Edição 338 | 11 Agosto 2010

Conhecer Jesus a partir dos não cristãos: uma proposta e um desafio teológico

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart e Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Então, quem é Jesus?

Peter C. Phan – Se quisermos fornecer uma resposta completa e definitiva para essa questão, teríamos que penetrar nos recessos secretos do coração e da alma de Jesus. Essa tarefa não é somente impossível, mas também idólatra. Isto é verdade para Jesus, assim como para qualquer pessoa humana. Nós nunca podemos "definir" uma pessoa, uma vez que, ao fazê-lo, inevitavelmente reduzimos essa pessoa ao status de um objeto. É interessante que o próprio Jesus pediu certa vez que seus discípulos lhe dissessem o que as pessoas e eles próprios diziam que ele era. Quando Pedro disse que ele era "o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mateus 16, 16), Jesus acrescentou que ele tinha que sofrer, morrer e ressuscitar novamente. Pedro repreendeu-o, ao que Jesus lhe disse: "Afasta-te de mim, Satanás" (Mateus 16, 23). Assim, ao dizer quem Jesus é, devemos estar bem conscientes da inadequação de nossas próprias respostas, incluindo a da Igreja, para que não sejamos chamados de "Satanás" por Jesus!
 Tradicionalmente, há duas maneiras de explicar quem é Jesus, uma dizendo o que Jesus é por natureza; e a outra, dizendo o que ele faz. Muitos de nós estamos familiarizados com o modo como o ensinamento oficial da Igreja, especialmente no Concílio Ecumênico de Calcedônia (451), costuma explicar a identidade de Jesus, isto é, empregando as categorias filosóficas de "pessoa" e "natureza ". Então, diz-se que Jesus é uma pessoa (isto é, o Logos ou Palavra de Deus, uma das "pessoas" da Trindade) em duas naturezas, divina e humana, e as duas naturezas estão unidas na pessoa do Logos, nas palavras de Calcedônia, "sem confusão ou mudança, sem divisão ou separação". Assim, como "pessoa", Jesus é o Filho de Deus, nascido do Pai e "consubstancial" a ele. Em suas "naturezas", Jesus é totalmente divino e totalmente humano.
 Obviamente, não há nada de errado em fazer uso das categorias metafísicas para afirmar quem é Jesus. De fato, elas nos ajudam a obter uma compreensão mais precisa e ortodoxa de Jesus. No entanto, essas categorias cobram um preço alto, especialmente para a evangelização. Por um lado, elas estão limitadas a uma determinada cultura, isto é, a grega e, portanto, não são facilmente compreensíveis em outras culturas, com sistemas filosóficos diferentes. Existem outras filosofias além da filosofia grega, por exemplo, indiana e chinesa. Elas também são abstratas e a-históricas e, portanto, não movem os corações para seguir Jesus. Por último, elas não são o modo pelo qual os evangelhos costumam nos contar quem é Jesus.

Os evangelhos nos dizem quem é Jesus não por meio da filosofia, nem mesmo por meio da "história" como a entendemos hoje, isto é, como uma reconstrução objetiva do que realmente aconteceu. Em vez disso, eles o fazem contando-nos histórias sobre Jesus, isto é, o que ele fez e disse, e como ele viveu e morreu, para que possamos crer nele e segui-lo. Em outras palavras, se quisermos descobrir a identidade de Jesus, temos que olhar para o que Jesus disse e fez durante seu ministério. Lá encontramos que o centro da mente, do coração e do ministério de Jesus é a regra ou o reino de Deus. Podemos dizer, então, que Jesus é a pessoa que viveu e morreu pelo reino de Deus, e que nos convidou a segui-lo nessa forma de viver e morrer. Assim, dizer quem e o que Jesus é (Cristologia) serve para fazer discípulos. O que esse discipulado implica aqui e agora e para esse indivíduo não pode ser decidido de antemão, mas deve ser descoberto por ouvir a voz do Espírito Santo no indivíduo e na comunidade.
 Sem dúvida, essas duas formas de descrever a identidade de Jesus, tecnicamente chamadas de "Cristologia ontológica" e "Cristologia funcional", respectivamente, não contradizem uma à outra. Não é uma questão de que uma é falsa, e a outra, verdadeira. Pelo contrário, é a questão de qual das duas é mais fiel aos evangelhos e mais apropriada para a pregação da Boa Nova sobre Jesus, e, por causa disso, não há dúvida de que a Cristologia funcional leva vantagem.

