impressionante: no centro das duas visões de fé, está a Palavra, não como emissão de som, mas sim como fundamento de toda a criação.

Entre os guarani, a Palavra originou-se no Pai Primigênio (Ñanderuvusú), cuja essência é o amor, pelo qual ele convida cada guarani a praticar o amor recíproco (MELIÁ, 1991, p. 9). Assim se expressava, no final dos anos 50, um líder guarani: “Nosso Pai fez com que se abrisse a palavra fundamental, e que se fizesse como Ele, divinamente coisa do céu. Quando não existia a terra, em meio da escuridão antiga, quando não se conhecia nada, fez com que se abrisse como flor a palavra fundamental, que com ele se tornara divinamente céu. Isso fez o pai verdadeiro, o primeiro” (idem).

A Palavra que é consubstanciada com a alma humana. Um ser humano, ao nascer, é uma palavra que se põe de pé e se ergue até alcançar sua plenitude humana. Essa religiosidade exercia uma forte influência na organização social, já que consideravam que a terra se harmonizava mediante o amor fraterno e a solidariedade.

Ao ouvir Jesus falar no evangelho, constatamos como ele (definido como “Palavra feita carne”) levanta o ser humano em sua dignidade: livra os doentes, os pecadores e os endemoninhados de seu mal. A todos despede com uma palavra amiga: Shalóm, “Vá em paz”, desfruta de uma Vida Boa.

A Palavra salvadora de Deus já está agindo secretamente no mundo. Deus realizará essa utopia tão velha como o coração humano, o desaparecimento do mal, da injustiça e da morte.

Poderíamos seguir buscando outras semelhanças, mas prefiro deixar a pergunta em aberto: qual relação existe entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas? Essa busca se traduz em uma atitude fundamental para o diálogo: a escuta atenta e a humilde e constante capacidade de aprender com os demais.


Referências
DE CERTEAU, Michel. Mai senza l'altro. Qiqajon: Bose, 1993.

______. La debilidad de creer. Buenos Aires: Katz, 2006.

DURÁN, Diana. Nuestros ancestros los guaraníes. In: Revista Vida Nueva, maio de 2010.

MELIÁ, Bartomeu. El Guaraní: experiencia religiosa. Assunção: Ceaduc, 1991.

______. El don, la venganza y otras formas de economía guaraní. Assunção: Cpag, 2004.

REGAZZONI, Quinto. El anuncio del Reino y la Vida-buena (Sumak kawsay). In: Revista Umbrales, nº. 202, 2009.

VERA, Saro. El paraguayo. Assunção: El Lector, 1996.

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