IHU On-Line – Essa forma de afirmar a identidade de Jesus não o reduz a ser simplesmente um "homem", em detrimento da sua divindade, e de ser simplesmente um "homem para os outros"?

Peter C. Phan – Dizer que Jesus é a pessoa que viveu e morreu pelo reino de Deus não é, de forma alguma, equivalente a dizer que ele é meramente e apenas um homem, em detrimento da sua divindade. Como mencionado acima, Jesus demonstra que ele é o "Filho de Deus" precisamente por ser perfeitamente obediente à vontade de Deus e no cumprimento de seu papel como o Servo Sofredor. Isso é o como ele é divino. E ele é humano não adotando uma natureza humana em abstrato, uma "essência" chamada humanidade, mas por viver sua obediência à vontade de Deus, isto é, cumprindo seu serviço ao Reino de Deus por meio de um corpo e uma alma e um espírito particulares, e dentro de um tempo e espaço circunscritos, dentro de uma história limitada. Isso é o que a humanidade de Jesus, bem como a nossa, significa.
 Mais uma vez, dizer que Jesus é um "homem para os outros" não é, de forma alguma, equivalente a negar sua divindade. Pelo contrário, serve para tornar concreta a sua divindade. Os "outros" aqui não se referem apenas aos seres humanos, mas também a Deus. Ser absolutamente obediente à vontade de Deus, ou "ser para Deus" era, para Jesus, ser o "Filho de Deus".

IHU On-Line – Como conhecemos esse Jesus, "homem para os outros"?

Peter C. Phan – Para muitos católicos, a resposta tradicional a essa questão é que nós conhecemos Jesus por meio dos ensinamentos do magistério oficial da Igreja, isto é, dos Concílios, dos papas e bispos, que foram resumidos no catecismo, por exemplo, o Catecismo da Igreja Católica. Outras fontes para conhecer Jesus incluem a liturgia, as devoções e as orações, o magisterium dos teólogos, a música e as canções sacras, a arte e a arquitetura sacras, e assim por diante. Em geral, os católicos diriam que nós conhecemos Jesus por meio da Tradição.
 Além disso, para todos os cristãos, as fontes normativas para conhecer Jesus são a Bíblia, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento, e, em particular, os quatro evangelhos. Os estudiosos da Bíblia têm aplicado vários métodos para determinar, com razoável certeza, o que Jesus disse e fez. Embora os métodos literários e históricos sejam necessários e úteis para estudar a Bíblia, eles só podem fornecer informações sobre o "Jesus histórico" ou, mais precisamente, o Jesus como lembrado e registrado pelos quatro evangelhos, e não o "Jesus da história", isto é, o Jesus real, que viveu na Palestina há mais de 2 mil anos, e sobre o qual os evangelhos só nos dão um relato parcial e incompleto. Esses métodos podem revelar apenas o mundo por trás e no texto bíblico, mas não podem revelar o mundo diante do texto, que nos chama a entrar para que nos tornemos discípulos de Jesus.

Para descobrir Jesus e o seu significado como "homem para os outros" para as nossas vidas hoje, precisamos combinar a Escritura e a Tradição com uma terceira fonte para conhecer Jesus. Alguns teólogos asiáticos chamam-na de "o magisterium dos pobres”. Por "pobres", eles se referem, em primeiro lugar, aos economicamente pobres, mas também àqueles que são marginalizados por quaisquer motivos, tais como raça, etnia, gênero e orientação sexual, cultura, tradição religiosa e assim por diante. Todos esses "pobres" são os destinatários preferenciais do amor de Deus, com os quais Jesus permaneceu em solidariedade durante seu ministério. Eles nos ensinam o que Jesus diria e faria hoje ou qual seria o real significado do que Jesus uma vez disse e fez. Na sua pobreza, eles nos ensinam sobre Deus e Jesus aquilo que papas, bispos, padres e teólogos não ensinam e não podem ensinar, porque esses professores comumente não são pobres, segundo qualquer padrão, mas geralmente vivem em conforto, senão no luxo.

IHU On-Line – Como essa forma de conhecer Jesus esclarece o significado do último grito de Jesus na cruz?

Peter C. Phan – No contexto do magisterium do pobre, podemos entender melhor o grito de Jesus na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Mateus 27, 46; Marcos 15, 34). Não há necessidade de especular, como alguns teólogos ocidentais fizeram, sobre como, na cruz, o Pai e o Filho, dentro da vida íntima da Trindade, são distanciados um do outro e são reconciliados pelo Espírito Santo. Embora essa teoria possa satisfazer a nossa curiosidade sobre como Deus é um e ainda três (a Trindade), ela deixa escapar a situação concreta e histórica da morte de Jesus. O grito final de Jesus, desesperado e ainda confiante em Deus, deu voz tanto ao mais escuro desespero de bilhões de seres humanos que vivem na pobreza e na opressão, quanto à sua mais profunda confiança de que Deus permanecerá fiel à Sua promessa de libertação e de salvação a eles.

IHU On-Line – O que essa compreensão de Jesus tem a ver com as outras religiões?

Peter C. Phan – Além das três fontes para conhecer Jesus acima referidas, eu acrescentaria uma quarta: as experiências dos crentes em Deus não cristãos (e dos não crentes). Aqui, vou me limitar aos crentes não cristãos. A razão para a necessidade de entrar em diálogo com os crentes não cristãos é que ser religioso hoje é ser inter-religioso. Assim, ser cristão hoje exige viver, trabalhar, teologizar e partilhar experiências espirituais com os não cristãos. Em termos de Cristologia, podemos descobrir a verdadeira identidade de Jesus somente por meio do diálogo inter-religioso, no aspecto quádruplo recém mencionado. Quem Jesus é para nós ainda permanece como algo a ser descoberto, e consequentemente a Cristologia continua sendo um projeto inacabado e permanente. Essa Cristologia, feita no contexto do diálogo inter-religioso, vai ser muito diferente, embora não necessariamente contraditória, à Cristologia clássica de uma-pessoa-duas-naturezas acima referida.
 O diálogo inter-religioso não leva à "ditadura do relativismo". Por causa desse medo do relativismo, tem sido sugerido que o diálogo inter-religioso deve ser limitado ao diálogo intercultural, isto é, o diálogo sobre o impacto cultural e social de várias religiões e não sobre a sua fé e suas crenças. Porém, os parceiros no diálogo inter-religioso não precisam e não devem delimitar a sua fé nas suas tradições religiosas (no caso dos cristãos, sua fé em Deus, em Jesus e no Espírito, por exemplo). No diálogo inter-religioso, nossa fé permanece firme e será intensificada, mas nossa compreensão e as práticas da nossa fé serão desafiadas, corrigidas, complementadas, enriquecidas pelo aprendizado a partir da compreensão e das práticas dos crentes de outras religiões (e, esperamos, vice-versa).
 Pode ser bom lembrar que os cristãos não são os únicos a reivindicar "unicidade" e "universalidade" para o seu fundador, Jesus. O livro hindu "Bhagavad Gita" também reivindica que Krishna é adorado sempre que os outros deuses são adorados, e que o seu ensinamento é a melhor e a única forma de obter a libertação do ciclo de morte e do renascimento. Os budistas estão convencidos de que o Buda mostrou-lhes a melhor e a única forma de alcançar o nirvana, e, embora o próprio Buda não tenha reivindicado ser o "caminho", mas apenas o dedo que aponta o caminho, e, é claro, não afirmou ser divino, ele não se tornou, com isso, menos atraente para os bilhões de seres humanos, tanto os do passado, quanto os do futuro previsível, como um guia certo para o pleno florescimento humano. Confúcio raramente fala sobre Deus ou o Céu, mas seu ensinamento alimentou a vida espiritual de bilhões de seres humanos em sua busca para alcançar a humanidade completa. Os muçulmanos acreditam que a Palavra de Deus foi revelada ao profeta Maomé, e que, portanto, o Alcorão deve ser a única norma verdadeira e absoluta para todos os seres humanos.

No diálogo inter-religioso essas reivindicações de exclusividade, unicidade e universalidade para a própria religião colidem umas com as outras, mas não devem ser abandonadas. O que se espera que aconteça é que a compreensão dessas reivindicações sejam reavaliadas, refinadas e modificadas, e que talvez as palavras "universalidade", "unicidade" e "exclusividade", por causa de sua bagagem colonialista e imperialista, sejam percebidas como não mais apropriadas e úteis para expressar a nossa fé em Jesus, Krishna, o Buda, em Confúcio e no Alcorão. Nesse sentido, uma Cristologia inter-religiosa está ainda para ser feita e emergirá somente do fogo purificador do diálogo inter-religioso.

Leia mais...

>> Peter Phan já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* Jesus inclui de algum modo e se “associa” a outras figuras religiosas em seu trabalho de salvação?, publicada na IHU On-Line número 253, de 07-04-2008.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição